Capítulo XI- A defesa dos Templários
Filipe, o Belo, e seu fiel ministro Guarda-Selos, Guilherme de Nogaret, haviam obtido o que queriam. A Ordem do Templo, em meados de 1308, já estava praticamente destruída. Com todos os bens móveis e imóveis, direitos, créditos, haveres e praticamente tudo que tivesse valor sob sua guarda, o rei podia deixar agora, a cargo da Igreja, a condução do inquérito. Nada que fosse feito dali para diante, não importa o fosse apurado, mudariao destino da Ordem, nem alteraria o que tinha sido feito, pensava o rei.
Clemente V tinha aplacado sua consciência com o depoimento dos setenta e um Templários renegados, que com poucas defecções, haviam confirmado as acusações. Podia, agora, posar como juiz imparcial e ordenar a condução de um inquérito verdadeiro, de acordo com o devido processo legal.
Assim, os interrogatórios e os atos processuais continuarão, a intervalos, até o dia18 de março de 1313, quando os quatro grandes dignatários da Ordem, Jacques de Molay, Geoffroy de Charney, Geofroy de Gonneville e Hugo de Pairaud, foram finalmente condenados á prisão perpétua. Molay e Charney, por terem se insurgido contra essa sentença, seriam posteriormente sentenciados á fogueira.
Todavia, entre 17 de agosto de 1308 e 18 de março de 1313, muita água ainda rolaria sobre essa ponte, e muitas idas e vindas no processo dos Templários ocorreria. O Papa havia instruído seus cardeais a tentar convencer os altos dignatários do Templo que uma confissão espontânea seria mais conveniente para eles, pois teriam suas vidas poupadas e suas almas salvas por meio do sacramento e da expiação. Mandou ressaltar que de nada adiantaria negar coisas que já estavam sobejamente provadas, já que havia muitas provas para dar aos julgadores suficientes elementos de convicção. Em outras palavras, o caso já estava praticamente julgado, e o que restava agora, para os acusados, era a alternativa de que eles se tornassem convictos e apelassem para a única defesa que lhes restava, ou seja, o reconhecimento das faltas, o arrependimento e o pedido de clemência.
– A Igreja não deseja o mal para seus filhos – disse o bispo Estevão de Suisy, nomeado Primeiro Inquisidor. – Todos os homens são passíveis de cometer pecado, e serem desviados dos caminhos de Deus. O que não se perdoa é o homem permanescer no pecado quando se lhe mostra o caminho correto.
– Vossos desvios de conduta já foram suficientemente verificados e comprovados, e vós mesmos já os ratifiscastes, embora depois tenham se retratado – continuou o bispo. – Cabe-vos, agora, fazer vossos atos de contrição e mediante sincero arrependimento, voltar ao seio da Santa Madre Igreja. Com isso – enfatizou o bispo – também vossas vidas serão poupadas e vós não sofrereis mais os constrangimentos a que fostes submetidos nos interratórios precedentes.
Os altos diganatários da Ordem não deixaram de observar a mudança de estratégia. Agora era a própria Igreja que pedia a colaboração deles no sentido de dar a esse inquérito uma aparência de legalidade.
– Vós agora, estais nas mãos do Santo Papa, e vossas vidas e bens estão salvaguardados. Podeis, portanto, falar livremente e sem constrangimentos. Vossas declarações serão dadas na presença de notários públicos e vários outros homens de bens, para que não se pairem nenhuma dúvida sobre o que foi dito e registrado.
Os homens de bem, incluiam, naturalmente, Guilherme de Plaisians, Gulherme de Nogaret e Gulherme de Paris, além de vários bispos, advogados e autoridades civis e eclesiáticas. Foram esses três cavalheiros que levaram, com indisfarçavel alegria, a Filipe o Belo, as confissões feitas pelos quatro grandes dignatários do Templo.
– A sorte do Templo está selada – disse Nogaret a Filipe.
De fato, Jacques de Molay e os demais dignatários do Templo haviam sucumbido aos argumentos dos bispos e confessaram todas as acusações que lhe tinham sido feitas por Guilherme de Paris e confessadas por eles no primeiro interrogatório. Essas confissões haviam sido feitas perante notários públicos, na presença de uma seleta platéia composta por bispos e outras autoridades civis e eclesiásticas. Não havia como ser negada nem contradita.
