Artaud, o Sentido e a Loucura – CAP. 21 Emascular o homem: Metáfora do Sexo

Busquemos Artaud (01): "toda verdadeira liberdade se confunde indissociavelmente com a liberdade do sexo", e, "faz muito tempo que o Eros platônico, o sentido genésico, a liberdade da vida, desapareceram sob o revestimento sóbrio da Libido", e analisemos, em Artaud, o pedido de "emascular o homem" e "corpo sem órgãos", que estão em "Para Acabar com o Julgamento de Deus".

Acentuando ser pouco provável que Artaud tenha tido conhecimento psicanalítico suficiente para pedir emascular-se o homem pensando em desejo da criança pela mãe, falta de pênis na menina, Édipo e Superego, vejamos o jogo de Artaud desde a metáfora uterina até sua proposta de emascular o homem:

Desde a antiguidade (6) correm paralelos, de forma persistente, útero e sexo, doença nervosa e medicina, dando a Histeria como uma doença orgânica de origem uterina. Charcot (2) trabalha a Metáfora Uterina, que se expressa em Diderot (03) como "a mulher é um ser de paixões e de emoções, comandada por seu útero", (04) em um contexto em que a Loucura é uma perversão das paixões, no Alienismo, desde antes de Pinel e Tuke. Freud (5) percebeu o envolvimento cultural na histeria, extirpou o útero e deixou mais à superfície outra metáfora, é o sexo, mas o Sexo como representado no psiquismo.

A Metáfora do Sexo

Artaud percebe a metáfora do sexo deteriorada ordenando o mundo conceitual. Na Cultura, a Metáfora do Sexo procurou explicar o Homem e suas interrelações com a Realidade, incluindo as interrelações humanas, usando o instrumento de expressar o Abstrato no Concreto. A Metáfora do Sexo foi introduzida no campo epistemológico por detentores de um saber, esotérico, pensado não inteligível para o homem comum, transmitido a este de forma que possa entender, saber exotérico. (65, 66) Em redução excessiva, os filósofos, os ocultistas, alquimistas e cabalistas, discutiam entre si, suas “verdades” (Abstrato,esotérico), nada mais que sua compreensão da Realidade, que transformavam em metáforas, pensamento simbólico, para a compreensão por iniciados, iniciantes, (Concreto em palavras, exotérico), pelo uso uso de analogias com o sexo, anatômico, genital ou fisiológico, e suas consequências (criação, reprodução, Amor) para explicar a Natureza, e, dentro dela, a mente humana, para se chegar a conclusões sobre o comportamento humano e suas variações.

Platão (67) faz “a extensão do uso familiar do gênero masculino e feminino aos objetos de idéias do sentido e do sumário assim como a homens e animais”. Os termos “homem” e “mulher” são tomados como símbolos de forças que são manifestas, mais ou menos fortemente, na vida interna de indivíduos de ambos os sexos, pela analogia do receptivo e negativo, passivo, para a força feminina e do criativo e positivo, ativo, para o masculino. (68) Freud tomou pelo Concreto a idéia esotérica de Platão, na forma como difundido na Cultura, exotérica, não necessariamente tendo consultado seus textos. É um instrumento que está presente na Cabala, transformada em “uma filosofia universal que combina o feminino e masculino e eterno, e cimentando-os eternamente no eternamente humano”, (69) ou “uma aplicação da idéia do relacionamento sexual à solução do problema da existência”. (70, 71) Pela Cabala, há uma distinção “sexual” no corpo e na alma, (72) que é tomada, em seus aspectos de divisão e reprodução da forma humana, como símbolo da vida universal, como uma criação contínua e regular, o desenvolvimento de uma existência infinita. Neste sentido, quando uma pessoa se deixa levar pela retórica persuasiva de mal-iniciados em Ocultismo e julga ter uma parte masculina e uma feminina, teria de compreender ser possuidor de forças passivas e receptivas e forças ativas, criativas, e não desejos “femininos” ou “masculinos” em sua mente. A Cabala, como insinua Artaud, está preocupada em levar ao Abstrato ao Concreto, mas do Concreto retornar ao Abstrato: não há que se deslizar para o Concreto e nele permanecer. A Metáfora do Sexo, deformada exatamente por permanecer no nível do Concreto, já era moeda corrente. Se Freud rompe o "contrato que unia, desde a antiguidade, útero e sexo, doença nervosa e medicina, o clínico e seu órgão", (06) a Cultura médica evoluiu pelo Concreto. Fliess (77) distribui o Feminino e o Masculino no corpo de uma forma tão concreta a ponto de operar, cirurgicamente, narizes pela correspondência nasal de órgãos femininos, confundido a metáfora com a Realidade, tendo operado paciente de Freud, com a sua anuência, de acordo com Roudinesco. A castração tornou-se instrumento terapeutico de adolescentes masturbadores, para tratá-loos de outra delusão psiquiátrica, a de que a masturbação causava alienação mental, loucura.

