Capítulo XIV- Os últimos templários
 
Resolvida a questão de com quem ficaria com os bens do Templo, agora que a Ordem estava suprimida, restava decidir o destino daqueles que a dirigiam. Principalmente Jacques de Molay e seus quatro principais dignatários, que ainda estavam nas masmorras, aguardando o que seria  feito com eles.
A Ordem deixara de existir em 22 de março de 1312, dia em que fora publicada a bula Vox In Excelso. Até então, a maioria dos cavaleiros, que tinham sido presos desde a fatídica manhã da sexta-feira, 13 de outubro de 1307, já havia morrido na prisão. Alguns, como vimos, tinham sido libertados para viver em conventos. Uma boa quantidade deles, em diversas cidades francesas, fora queimada em fogueiras, pois a comissão de Inquisição havia liberado os tribunais locais para prolatar sentenças contra aqueles que se tornassem renitentes e não confessassem arrependidos de seus infames erros.
Assim, em muitos dos tribunais provinciais não se julgou necessário a completa tramitação do devido processo legal, e bastou a pura e simples confissão do acusado, não importando a forma como tivesse sido extraída, para justificar a imposição da pena capital. As fogueiras, erguidas para queimar os hereges templários, por toda a França, foram os mais concorridos espetáculos naqueles gloriosos anos do início do século XIV, quando Filipe, o Belo, governou a França.
Mas na prisão do próprio castelo do Templo, para onde foram removidos, depois de amargarem quatro anos nas masmorras do Castelo de Chinon, Jacques de Molay, Geofroy de Charney, Geoffroy de Gonneville e Hugo de Pairaud,, ainda não sabiam o que seria feito deles. De certo que foram informados da decisão papal de de 13 de outubro de 1312, na qual a Ordem do Templo tinha sido dissolvida. E também que muitos cavaleiros, em todo o território francês tinham sido queimados, e que uma boa parte deles havia morrido nas masmorras em consequência das torturas.
Mas o Grão-Mestre do Templo e seus altos dignatários conservavam ainda a esperança de que suas vidas fossem poupadas. Afinal, tinham uma história que não podia simplesmente ser apagada daquela maneira. O Papa, pensava Jacques de Molay, “não poderia ser tão insensível a um passado de lutas pela fé, como aquele que os dignatários do Templo possuiam.” Fosse como fosse, suas folhas de serviço falaria mais alto no momento da decisão.
Pobre Jaques de Molay! Da janela da sua cela, no edifício do Templo, ele podia ouvir os sinos repicando nas igrejas próximas. Eram os sinos de Saint- Martin, Saint- Germain-l’Auxerrois, e da imponente Catedral de Notre Dame, chamando os parisienses para a missa. Missa que ele nunca mais assistira, mesmo tendo rogado ao Papa que lhe concedesse esse privilégio. Essa era uma das coisas que mais lhe fazia falta. Lembrava, com prazer, as missas que assistia, todos os dias, na capela do Templo. Como era linda a liturgia daquelas cerimônias. Gostava dessas recordações. Mas essas lembranças também vinham contaminada de mágua. Como podiam acusar a ele, que era tão rigoroso e estrito observador dos ritos prescritos pela Santa Madre Igreja, de ser impenitente, idólatra, herege? Ele, que sempre fora tão religioso, que assistia missas todos os dias e nunca deixava de cumprir os sacramentos, de fazer suas orações e dar esmolas para os pobres? Quem seria mais católico do que ele?
Desde que voltara de Chinon, não vira mais os seus companheiros de infortúnio, embora soubesse que eles também eram prisioneiros no mesmo edifício. Tinham sido encarcerados em celas separadas. Seus algozes ainda temiam uma conspiração.

Foi só em 22 de dezembro de 1313, quase um ano depois da extinção da Ordem, que ele recebeu a visita de três cardeais enviados por Clemente V. Acompanhados por um grupo de prelados, vinham para fazer um novo interrogatório. Eram eles os bispos Arnaud de Farges, sobrinho de Clemente V, Arnaud de Novelli, bispo de Citeaux e Nicolas de Freauville, um padre que já atuara como como confessor de Filipe, o Belo.
Molay e seus companheiros, com as marcas dos longo anos de cativeiro e das torturas sofridas, visivelmente expostas em seus corpos mutilados, apresentam-se frente aos inquisidores, agora cheios de esperança. O processo enfim, será encerrado. A Ordem já foi extinta. Qual a vantagem de se manter na prisão os comandantes de uma organização que já não mais existe? Não tinham os seus Irmãos, nos outros reinos, e em algumas preceptoris da França, sido absolvidos e autorizados a viver como monges em outras Ordens? Por que não poderia a eles, que tantos serviços prestaram á Igreja, ser deferido o mesmo privilégio? Mais do que a qualquer outro eles o mereciam.
 