E mais. Como havia sido sugerido pelos inquisidores, os dignatários do Templo lançaram-se de joelhos frente aos inquisidores e proclamaram seu arrependimento. Pediram sua absolvição e imploraram por clemência, em meio a copiosas lágrimas. Todo o processo estava pois, concluído, naquillo que lhe interessava.
Filipe havia escrito a todos os reis cristãos para que seguissem seus passos e suprimissem a Ordem em seus respectivos reinos. O Papa havia feito o mesmo com sua carta de 22 de novembro de 1307. Assim, em toda a cristandade, os Templários estavam, agora, na ilegalidade. Na maioria desses reinos, entretanto, o destino desses famosos cavaleiros, que durante mais de dois séculos despertaram inveja, amor, ódio, cobiça e os mais intrigantes mistérios e especulações não foi o mesmo que Filipe esperava, como veremos. Mas de qualquer forma, a Ordem do Templo, embora ainda não oficialmente extinta naquele momento, era uma organização morta. O inquérito prosseguiria, entretanto, com a oitiva de testemunhas, em todas as dioceses da França. Para isso, uma comissão, presidida pelo arcebispo de Narbonne, Giles Aicellin, declarado inimigo dos Templários, foi nomeada por Clemente V e sancionada por Filipe, para colher esses depoimentos.
Foi declarado, por todo o país, que todo aquele que tivesse alguma informação que pudesse ser útil na defesa da Ordem que a apresentasse. Dos quatro grandes dignatários da Ordem, somente Jacques de Molay se mostrou disposto em fazê-lo.
– Eminências – disse o idoso e alquebrado Grão-Mestre – é inconcebível que uma Ordem como a nossa esteja em semelhante situação e que a Igreja queira destruí-la depois de ela ter prestado tantos serviços á causa da Igreja e da cristandade. – Eu seria um ser vil e miserável se não o fizesse, e por todos asssim considerado, depois de ter sido tão distinguido e honrado por ela.
– Entretanto – disse o venerando ancião, com lágrimas nos olhos – devo confessar-vos a minha incompetência nessas matérias, pois como todos vós sabeis, não tenho letras suficientes para dizer á vossas Iminências o que me passa no coração. – Reconheço – continuou o Grão-Mestre – que a nossa Ordem pecou em não contratar jurisconsultos e advogados, como fez o Hospital, para aconselhar-nos nos assuntos legais e canônicos. Se o tivéssemos feito– lamentou– certamente não estaríamos nesta situação, respondendo por crimes, que aos nossos olhos parecem uma vilania.
– Negais então que comestestes os crimes dos quais sóis acusados – perguntou Estevão de Suissy, enumerando todas as acusações novamente.
A cada uma delas Jacques de Molay persignou-se duas vezes e finalmente disse, com forte indignação, que lhe afogeava as faces ocultas pela hirsuta barba branca:
– Eu desafio a essas pessoas que me acusam de tais crimes que defendam diante de Deus suas imputações – trovejou o ancião, recuperando, por um instante, a veia guerreira que o alimentara durante toda sua vida.
– Não estais em condições de requerer o julgamento de Deus em ordálio – respondeu o inquisidor. – Não estais aqui sendo julgado pelo braço secular, perante os vossos pares, segundo as regras da cavalaria– completou o bispo.
Jacques de Molay caiu em si.
– Perdoaia-me, Eminências – Toda essa situação confunde de tal maneira o meu espírito, que não sei mais que vos responda. Todavia– continuou– se for da vontade de Deus, rogo a vós que sigais as regras dos tártaros e dos sarracenos, que cortam a cabeça e rasgam em pedaços os corpos de quem pratica os delitos dos quais nos acusam, ou de quem, falsamente os imputa a outros.
Os olhos da comissão recaem sobre o ancião alquebrado e andrajoso que agora chora copiosamente. Guilherme de Plaisan, presente nessa ocasião, não deixou de sentir uma certa pena desse velho cavaleiro, outrora tão altivo. “ O que a tortura e a prisão podem fazer a um homem ”,pensou o secretário do rei. “ Ele já nem sabe mais o que está falando.”