Freud e a Metáfora do Sexo

Freud, fazendo melhor uso da metáfora, castrou o sexo genital, pondo a nu o sexo psíquico. “Reinventou” a Metáfora do Sexo, pensou tratar-se da representação psíquica do sexo, sem perceber que se tratava da Imaginação sobre a representação do sexo no psiquismo e não desta representação em si, e usou da confusão ocorrida com a Metáfora do Sexo na Cultura. No entanto, Freud pensava saber o que Artaud diz: “entre o Real e Eu, está Eu e minhas deformação pessoal dos fantasmas da Realidade”. (36) Freud nada mais fez que transpor para o plano psíquico crenças culturais como representações mentais do Sexo e do Falo. Isto fica bastante claro ao adotar acriticamente opiniões de Havelock Ellis e Krafft-Ebbing, como mostrado no Capítulo anterior. (76) Pode ser que o Misticismo, (73) que adota a Metáfora do Sexo pelo Concreto, tenha ajudado a difundir a crença de que há partes anatômicas intra-cerebrais que sejam masculinas e femininas, no sentido do sexo genitalizado, ou que levem à genitalização da sexualidade, que é a mesma coisa, crença que Freud, apesar de juramentar não se tratar de sexo genital, manteve e fez ser inserido no caldo cultural. Seria necessário percorrer a bibliografia da época à procura do tema, o que é extenso e foge ao escopo que aqui se propõe. Freud não assumiu se basear na Cabala, como fez Jung, cuja psicologia ainda se mantém no nível do Concreto, assumindo a presença do Masculino e do Feminino no cérebro, e não esclarecendo a seus fiéis tratar-se de uma Metáfora.

Jung (75) joga a Metáfora do Sexo, a partir da Alquimia, para ver o Eu como a união do Consciente, masculino, com o Inconsciente, feminino, a partir da Cabala, na polaridade masculino-feminino na formação do homem, mas aparentemente não deixou bem claro tratar-se da polaridade positivo-negativo que se vale do conhecimento intuitivo do homem comum a respeito do sexo e das relações entre o Masculino e o Feminino na esfera das Relações sociais, a Cultura. Com o uso da Metáfora do Sexo e a permissividade de seus adeptos poderem confundir o simbolizado com o símbolo, o Abstrato com o Concreto, e o uso dos termos “masculino” e “feminino”, a Psicologia jamais alcançará o estatuto de disciplina científica como pretende.

A transmissão de conhecimento usando a Metáfora do Sexo pode ter sido útil à difusão das idéias de Pitágoras, de Platão e de Aristóteles, tal como as parábolas foram úteis a Cristo, contudo, seu uso atual deve ser condenado. Ao homem moderno já não é difícil a compreensão do que sejam forças passivas e receptivas e forças ativas e criativas. O mau uso da Metáfora do Sexo tem fabricado paradoxos tomados como verdades, e, assim, os esotéricos, muitas vezes por eles próprios operarem em si tal deslizamento, confundem a mente daqueles que acessam suas palavras, deixando que homens e mulheres deslizem o símbolo para o Concreto e no Concreto permaneçam, sem retornar ao Abstrato. A proposta de Artaud, ainda não compreendida em sua totalidade, é o Teatro da Crueldade, em que o Abstrato, os grandes temas da Humanidade, é levado aos meandros fibrosos da Matéria, o Concreto, pela representação, virtual, teatro, em um procedimento que permita ao expectador chegar a suas conclusões, “a partir de seus próprios pontos de vista”.