– Faço saber que vossas vidas serão poupadas se ratificardes as confissões feitas em Chinon, por ocasião do vosso primeiro interrogatório – diz Arnaud de Farges, nomeado presidente da comissão.
Essa proposta é feita em separado, aos quatro prisioneiros, para que nenhum deles saiba o que o outro respondeu. As confissões a que o bispo Arnaud se refere são aquelas que foram dadas a Guilherme de Paris, por ocasião do primeiro interrogatório, quando eles haviam reconhecido a prática dos crimes que lhe haviam sido imputados.
Mais de seis anos de masmorra e torturas haviam amolecido aqueles outrora valentes e bravos cavaleiros. Jacques de Molay, especialmente, era agora um alquebrado ancião de setenta anos, cujo vulto esguio parecia um caniço, encimado por uma cabeça barbada, solto dentro de uma puída camisola branca. Nada do que fora o altivo Grão-Mestre da mais poderosa Ordem de cavalaria do mundo ocidental restava nele. Apenas a vida, que ele tinha a esperança de conservar. Foi por isso que ele, e também os outros três dignatários da Ordem, confirmaram as confissões feitas em Chinon.
A sentença final sai a 18 de março de 1314. Ela é lida publicamente, em cima de um tablado, erguido em frente á praça da Catedral de Notre Dame. Esse tablado era usado como cadafalso, onde se montava o cepo para decapitar criminosos sentenciados pelos tribuanais civis.
Perante uma platéia de centenas de curiosos parisienses,que usualmente constuma se aglomerar ali para ouvir as sentenças do Tribunal de Inquisição e as proclamações reais, Jacques de Molay e seus Irmãos, grandes dignatários da Ordem do Templo, acorrentados uns aos outros por correntes presas em seus tornozelos, estão em pé, em cima do tablado. Parecem quatro espectros, egressos de túmulos recém abertos, com aquelas hirsutas barbas que lhes caem até o peito, as faces encovadas, os olhos mortiços e os corpos tão magros que só parecem existir para segurar as esvoaçantes camisolas, sujas e rotas, que sacodem ao vento.
Não são poucas as vozes que se levantam da platéia.
– Idolatras! Usurários! Assassinos! Sodomitas!
– Morte aos hereges!
– Á fogueira com eles!
 
O bispo faz um sinal de silêncio para a turba. Ele vai ler a sentença.
– Estes quatro homens – aponta o bispo Arnaud para os vultos fantasmagóricos que estão perfilados atrás dele – confessaram pública e abertamente os crimes de que foram acusados e nunca mostraram, durante o tempo em que ficaram na prisão, estar arrependidos deles. Por isso, são condenados á prisão perpétua e severa, pelo resto de suas vidas.
 

A reação da turba oscila entre o regosijo e a decepção.
– É isso mesmo. Que apodreçam nas masmorras esses hereges malditos! – gritam aqueles a quem a senteça agradou.
– Não, não! – vociferam os decepcionados.– Queremos vê-los arder na fogueira!
Hugo de Pairaud e Geoffroy de Gonneville ajoelham-se no tablado. Dão graças a Deus e agradecem ao Papa pela sentença que não exige o preço de suas vidas. Conformam-se em viver o que resta de suas miseráveis existências na prisão. Pelo menos estarão vivos e não serão mais torturados. O pesadelo acabou.
Mas isso não satisfaz Jacques de Molay, o Grão- Mestre do Templo, nem Geoffrey de Charney, grande Visitador da França. Nesse momento crucial, quando todas suas esperanças se desvanecem, eles parecem recuperar o antigo orgulho e a velha coragem que os fez temíveis nos campos de batalha do Oriente Médio. A camisola rota e encardida que vestem nem de longe lembra o garboso manto branco, com a cruz vermelha no peito. Mas nesse momento é como se eles tivessem vestido, de novo, o glorioso uniforme que os distinguira, e voltado aos seus dias de maior glória, quando cavalgavam ao lado de reis, comungavam com os grandes da Igreja e recebiam, submissos, os barões e nobres de todo mundo, que a eles procuravam para pedir favores.
Não. Sete anos de sofrimento, prisão, torturas, não seriam suficientes para purgar os únicos pecados que eles realmente tinham cometido? Sim. A teimosia e o orgulho, esses eram os únicos pecados que Jacques de Molay e Geoffrey de Charney reconheciam ter, de fato, cometido. Talvez, pensou Jacques de Molay, se não fosse tão teimoso, e não deixasse o orgulho falar mais alto, poderia ter aceito a sugestão do Papa, de fundir a Ordem do Templo com o Hospital. Desse modo teria salvo a Ordem e as vidas, dele, e de todos os seus Irmãos. Mas a arrogância da sua posição, como Mestre do Templo, falara mais alto. E agora, concluia o velho Mestre com um suspiro, com setenta anos de idade, que podia mais esperar da vida? Seria, então, a morte lenta e dolorosa, na prisão? Não. Melhor seria acabar com tudo, de maneira rápida e definitiva.
 