– Sou um cavaleiro iletrado e pobre – continuou o velho Grão-Mestre a sua defesa. – Pouco posso dizer-vos que possa contradizer tudo que foi dito neste tribunal. Mas posso afirmar-vos, Eminências, que a liturgia dos nossos cultos é mais bela em nossas capelas do que em qualquer igreja ou catedral, nela nada havendo de ofensivo ou contrário ao que determina a Santa Madre Igreja. A nossa Ordem – assegurou ainda Jacques de Molay, parecendo convencido da sua própria defesa – tem sido pródiga na prática da caridade. Nunca deixamos os pobres das nossas províncias sucumbir á fome e as doenças. Sempre demos a eles toda a assistência possível. Por fim – asseverou ele, com lágrimas nos olhos – nenhuma outra Ordem cristã derramou tanto o sangue dos seus Irmãos em defesa da fé cristã.
– Deveis vos lembrar – disse, ainda, o velho Grão-Mestre – que o nosso amado rei São Luís colocou os Templários na vanguarda do seu exército em todas suas lutas contra os sarracenos.
– Não é das passadas proezas da Ordem do Templo que se cuida aqui, mas dos seus vícios, sobejamente comprovados – disse, por fim, Estevão de Suissy, interrompendo a peroração do velho cavaleiro, que sem dúvida iria longe, pois Jacques de Molay parecia ter recobrado a sua velha coragem e estava disposto a puchar pela memória.
– Todas essas coisas são inúteis quando não se tem fé em Nosso Senhor Jesus Cristo – decretou o bispo – e vós, se algum dia a tiveste, a perdeste, pois ninguém se entregaria ás práticas que vos entregastes se assim fosse.
– Tendes razão quanto á fé – retrucou o Grão-Mestre. – Mas eu creio em um só Deus e na Santíssima Trindade e em todos os ensinamentos da Santa Madre Igreja. E sei que quando a alma é separada do corpo ela se mostra a todos como de fato é. Boa para quem é bom, má para quem é mau. Então cada um saberá o que é, realmente, a verdade de todas essas coisas que estão sendo feitas no momento.
As declarações de Jacques de Molay pouco fizeram eco na seleta platéia que foi reunida para a seção. Com certeza, o velho Grão-Mestre da outrora poderosa Ordem do Templo estava louco e suas declarações, contraditórias ao extremo, denunciavam a sua mente pertubada pelos anos de masmorra e tortura a que tinha sido submetido.
As mesmas conclusões tinham sido tiradas das declarações de outros membros da Ordem que se apresentaram espontaneamente para defendê-la.
Mas, pouco a pouco, as coisas começaram a mudar. Na seção de 3 de fevereiro de 1310, o preceptor de Payns, Ponsard de Gizy mostrou á comissão todos os ferimentos e aleijões que a tortura havia deixado no seu corpo e afirmara que todas as confissões haviam sido feitas devido ao ‘perigo e ao medo’ que fora inflingido aos Irmãos. Sustentou que todas as acusações feitas á Ordem eram falsas. Essa era uma atitude desconhecida até aquele momento.
Nas seções realizadas entre 7 e 27 de fevereiro de 1310, outros 527 cavaleiros Templários, em toda a França, repetiram as declarações do preceptor de Payns.
Em todas as províncias da França e no ultramar, começaram a aparecer novos depoimentos, onde a maioria dos Templários ouvidos negava veementemente as acusações. Pontos e contrapontos foram apresentados nas acusações e na defesa da Ordem, que fizeram com que o processo começasse a ter um rumo que ninguém teria previsto.
Por volta do fim desse ano, os Templários já haviam articulado uma reação jurídica que começou a preocupar Clemente V. Os Templários instruídos, quando interrogados, levantaram questões processuais embaraçosas, que mesmo para a autoridade papal envolvida e o próprio poder que Filipe detinha na questão, suscitavam certo perigo.
As denúncias de tortura irrestrita, o confisco dos bens da Ordem, a obstinada negação que a maioria dos acusados estavam mantendo, em todas as províncias, começou a suscitar Du-vidas nos espíritos dos inquisidores. A legalidade do processo voltava a ser contestada. Os Templários mais preparados em questões jurídicas estavam alegando cerceamento do direito de defesa. Denunciavam a ilêgalidade das prisões. Diziam eue motivos políticos e estranhos ás acusações que estavam sendo feitas estavam na origem da questão. Que Os Templários haviam sidos arrebanhados como ovelhas em um redil e levados para o abatedouro com uma “fúria destrutiva”. Que tinham sido coagidos pela tortura física e moral, a qual havia levado muitos Irmãos á morte e á invalidez permanente; que tinham sido obrigados a mentir contra si mesmos e contra a Ordem.