Artaud compreendeu que o Abstrato é sempre um Ponto de Vista sobre o Real e que, acreditar em um Ponto de Vista Masculino e um Ponto de Vista Feminino em luta entre si, ou em ato sexual, é permanecer em um nível primário do mecanismo de pensar, pensamento mítico. Esta confusão é, também, indicador de mal uso de outro instrumento do mecanismo de pensar, o pensamento analógico, o uso de analogias e correspondências. Artaud deixa claro que há um jogo de antinomias entre as Coisas do Real, forças positivas e negativas, e entre as representações mentais do Real, ainda noções e princípios fundamentais positivos e negativos, que estão à procura de síntese, como está em O Teatro de Serafim, (46) Neutro, Feminino e Masculino. Neste texto, Artaud julgou “haver detalhes suficientes para a compreensão, explicitar seria estragar a poesia da coisa”, quando se engana, pois a confusão da Metáfora do Sexo, por sua não compreensão adequada, entrou em progressão crescente desde o final do século 19.

Artaud pretendeu dar um instrumento para correção destes erros de Abstração, para o aperfeiçoamento do homem, pela “verdadeira Liberdade”. Fiquemos, aqui, com as palavras-tema subtraídas de "Para Acabar com o Julgamento de Deus":

A Consciência não ligada nem ao Sexo, nem à Fome, no homem emasculado, portador de um Corpo sem Órgãos, liberto dos seus automatismos, a verdadeira Liberdade.

Em "O Teatro e a Ciência"(08), Artaud dirá que, "sob certos aspectos", a sexualidade humana "desprende influências infectas e espantosos venenos corporais, que presentemente paralisam todo esforço de vontade e de sensibilidade". Isto seria dizer que a energia sexual, no sentido atual freudiano, tem de ser sublimada em ações, em um contexto onde a "Vontade vai passar aos atos" e em "períodos de baixa sensibilidade" canalizar a energia para a criação da Realidade.

No entanto, o que faz Artaud é gritar: é preciso arrancar o sexo ao homem. Artaud (09) sabe que "a psicologia estrutural ou gestaltismo veio nos mostrar que a criatura humana reage sempre em situação total", ou, como Mauss(10), "o homem total atua integralmente, comprometendo-se em todas as fibras do ser". Não é possível a Artaud pressupor o sexo como impulsor máximo, nem mesmo quando se transforma Sexualidade em Libido, mas coincide com a compreensão da Libido como “todas as forças que impulsionam o homem”. O motor da Humanidade não é o sexo, que é elemento do todo, e é o todo que delimita as funções das partes. O homem tem a Criatividade não por ter um sexo genital ou um sexo psíquico cujas forças devam ser sublimadas a favor da Criação da Cultura-Civilização. O homem é criativo por ter um Inconsciente e o Inconsciente é o Desejo. Artaud quer emascular o homem como quem crê-descrê em "Mal Estar da Civilização", uma dicotomia entre os impulsos pulsionais e a Civilização. Se as coisas são como as coloca Freud, e, em 1948, os pontos de vista freudianos são vitoriosos, a saída artaudiana é retirar ao homem o sexo.