Jacques de Molay olhou para os dois dignatários, ajoelhados no tablado e fez uma careta de escárnio e desprezo.“Covardes”, pensou. Depois, olhou para o Irmão Charney e viu nos olhos dele a mesma determinação que a ele dava forças para levantar a cabeça e estufar o peito. Foi então que avançou dois passos e encarou a multidão. Geofroy de Charney, ao ver a  sua atitude, o acompanhou. E com toda firmeza que ainda lhe restava na voz, Jacques de Molay gritou para a comissão de bispos que se enfileiravam na frente do tablado :ele
– Tudo o que disseram aqui é falso! O que confessamos nesses interrogatórios não refletem a verdade. Fizemos essas confissões porque fomos persuadidos pelo Papa e pelo rei, que nos prometeram indulgências se o fizéssemos. Somos inocentes de tudo quanto nos acusam. Protestamos contra os cardeais e contra o arcebispo de Sens!
 

As pessoas que estão mais próximas do tablado ouvem o protesto e começam a murmurar. Transmitem aos que estão mais longe o que pensam que ouviram. De boca em boca corre a informação.
– Eles dizem que são inocentes.
– Estão acusando o Papa e o rei.
– Dizem que confessaram porque o Papa e o rei mandou.
 - Estão apelando para a clemência do rei.
A multidão se divide.
– Soltem os templários!– gritam alguns.
– Não creiam neles. São hereges – gritam outros.
– Vamos assar esses malditos – berra outro tanto de exaltados cidadãos.
Os bispos começam a ficar assustados. Algumas pedras começam a cair sobre o tablado. O preboste de Paris, temendo um tumulto que possa por em perigo a vida dos prisioneiros e dos prelados, chama os soldados. Estes fazem uma espécie de parede com seus escudos em volta dos prisioneiros e dos membros da comissão. A parede móvel abre caminho, a golpes de lança, pelo meio da turba irriquieta. Já livres da turba, os prisioneiros ão entregues ao preboste de Paris, que os faz subir na carroça que os trouxera até a praça. São levados de volta para suas celas.
Os bispos entram na Igreja de Notre Dame para confabular. Depois de duas horas de discussão, decidem que os prisioneiros deverão ser ouvidos novamente e a sentença que havia sido prolatada pelo arcebispo de Sens, na qualidade de presidente da Comissão de Inquisição deveria ser revogada. Imediatamente, a notícia é levada ao rei.
– Isso não acontecerá! – vociferou Filipe, dando um murro no tampo da imensa mesa de carvalho do seu gabinete de trabalho. – Chamai messires Nogaret, Valois e Enguerrand – ordenou ao secretário.
– Que dizeis dessa notícia – perguntou o rei aos seus conselheiros. – Esses malditos templários voltaram atrás em suas confissões novamente e os cardeais estão querendo reabrir todo o processo.
– O Papa poderá concordar com eles, agora que os bens do Templo já foram destinados – disse Enguerrand.– Como sabeis, ele sempre foi reticente em condenar essa gente.
– Sire, não podeis deixar que isso aconteça – disse Nogaret. – Perdereis autoridade se isso acontecer.
– Que diz o meu caro irmão, messier de Valois? – perguntou Filipe, olhando para Carlos de Valois, que até então se conservara calado.  
– Precisais por um fim nisso, Sire – disse Carlos de Valois. – Talvez fosse melhor libertá-los – Afinal, eles não representam mais nenhum perigo para o reino – completou.
 
Valois sabia que Filipe, Nogaret e Engerrand jamais concordariam com isso. Falara apenas para contrariar os dois outros conselheiros, de quem tinha ciúme e inveja por causa da influência que detinham junto ao rei. Estes, por sua vez, também tinham consciência de que o irmão do rei nunca fora a favor daquele processo contra os templários. Ele sempre criti-cara essa ação, que considerava um atentado contra a instituição da cavalaria.
Mas Valois sabia que sua voz, naquele caso, era letra morta.
– Os templários são hereges. Isso está mais do que provado – insistiu Nogaret.
– Devem ser queimados – completou Enguerand
– Além disso – completou Nogaret, olhando para Valois, – todos os templários que insistiram em sua inocência foram queimados. Não tem sentido poupar seus comandantes. O povo não vai entender essa justiça, Majestade.
Valois lembra que somente Jacques de Molay e Geoffroy de Charney protestaram contra a sentença. Os outros dois haviam concordado com ela.
–  Dareis todos como lenha para a vossa fogueira? - perguntou ele, com sarcasmo, para Nogaret.
Todos olharam para o rei.
– Pois que sejam ambos queimados, e os outros dois cumpram a prisão perpétua, como foi determinado – disse, finalmente, o rei.
 Dessa forma, selava-ve a sorte dos quatro últimos templários, na França.
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Da obra "Filhos da Viúva", A Conspiração dos Templários- título provisório, no prelo.