– A tortura – afirmou Pedro de Bolonha, o monge Templário que atuou como advogado da Ordem, – removia qualquer liberdade de espírito, que é o que todo homem bom devia ter. Ela priva o homem do conhecimento, da lembrança e do entendimento. Sob tortura, o homem mais forte sucumbe e diz qualquer coisa que quiserem que ele diga.
Isso, os preocupados prelados e bispos que compunham a comissão, onde havia vários jurisconsultos, não podiam deixar de considerar. Afinal de contas, sua missão era fazer justiça. Ainda que houvesse uma rematada hipocrisia em tudo aquilo, pois que a maioria ali estava a soldo de Filipe o Belo, ou sob a influência de Clemente V, era preciso manter uma máscara de legalidade e isenção em tudo aquilo.
Ainda assim, a defesa dos Templários, feita por Pedro de Bolonha e Reinald de Provins, deram o que pensar á comissão presidida por Estevão de Suissy. Mas este era um prelado ligado á Filipe. Logo fez ver ao rei o rumo perigoso que as coisas iam tomando. O que mais tinha suscitado dúvida nos espíritos dos prelados fora a peroração de Pedro de Bolonha. Ela dizia que todos os depoimentos que incriminavam a Ordem tinham sido obtidos de forma ilegal e subreptícia, pois tinham sido obtidos á custa de tortura e corrupção. Mostrou aos membros da comissão, cartas onde o rei Filipe prometia ás testemunhas “ uma boa provisão e elevados rendimentos durante toda a vida, para que confessassem os referidos crimes, sempre sustentando que a Ordem do Templo já estava condenada” e portanto, qualquer resistência seria inútil e danosa para a vida delas.
O que mais impressionou os membros da comissão, no entanto foi a pergunta a eles feita por Pedro de Bolonha:
– É crível que tantos homens ilustres – perguntou o arguto advogado – iminentes e poderosos, sejam tão tolos e loucos, a ponto de perderem suas almas entrando para uma Ordem que incentiva tais práticas? Cavaleiros dessa qualidade, que derramaram seu sangue em defesa da fé, se fossem sujeitos a todas essas iniqüidades, não teriam, eles mesmos, gritado e divulgado o assunto para o mundo inteiro?
Eis ai uma questão que os preocupados membros da comissão não sabiam responder. Afinal, a maioria deles sempre tivera no maior respeito e na melhor consideração os cavaleiros de Cristo e reconheciam a sua coragem e devoção na luta contra os infiéis.
Uma semente de dúvida havia sido lançada sobre esse assunto todo, de forma que os bispos que deveriam julgar a questão começaram a pensar que a coisa toda não era tão simples como havia sido passada a eles. Talvez os Templários não fossem tão culpados como todas as evidências apresentadas, até aquele momento, levavam a crer.
Filipe, entretanto, já estava perdendo a paciência com essa recalcitrância da Igreja de terminar o que ele havia começado. Durante todo o ano de 1310 o processo havia emperrado com essas discussões. O Concílio reunido em Vienne, em fins de outubro de 1310, para dissolver a Ordem, acabou sendo adiado por um ano, porque a comissão encarregada não havia produzido um relatórito final.
Foi então que Filipe revolveu atropelar de vez o processo, apelando para sua autoridade e para os homens que havia comprrado dentro da Igreja. Um deles era o arcebisbo de Sens, Filipe de Marigny, irmão do seu principal ministro Enguerrand de Marigny. Esse servil e corrupto arcebispo, que havia subido na vida graças ás chicanas e ao nepotismo que lhe prodigalizava a posição do seu irmão na corte, iria, juntamente com outro indivíduo do mesmo caráter, Giles Aicelin, arcebispo de Narbonne, presidente da comissão, exercer um papel preponderante na perdição dos Templários.
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Da obra "Filhos da Viúva", A Conspiração dos Templários- título provisório, no prelo.