Toda Cultura fundada no Sexo segue a doutrina de Freud e não foi verificado se a especulação de Freud corresponda à Realidade, apenas aceito por critério de autoridade. Artaud procura a Cultura não fundada no sexo-sexualidade. Artaud quer que se coloque "o homem na mesa de autópsia para refazer sua anatomia". Não nos esqueçamos que, em Artaud, "sexo" não é genitália e que "homem" é "corpo humano-humanidade". Podemos chamar Jacques Maritain para a compreensão do que deseja nos dizer Artaud: "um trabalho de anatomia, de análise, de separação, a fim de desvencilhar o conteúdo inteligível do conceito daquilo que o relativiza". (11) Artaud coloca o homem na mesa de anatomia por não acreditar que a consciência esteja ligada ao sexo ou à fome, é preciso emascular o homem para libertá-lo dos automatismos de seu Inconsciente. Se as noções e princípios fundamentais são o complexo de fenômenos cerebrais que tornam o homem o único animal fadado a ter humanidade, Artaud agora se põe contra a necessidade de um determinismo a criar automatismos. Em outras palavras, o automatismo do Inconsciente não é um princípio fundamental, é uma anomalia a ser excisada.

Rompeu Freud com a ligação do sexual ao campo anatômico, e nisto Artaud parece apoiá-lo ao ter visto o sexo "mal colocado na quadratura dos pés”. Freud colocou o sexo no psiquismo, em sua representação mental, e Artaud o viu “mal colocado em relação ao cérebro". (21) Deste modo, ao pôr o homem na mesa de autópsia para lhe arrancar o sexo, está negando Freud. Se Freud (12) coloca a libido em cima da representação do falo, presente ou ausente, ele não recusa o sexo genital, apenas passa a se referir ao seu duplo mental. O conceito em Freud evoluiu-diferenciou de sexo genital para sexo psíquico e os duplos de Artaud nos põem a perguntar: como sexo psíquico é diferente de sexo genital? Artaud sabe que a mente é fabricadora de duplos e tece o teatro da crueldade que guarda uma relação com a histeria, no que era teatral nas histéricas de Charcot (2) e por ser um discurso do corpo valorizado pelo surrealismo (64).

Se Freud distinguiu sexo psíquico de sexo genital, sua doutrina permaneceu valorizando o falo, representado mentalmente, Falocentrismo, pretendendo com isto ter retirado a histeria e seus derivados do domínio das antigas doutrinas morais ou sociológicas. Artaud está, também, contra a conclusão de que o Falocentrismo seja necessário à explicação genérica do desejo humano, quando pretende emascular o homem para alterar a ordem anatômica vigente na humanidade. Posteriormente, pondo o homem na mesa de autópsia para lhe arrancar o sexo, Artaud parecerá não enxergar separação tão nítida entre o sexo genital e o psíquico que o governa: Artaud compreendeu que o Sexo Psíquico não é apenas a representação do Sexo, mas esta representação superajuntada aos “fantasmas que deformam a Realidade”, fantasmas que, no Imaginário individual, sofrem deformações. O homem, no plano singular, internaliza as deformações da Realidade e dos Fantasmas da Realidade operadas pelo Imaginário social. Freud lidou com as deformações da Realidade e dos Fantasmas da Realidade representadas no Psiquismo pensando estar lidando com a representação psíquica do sexo. Artaud pede a emasculação do homem-Humanidade, ao mesmo tempo em que deixa marcante não haver uma separação entre o corpo e o espírito: o sexo psíquico ainda permanecerá no terreno da biologia, em um jogo de pontos de vista, de abstrações, que se distanciaram da Realidade que pretenderam descrever. Para Roudinesco (14), a Psicologia francesa, representada por Binet e Simon, continuou amplamente subordinada a "uma concepçao biologista e organicista da sexualidade, já que desconheceram a separação efetuada por Freud, desde seus artigos em língua francesa, entre o plano anatômico e o plano psíquico". Artaud apenas lembra ao Freudismo o plano cultural e suas representações sendo internalizadas no psiquismo individual, procurando organizar a representação do Falo ou não-Falo, enquanto a desorganiza. Não é o sexo genital que causa neuroses no homem, é a sua repressão pela Cultura, e não é a força sexual reprimida que causa neuroses humanas, é a repressão de todas as suas forças internas, de sua potencialidade de se tornar um ser humano completo.