Filipe, o Belo, e seu fiel ministro Guarda-Selos, Guilherme de Nogaret, haviam obtido o que queriam. A Ordem do Templo, em meados de 1308, já estava praticamente destruída. Com todos os bens móveis e imóveis, direitos, créditos, haveres e praticamente tudo que tivesse valor sob sua guarda, o rei podia deixar agora, a cargo da Igreja, a condução do inquérito. Nada que fosse feito dali para diante, não importa o fosse apurado, mudariao destino da Ordem, nem alteraria o que tinha sido feito, pensava o rei.
Clemente V tinha aplacado sua consciência com o depoimento dos setenta e um Templários renegados, que com poucas defecções, haviam confirmado as acusações. Podia, agora, posar como juiz imparcial e ordenar a condução de um inquérito verdadeiro, de acordo com o devido processo legal.
Assim, os interrogatórios e os atos processuais continuarão, a intervalos, até o dia18 de março de 1313, quando os quatro grandes dignatários da Ordem, Jacques de Molay, Geoffroy de Charney, Geofroy de Gonneville e Hugo de Pairaud, foram finalmente condenados á prisão perpétua. Molay e Charney, por terem se insurgido contra essa sentença, seriam posteriormente sentenciados á fogueira.
Todavia, entre 17 de agosto de 1308 e 18 de março de 1313, muita água ainda rolaria sobre essa ponte, e muitas idas e vindas no processo dos Templários ocorreria. O Papa havia instruído seus cardeais a tentar convencer os altos dignatários do Templo que uma confissão espontânea seria mais conveniente para eles, pois teriam suas vidas poupadas e suas almas salvas por meio do sacramento e da expiação. Mandou ressaltar que de nada adiantaria negar coisas que já estavam sobejamente provadas, já que havia muitas provas para dar aos julgadores suficientes elementos de convicção. Em outras palavras, o caso já estava praticamente julgado, e o que restava agora, para os acusados, era a alternativa de que eles se tornassem convictos e apelassem para a única defesa que lhes restava, ou seja, o reconhecimento das faltas, o arrependimento e o pedido de clemência.
– A Igreja não deseja o mal para seus filhos – disse o bispo Estevão de Suisy, nomeado Primeiro Inquisidor. – Todos os homens são passíveis de cometer pecado, e serem desviados dos caminhos de Deus. O que não se perdoa é o homem permanescer no pecado quando se lhe mostra o caminho correto.
– Vossos desvios de conduta já foram suficientemente verificados e comprovados, e vós mesmos já os ratifiscastes, embora depois tenham se retratado – continuou o bispo. – Cabe-vos, agora, fazer vossos atos de contrição e mediante sincero arrependimento, voltar ao seio da Santa Madre Igreja. Com isso – enfatizou o bispo – também vossas vidas serão poupadas e vós não sofrereis mais os constrangimentos a que fostes submetidos nos interratórios precedentes.
Os altos diganatários da Ordem não deixaram de observar a mudança de estratégia. Agora era a própria Igreja que pedia a colaboração deles no sentido de dar a esse inquérito uma aparência de legalidade.
– Vós agora, estais nas mãos do Santo Papa, e vossas vidas e bens estão salvaguardados. Podeis, portanto, falar livremente e sem constrangimentos. Vossas declarações serão dadas na presença de notários públicos e vários outros homens de bens, para que não se pairem nenhuma dúvida sobre o que foi dito e registrado.
Os homens de bem, incluiam, naturalmente, Guilherme de Plaisians, Gulherme de Nogaret e Gulherme de Paris, além de vários bispos, advogados e autoridades civis e eclesiáticas. Foram esses três cavalheiros que levaram, com indisfarçavel alegria, a Filipe o Belo, as confissões feitas pelos quatro grandes dignatários do Templo.
– A sorte do Templo está selada – disse Nogaret a Filipe.
De fato, Jacques de Molay e os demais dignatários do Templo haviam sucumbido aos argumentos dos bispos e confessaram todas as acusações que lhe tinham sido feitas por Guilherme de Paris e confessadas por eles no primeiro interrogatório. Essas confissões haviam sido feitas perante notários públicos, na presença de uma seleta platéia composta por bispos e outras autoridades civis e eclesiásticas. Não havia como ser negada nem contradita.