Não importa o sentido atual que se quis dar a “sexual” na obra de Freud, importa o sentido absorvido por Artaud, o sentido entendido na época. Edna Heidbreder (74) nos diz o sentido freudiano-atual de "sexual", tudo o que abrange o prazer. Hoje se julga resolvida a discussão se Freud disse "sexo" ou sexo-como-todo-mundo-entendeu. A autora nos coloca que “a lista das atividades que ele (Freud) e seus adeptos consideram como possuindo um significado sexual é quase infinita... mesmo o desenvolvimento da própria civilização”. Em "0 futuro de uma Ilusão", Freud define civilização como, além da ética, todo "o conhecimento e capacidade que o homem adquiriu com o fim de controlar as forças da natureza e extrair a riqueza desta para a satisfação" das suas necessidades, de onde somos obrigados a concluir que a civilização não se faz com o prazer, mas com a atividade e a criatividade, estando ainda a Realidade a ser construída, diria Artaud. Obriga-se o leitor de Freud a reduzir “prazer” a "satisfação de necessidade humana", o que, também, cria dificuldades. Não é correto dizer que o masoquista sente prazer na dor, simplesmente porque a dor sentida como prazer não é dor. Não é certo também dizer que a autoflagelação cause prazer pois é ato de sacrifício e este exige a dor. O aparelho sensorial que vai definir como dor ou prazer um estímulo é absurdamente singularizado para comportar generalização.

Artaud pede a emasculação total do homem, para conseguir a "criação do novo homem": havendo Freud colocado o Falo no plano psíquico, Artaud parece achar ali apenas o Desejo e não apenas o desejo sexual ou libidinal, exceto quando Libido significar Desejo em sua extensão mais ampla e em todas as suas consequências em direção à Criação, Criatividade, poiesis, Eros genésico de Platão. Questionemo-nos, ainda sem saber responder: onde Artaud coloca o Desejo? Fala-o?

Mudar a ordem anatômica atual: emascular o homem

Emascular o homem está em contexto nítido com a postura revolucionária de Artaud: (15) uma revoluçao física e materialmente completa, que se voltasse para o próprio corpo do homem; e, em outro local, "mudar organicamente o homem". É preciso ver a relação entre a emasculação para a formação do novo homem e a retirada do sexo do centro de atenções do corpo humano-humanidade. Para Artaud-manicomizado, fazendo bricolagens com a simbologia cristã, o sexo-sexualidade poderia ser a fonte do Mal e, propondo que, emasculado, o homem estaria predisposto ao Bem. Estaria de acordo com um maniqueísmo próprio da época, levando ao Anticristo, e, novamente, ao tema do fim do mundo. Deixar-se levar pela simbologia envolvida em seus aspectos literais poderia nos fazer perder nos aspectos apocalípticos do discurso de Artaud. Esta interpretação distoa, e muito, da proposta de Artaud, e a mensagem sob a simbologia artaudiana poderia ser apenas acentuar ser preciso desviar a atenção do sexo-sexualidade para que o homem possa enxergar todas as "forças dramáticas, recalcadas e perdidas do corpo humano". (15) Em "O Teatro e a Ciência", Artaud põe em contexto o emascular o homem com a “vontade que vai passar aos atos”, a revolução possível, definitiva e integral. Artaud quer a metamorfose do corpo humano-humanidade, de suas condições interiores, ou seja, das condições interiores de cada indivíduo cuja somatória é a Humanidade. É como se tivesse entendido ter Freud descoberto um mecanismo de organização da sociedade humana, a sexualidade-libido, e visto que este mecanismo vem sendo tomado, desde os primórdios como o único possível. É preciso emascular o homem para libertá-lo da Metáfora do Sexo que vem sendo jogada, deturpada, no mundo conceitual desde os mitos da criação. Não podemos deixar de apontar que Foucault, passando por Artaud, denuncia em "A Vontade de Saber" e "História da Sexualidade" esta necessidade de tirar o sexo desta posição de "núcleo (17) onde se aloja nossa "verdade" de sujeito humano".

Artaud põe em contexto o emascular o homem com a vontade de passar aos atos e quer (AA BS 10), em 1927, "que cada homem nada mais queira levar em conta além da sua sensibilidade profunda, do seu íntimo” esta a sua “Revolução integral".

O que pretenderia Artaud?

Artaud percebeu que Freud e a intelectualidade de seu tempo se deixavam levar por uma "metáfora do sexo" mal compreendida, com a qual contribuiram para ordenar o mundo conceitual. Se os fatos sociais (07) serviram ao homem de modelo para as categorias, se os mitos da criação usaram as relações entre o homem e a mulher como modelo, pode ser possível que ainda sirvam à Humanidade como modelo pra as relações entre os pares de antinomias em jogo na Realidade e em seu duplo, o Mundo Conceitual, Abstrato. O pensamento analógico transforma os elementos positivos e negativos em masculino e feminino para entendê-los e dominá-los. Contudo, com a não compreensão adequada, a metáfora passa a ter valor de verdade e com a Verdade passa a se confundir, chegando ao momento atual quase incontestável. Rondolfo Mondolfo (32) acreditou não ter havido grandes erros de interpretação quando os gregos usavam macho e femea, masculino e feminino, para se reportarem a princípios-potências ativos e passivos, mas a metáfora induziu, e ainda induz, a erros de Abstração e a alterações de comportamento no Concreto, sem alcançar o objetivo inicial da Metáfora do Sexo, qual seja, o aperfeiçoamento moral do homem.

O drama de Heloísa e Abelardo pode nos dar uma primeira resposta. Segundo Cláudio Willer, Artaud usa Heloísa e Abelardo para expressar as equações entre Amor, Linguagem, Corpo e Sexo. Os dois protagonistas desta história, que está divulgada no filme "Em Nome de Deus" (18), referem-se a seus prazeres carnais como "fornicação", palavra que custou a Artaud o aposto de misógino. Uma hipótese é que ele usa a colocação de Freud de que a Cultura-Civilização seja resultado da sublimação de forças sexuais: como criar a Realidade se as forças que podem fazê-lo se esgotam na fornicação? São jogadores da dialética de contrários, ensinam pelo questionamento. Levando a pensar, postam-se contra os costumes de sua época e preferem ver a intelectualidade misturada ao povo, sendo amados-odiados enquanto constróem sua obra-vida.

Chamemos, também, a opinião do Pe. Orlando Vilela sobre Heloísa, Abelardo, Idade Média e Renascença (19): o Cristianismo medieval com um dogmatismo intransigente e acrítico sufocava a individualidade; no período renascentista, o homem livre deste dogmatismo podia desenvolver sua individualidade. Lembremos que Artaud procura na juventude de sua época um humanismo diferente daquele renascentista que colocara os intelectuais em torres de marfim, pretendendo, portanto, retornar a Abelardo.

O móvel de Abelardo é entregar- se ao ensino, com votos de castidade, que seria sublimar o sexo a favor da construção da cultura. Se desvia de seu curso pela "fornicação" com Heloisa, retorna a ele após ter sido... "emasculado", castrado anatomicamente. Contudo, o tema artaudiano de Abelardo e Heloísa é o Amor puro. Permaneçamos atentos para os diversos planos veiculados pelas palavras, sem nos deixar perder pelo Concreto que veículem. Diz-nos Rougemont (20), no mesmo texto, que "o casamento nada significa a não ser a união dos corpos, ao passo que o "Amor", que é Eros supremo, um movimento da alma para a união luminosa, situada para lá de todo amor possível nesta vida. Aí está o motivo pelo qual o amor supõe a castidade". Castidade é emasculação abstrata. Amor é ligação, a partir de seu radical "am", portanto, a força da criação, e o homem é o agente. Não se pode esquecer que se Artaud fala do sexo como "fornicação", dando a entendê-lo como pecado, quer, também, vê-lo livre do obsceno (21), por que "jamais pôde ser trabalhado e cultivado fora do obsceno": a castidade a que se refere Artaud não seria privar-se do sexo e do erotismo, e sim limpar-se do pejorativo?