E mais. Como havia sido sugerido pelos inquisidores, os dignatários do Templo lançaram-se de joelhos frente aos inquisidores e proclamaram seu arrependimento. Pediram sua absolvição e imploraram por clemência, em meio a copiosas lágrimas. Todo o processo estava pois, concluído, naquillo que lhe interessava.
Filipe havia escrito a todos os reis cristãos para que seguissem seus passos e suprimissem a Ordem em seus respectivos reinos. O Papa havia feito o mesmo com sua carta de 22 de novembro de 1307. Assim, em toda a cristandade, os Templários estavam, agora, na ilegalidade. Na maioria desses reinos, entretanto, o destino desses famosos cavaleiros, que durante mais de dois séculos despertaram inveja, amor, ódio, cobiça e os mais intrigantes mistérios e especulações não foi o mesmo que Filipe esperava, como veremos. Mas de qualquer forma, a Ordem do Templo, embora ainda não oficialmente extinta naquele momento, era uma organização morta. O inquérito prosseguiria, entretanto, com a oitiva de testemunhas, em todas as dioceses da França. Para isso, uma comissão, presidida pelo arcebispo de Narbonne, Giles Aicellin, declarado inimigo dos Templários, foi nomeada por Clemente V e sancionada por Filipe, para colher esses depoimentos.
Foi declarado, por todo o país, que todo aquele que tivesse alguma informação que pudesse ser útil na defesa da Ordem que a apresentasse. Dos quatro grandes dignatários da Ordem, somente Jacques de Molay se mostrou disposto em fazê-lo.
– Eminências – disse o idoso e alquebrado Grão-Mestre – é inconcebível que uma Ordem como a nossa esteja em semelhante situação e que a Igreja queira destruí-la depois de ela ter prestado tantos serviços á causa da Igreja e da cristandade. – Eu seria um ser vil e miserável se não o fizesse, e por todos asssim considerado, depois de ter sido tão distinguido e honrado por ela.
– Entretanto – disse o venerando ancião, com lágrimas nos olhos – devo confessar-vos a minha incompetência nessas matérias, pois como todos vós sabeis, não tenho letras suficientes para dizer á vossas Iminências o que me passa no coração. – Reconheço – continuou o Grão-Mestre – que a nossa Ordem pecou em não contratar jurisconsultos e advogados, como fez o Hospital, para aconselhar-nos nos assuntos legais e canônicos. Se o tivéssemos feito– lamentou– certamente não estaríamos nesta situação, respondendo por crimes, que aos nossos olhos parecem uma vilania.
– Negais então que comestestes os crimes dos quais sóis acusados – perguntou Estevão de Suissy, enumerando todas as acusações novamente.
A cada uma delas Jacques de Molay persignou-se duas vezes e finalmente disse, com forte indignação, que lhe afogeava as faces ocultas pela hirsuta barba branca:
– Eu desafio a essas pessoas que me acusam de tais crimes que defendam diante de Deus suas imputações – trovejou o ancião, recuperando, por um instante, a veia guerreira que o alimentara durante toda sua vida.
– Não estais em condições de requerer o julgamento de Deus em ordálio – respondeu o inquisidor. – Não estais aqui sendo julgado pelo braço secular, perante os vossos pares, segundo as regras da cavalaria– completou o bispo.
Jacques de Molay caiu em si.
– Perdoaia-me, Eminências – Toda essa situação confunde de tal maneira o meu espírito, que não sei mais que vos responda. Todavia– continuou– se for da vontade de Deus, rogo a vós que sigais as regras dos tártaros e dos sarracenos, que cortam a cabeça e rasgam em pedaços os corpos de quem pratica os delitos dos quais nos acusam, ou de quem, falsamente os imputa a outros.
Os olhos da comissão recaem sobre o ancião alquebrado e andrajoso que agora chora copiosamente. Guilherme de Plaisan, presente nessa ocasião, não deixou de sentir uma certa pena desse velho cavaleiro, outrora tão altivo. “ O que a tortura e a prisão podem fazer a um homem ”,pensou o secretário do rei. “ Ele já nem sabe mais o que está falando.”
– Sou um cavaleiro iletrado e pobre – continuou o velho Grão-Mestre a sua defesa. – Pouco posso dizer-vos que possa contradizer tudo que foi dito neste tribunal. Mas posso afirmar-vos, Eminências, que a liturgia dos nossos cultos é mais bela em nossas capelas do que em qualquer igreja ou catedral, nela nada havendo de ofensivo ou contrário ao que determina a Santa Madre Igreja. A nossa Ordem – assegurou ainda Jacques de Molay, parecendo convencido da sua própria defesa – tem sido pródiga na prática da caridade. Nunca deixamos os pobres das nossas províncias sucumbir á fome e as doenças. Sempre demos a eles toda a assistência possível. Por fim – asseverou ele, com lágrimas nos olhos – nenhuma outra Ordem cristã derramou tanto o sangue dos seus Irmãos em defesa da fé cristã.
– Deveis vos lembrar – disse, ainda, o velho Grão-Mestre – que o nosso amado rei São Luís colocou os Templários na vanguarda do seu exército em todas suas lutas contra os sarracenos.
– Não é das passadas proezas da Ordem do Templo que se cuida aqui, mas dos seus vícios, sobejamente comprovados – disse, por fim, Estevão de Suissy, interrompendo a peroração do velho cavaleiro, que sem dúvida iria longe, pois Jacques de Molay parecia ter recobrado a sua velha coragem e estava disposto a puchar pela memória.
– Todas essas coisas são inúteis quando não se tem fé em Nosso Senhor Jesus Cristo – decretou o bispo – e vós, se algum dia a tiveste, a perdeste, pois ninguém se entregaria ás práticas que vos entregastes se assim fosse.
– Tendes razão quanto á fé – retrucou o Grão-Mestre. – Mas eu creio em um só Deus e na Santíssima Trindade e em todos os ensinamentos da Santa Madre Igreja. E sei que quando a alma é separada do corpo ela se mostra a todos como de fato é. Boa para quem é bom, má para quem é mau. Então cada um saberá o que é, realmente, a verdade de todas essas coisas que estão sendo feitas no momento.
As declarações de Jacques de Molay pouco fizeram eco na seleta platéia que foi reunida para a seção. Com certeza, o velho Grão-Mestre da outrora poderosa Ordem do Templo estava louco e suas declarações, contraditórias ao extremo, denunciavam a sua mente pertubada pelos anos de masmorra e tortura a que tinha sido submetido.
As mesmas conclusões tinham sido tiradas das declarações de outros membros da Ordem que se apresentaram espontaneamente para defendê-la.
Mas, pouco a pouco, as coisas começaram a mudar. Na seção de 3 de fevereiro de 1310, o preceptor de Payns, Ponsard de Gizy mostrou á comissão todos os ferimentos e aleijões que a tortura havia deixado no seu corpo e afirmara que todas as confissões haviam sido feitas devido ao ‘perigo e ao medo’ que fora inflingido aos Irmãos. Sustentou que todas as acusações feitas á Ordem eram falsas. Essa era uma atitude desconhecida até aquele momento.
Nas seções realizadas entre 7 e 27 de fevereiro de 1310, outros 527 cavaleiros Templários, em toda a França, repetiram as declarações do preceptor de Payns.
Em todas as províncias da França e no ultramar, começaram a aparecer novos depoimentos, onde a maioria dos Templários ouvidos negava veementemente as acusações. Pontos e contrapontos foram apresentados nas acusações e na defesa da Ordem, que fizeram com que o processo começasse a ter um rumo que ninguém teria previsto.
Por volta do fim desse ano, os Templários já haviam articulado uma reação jurídica que começou a preocupar Clemente V. Os Templários instruídos, quando interrogados, levantaram questões processuais embaraçosas, que mesmo para a autoridade papal envolvida e o próprio poder que Filipe detinha na questão, suscitavam certo perigo.
As denúncias de tortura irrestrita, o confisco dos bens da Ordem, a obstinada negação que a maioria dos acusados estavam mantendo, em todas as províncias, começou a suscitar Du-vidas nos espíritos dos inquisidores. A legalidade do processo voltava a ser contestada. Os Templários mais preparados em questões jurídicas estavam alegando cerceamento do direito de defesa. Denunciavam a ilêgalidade das prisões. Diziam eue motivos políticos e estranhos ás acusações que estavam sendo feitas estavam na origem da questão. Que Os Templários haviam sidos arrebanhados como ovelhas em um redil e levados para o abatedouro com uma “fúria destrutiva”. Que tinham sido coagidos pela tortura física e moral, a qual havia levado muitos Irmãos á morte e á invalidez permanente; que tinham sido obrigados a mentir contra si mesmos e contra a Ordem.