Redizendo para acrescentar: emascular o duplo do homem, a representação mental que o homem faz de si mesmo no plano psíquico, resultaria em um homem eunuco e misógino apenas se nos deixarmos perder no plano das palavras: castrado o homem estaria aberta a ferida por onde seriam liberadas (15) "todas as forças dramáticas recalcadas e perdidas do corpo humano", libertando (8) a Vontade e a Sensibilidade, tornando possível a metamorfose e a revolução definitiva e integral, e o aparecimento do homem novo. Eros emasculado levaria o homem (25) a "estabelecer sua superioridade sobre o império da possibilidade" e tornar-se o “senhor do reino das mil possibilidades”. Libertando a Vontade e a Sensibilidade, o homem estaria se manifestando radicalmente (individualidade radical) e adentraria no reino das mil possibilidades, por sua Criatividade. O amor carnal produz seres humanos, o "Amor"/Eros supremo, emasculado, produz a Realidade, que, diz-nos Artaud, está ainda a ser criada.

Uma outra resposta parece vir de o "Teatro de Serafim" e de "Heliogbalo". Artaud “briga” com os homens da Ciência presos em seus gabinetes, percebendo apenas pequenos detalhes da Realidade que se desenrola: é preciso acabar com o deus-sexo e enxergar a natureza assexuada do homem-corpo humano. Toma os princípios, masculino e feminino, como estavam na Grécia antiga. Retornemos aos estóicos, "o mundo composto por dois princípios, um passivo, a matéria e um ativo, a razão, agindo na matéria". (26) Ou em linhas bem gerais, o princípio passivo é o material com que se fazem as bricolagens, e o princípio ativo seria tudo que faz mover a matéria para transformá-la. Os gregos já tomavam o Inconsciente, embora não o conceituassem com este nome, como feminino, passivo. Freud (27) tomou masculino e feminino como significando positividade negatividade? Sim, mas o Freudismo permanece no nível esotérico, como se a Psicanálise fosse um Ocultismo: que se danem os seus consumidores se permanecem no nível concreto, atuantes na Realidade pelo Masculino e pelo Feminino, e não pelo Positivo-Negativo, no jogo de antinomias, de pares de oposições, que é a Realidade em Devir constante. Não é o Negativo de Hegel, é o Negativo em analogia com a Física. Os gregos diziam masculino e feminino, macho e fêmea, potência ativa e potência passiva (28), e a potência a matéria, para se referirem em filosofia e mitologia aos princípios formadores do ser.

São duas reduções possíveis. Eros é masculino, princípio ativo que atua sobre o princípio feminino, a matéria. Eros domina a vontade de criação da matéria. É preciso perceber também como Artaud fala do Inconsciente (29) como substrato físico-psíquico do pensamento, portanto, matéria. Eros, domina o seu feminino, passivo, Inconsciente, registro de vivências e de informações, plasma físico-químico: o Desejo, assexuado, está não Inconsciente, como produto das relações de Eros com os fragmentos internalizados da Realidade.

A segunda redução a partir de Matéria-Energia: Eros princípio ativo, energia ativa; o princípio feminino é energia potencial. Temos, agora, o plano físico-químico da Vida como fenômeno total. Se considerado Libido-forças ativas do "fenômeno total da vida", de Schopenhauer, eis a a Libido totalmente assexuada, e surge a hipótese: Jung e Artaud professam a libido assexuada por serem panteístas? Artaud aqui se prova panteísta. Quer o homem agente da Realidade, em estado de tensão contínua, como o Eros platônico (30) como síntese de suas forças masculinas, positivas, e femininas, negativas, manifestação do conteúdo do Inconsciente. Artaud confessa sua crença no Inconsciente Coletivo. Dentro de uma metáfora panteísta, pan-psiquista, há o Inconsciente da Realidade (das coisas reais): o Desejo está também não mundo, produto das relações de Eros com os fragmentos da realidade (as coisas reais)? Qualquer que seja a resposta, é metáfora, mito aproximativo, jamais confundindo-se com a Rrealidade mesma, ainda que nomeada "teoria", “doutrina” ou “ideologia”. É a antropomorfização da Realidade, tal como Hegel para quem a Realidade é Pensamento, fenômeno tipicamente humano, que Hegel deifica.

Após a saída do Movimento Surrealista, Artaud vai chegando ao corpo humano-Humanidade, sem sexo, emasculando-o, enquanto os seus companheiros se perdiam em adoração à mulher, o que não passa de Poesia-versificação e desvio para a Religião Positivista, fazendo doutrinação, invocando (31) a autoridade de Engels, parceiro de Marx, afirmando que "o amor sexual individual nascido na monogamia é o maior progresso moral realizado pelo homem nos tempos modernos". Artaud não se encontra em posição de adoração à mulher. Antes, lança o erotismo do ser humano sem órgãos sexuais, a assexualidade como coexistência dos gêneros masculino, feminino e neutro, não genital, não sócio-cultural, mas apenas passivo-ativo, energia potencial versus energia ativa, no sentido contábil e físico-químico (29) em todo ser humano, com "O Teatro de Serafim" e após Heliogábalo.

Artaud quer, apenas, o erotismo sem órgãos sexuais, a assexualidade como coexistência dos gêneros masculino, feminino no neutro, não genital, não sócio cultural, mas apenas passivo/ativo, energia potencial/energia ativa, no sentido contábil e físico-químico (29) Artaud tem como fim a cultura sintética, sínteses em destruições sucessivas, ligando o masculino e o feminino no Andrógino.

Se Artaud toma (16) o eterno antagonismo entre as forças do espírito, como masculinas, e as forças do corpo, ou da matéria, como femininas, terminará por intuir ser necessário colocar o homem na mesa de anatomia para arrancar-lhe o sexo, destruir a ordem anatômica em que vivemos há milênios. As antinomias estão em jogo, nomeadas como masculinas e femininas, derivando da uma ordem "anatômica", baseada na sexualidade e a parece incluir o sentido dado por Freud. Artaud estende a opinião de Georges Balandier (23), de que "as relações instituídas entre sexos parecem conformadas a estruturas antiqüíssimas e intangíveis", para todas as relações sociais. Balandier nos descreve o jogo de antinomias femininas e masculinas coordenando sociedades "primitivas" africanas. Não passa, no entanto, de jogar pontos de vista, Abstrato, no Concreto, e passar a crer tratar-se da Realidade Mesma. Artaud tem como fim a Cultura Sintética, sínteses em destruições sucessivas, ligando o ativo e o passivo em sínteses sucessivas: é necessário ao homem aprender a Queimar Formas e a manter-se em equilíbrio no meio destas destruições sucessivas.

Vemos surgir, aqui, a conseqüência de emascular o homem: retirado o sexo-sexualidade da posição de pedra fundamental da ordem vigente na humanidade, torna-se possível enxergar a destrutividade do homem como criatividade, fonte de transformações. Não há Eros-masculino, Tânatos-feminino, há uma entidade, Eros-construtividade-destrutividade, emasculado, sem órgãos, e também sem masculino-feminino, equilibrado no neutro, pela resolução da antinomia tensão-vontade que passa aos atos e, assim, cria a Realidade. Artaud busca o Corpo sem Órgãos.

Referências

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02 R1 39

03 EB TDME 25

04 interpretado por Elizabeth Badinter

05 R1 40

06 R1 37

07 Durkheim CB PC 89

08 AV AT 324

09 AAF PG 43

10 FGB 59

11 JM FM 38

12 R1 95

14 R1 238

15 AV AT 322

16 AA MR 106

17 MF MP 229

18 Stealing Heaven produção Amy Internacional, direção Clive Donner

19 OV DHA 146

20 OV DHA 149 "L'Amour et l'Ocident" Paris, 1972

21 AV AT 331

22 AV AT 320

23 GB AL 19

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25 AV AT 328

26 JB E 48

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30 RM3 148

31 BO 25

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77 PM ENC 36

Gilberto Profeta
Enviado por Gilberto Profeta em 31/10/2013
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