– A tortura – afirmou Pedro de Bolonha, o monge Templário que atuou como advogado da Ordem, – removia qualquer liberdade de espírito, que é o que todo homem bom devia ter. Ela priva o homem do conhecimento, da lembrança e do entendimento. Sob tortura, o homem mais forte sucumbe e diz qualquer coisa que quiserem que ele diga.
Isso, os preocupados prelados e bispos que compunham a comissão, onde havia vários jurisconsultos, não podiam deixar de considerar. Afinal de contas, sua missão era fazer justiça. Ainda que houvesse uma rematada hipocrisia em tudo aquilo, pois que a maioria ali estava a soldo de Filipe o Belo, ou sob a influência de Clemente V, era preciso manter uma máscara de legalidade e isenção em tudo aquilo.
Ainda assim, a defesa dos Templários, feita por Pedro de Bolonha e Reinald de Provins, deram o que pensar á comissão presidida por Estevão de Suissy. Mas este era um prelado ligado á Filipe. Logo fez ver ao rei o rumo perigoso que as coisas iam tomando. O que mais tinha suscitado dúvida nos espíritos dos prelados fora a peroração de Pedro de Bolonha. Ela dizia que todos os depoimentos que incriminavam a Ordem tinham sido obtidos de forma ilegal e subreptícia, pois tinham sido obtidos á custa de tortura e corrupção. Mostrou aos membros da comissão, cartas onde o rei Filipe prometia ás testemunhas “ uma boa provisão e elevados rendimentos durante toda a vida, para que confessassem os referidos crimes, sempre sustentando que a Ordem do Templo já estava condenada” e portanto, qualquer resistência seria inútil e danosa para a vida delas.
O que mais impressionou os membros da comissão, no entanto foi a pergunta a eles feita por Pedro de Bolonha:
– É crível que tantos homens ilustres – perguntou o arguto advogado – iminentes e poderosos, sejam tão tolos e loucos, a ponto de perderem suas almas entrando para uma Ordem que incentiva tais práticas? Cavaleiros dessa qualidade, que derramaram seu sangue em defesa da fé, se fossem sujeitos a todas essas iniqüidades, não teriam, eles mesmos, gritado e divulgado o assunto para o mundo inteiro?
Eis ai uma questão que os preocupados membros da comissão não sabiam responder. Afinal, a maioria deles sempre tivera no maior respeito e na melhor consideração os cavaleiros de Cristo e reconheciam a sua coragem e devoção na luta contra os infiéis.
Uma semente de dúvida havia sido lançada sobre esse assunto todo, de forma que os bispos que deveriam julgar a questão começaram a pensar que a coisa toda não era tão simples como havia sido passada a eles. Talvez os Templários não fossem tão culpados como todas as evidências apresentadas, até aquele momento, levavam a crer.
Filipe, entretanto, já estava perdendo a paciência com essa recalcitrância da Igreja de terminar o que ele havia começado. Durante todo o ano de 1310 o processo havia emperrado com essas discussões. O Concílio reunido em Vienne, em fins de outubro de 1310, para dissolver a Ordem, acabou sendo adiado por um ano, porque a comissão encarregada não havia produzido um relatórito final.
Foi então que Filipe revolveu atropelar de vez o processo, apelando para sua autoridade e para os homens que havia comprrado dentro da Igreja. Um deles era o arcebisbo de Sens, Filipe de Marigny, irmão do seu principal ministro Enguerrand de Marigny. Esse servil e corrupto arcebispo, que havia subido na vida graças ás chicanas e ao nepotismo que lhe prodigalizava a posição do seu irmão na corte, iria, juntamente com outro indivíduo do mesmo caráter, Giles Aicelin, arcebispo de Narbonne, presidente da comissão, exercer um papel preponderante na perdição dos Templários.
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Da obra "Filhos da Viúva", A Conspiração dos Templários- título provisório, no prelo.