A emergência do outro: a produção autobiográfica e memorialística não-conservadora em ação

Paula Regina Scoz Domingos Damázio

UFSC

“O objetivo da diferença cultural é rearticular a soma do conhecimento a partir da perspectiva da posição de significação da minoria, que resiste à totalização – a repetição que não retornará como o mesmo, o menos-na-origem que resulta em estratégias políticas e discursivas nas quais acrescentar não soma, mas serve para perturbar o cálculo do poder e saber, produzindo outros espaços de significação subalterna”

Homi Bhabha

A “Prosa literária atual no Brasil” de Santiago nos instiga a pensar três pontos importantes, são eles: o problema da crítica à crítica e o problema da banalização do livro por um lado, e por outro as contribuições que as produções literárias como o memorialismo e autobiografismo deram, no período de abertura da política militar para o questionamento descentralizante do poder, isto é, no acento dado por essas produções à questão das minorias.

Iremos nos deter mais especificamente no último ponto levantado, mas antes é interessante por em relevo algumas das ideias de Santiago a respeito do problema da crítica à crítica que está estritamente ligado a questão da banalização do livro. A profissionalização do escritor, segundo Santiago, acarreta em condições que não necessariamente são ideais em se tratando de produção literária. Ao tornar-se profissional o escritor enquadra a sua obra dentro da estrutura econômica na qual o privilégio recai sobre o aspecto lucrativo do negócio, o que quer dizer que o livro passa a pertencer a 'esfera' capitalista, e como tal está subordinado a 'leis' próprias desse ambiente. Resumindo, o livro é mercadoria.

Se não há escape para os escritores fugirem dessa realidade há espaço para que a crítica esteja atenta ao tipo de literatura que começa a surgir de uma configuração como esta. É por isso que o crítico deve afastar-se da simples “compactuação” a esse mecanismo do lucro que acaba por gerar justamente um tipo de produção banalizada de literatura pautada na famosa frase “o que vende mais é que é bom”. Nesse sentido, a banalização é um problema para a produção literária e para o crítico criterioso que esteja consciente do automatismo de certas produções. Mas também é importante lembrar, como Machado e Santiago enfatizam, que a crítica muitas vezes apresenta seus próprios “mecanismos internos”, ou melhor, mascaramentos internos, que impedem por exemplo que se faça uma crítica franca e justa como disse Machado ficando refém da proximidade por parte do crítico a certos 'apegos pessoais'. Como diz Santiago o crítico precisa estar além da inveja, vingança ou maledicência para se considerar realmente como crítico.

Essas são questões importantes para pensarmos o papel da crítica em relação ao momento (capitalista) atual.

Agora, passando para a outra questão, primeiro devemos ter claro o que Santiago entende como sendo produção memorialística e produção autobiográfica.

Para começar é importante resgatarmos o termo 'anarquia formal' que permite termos uma visão geral das produções literárias das décadas de 60 à 80. O termo está ligado a ideia de proliferação de formas narrativas dentro do moderno (por excelência) gênero romance. A essa anarquia Santiago contrapõe as produções da década de 30 que preservavam conservadoramente alguns 'traços típicos' que no geral faziam com que se pudesse dizer “isto é um romance” ou “isto definitivamente não é um romance”. O predomínio do romance nas décadas 70/80 parece indicar uma certa tendência ao resgate da experiência romanesca enquanto autoconhecimento revelado pela escrita. É aí que aparecem as duas vertentes literárias da década de 70 e 80, principalmente: o memorialismo e a autobiográfia.

Não alongando a discussão podemos por essas duas vertentes dominantes (ou como chama Santiago as duas linhas) no período de 'abertura' lado a lado. Em relação ao autobiográfico Santiago nos esclarece que desde a década de 60 vemos esse tipo de produção ligada ainda a herança modernista de 22, alguns nomes chave seriam Drummond, Murilo Mendes e Pedro Nava. Os ex-exilados ao retornaram ao Brasil continuam com essa tradição dando é claro alguns toques a mais. Nesse caso, por exemplo, os jovens políticos dão vez a outra perspectiva que descentra a tradicional filiação à classe, ou seja, ao contrário da infantil recapitulação da vida vivida no clã (produção autobiográfica da década de 30) temos um tipo de produção que se põe fora dessa relação clã/indivíduo, indo ainda mais além, já que o discurso que emerge nesse tipo de produção é o discurso da minoria.

Por essa diferença Santiago faz a distinção entre memorialismo (geração 30) e autobiográfico (geração 70/80). Essa diferenciação passa também pelo caráter político-social assumido por essas duas gerações, podemos dizer que quanto aos modernistas havia um certo 'prendimento' com relação a sociedade patriarcal retratado pela inércia dos personagens. Por outro lado a relação entre ex-exilados e sociedade é totalmente outra, sendo que as narrativas trazem a luz justamente o que se escondeu por trás da ação política, ou seja, mostrou a história oculta dos marginalizados ou mais simplesmente daqueles que tentaram nadar contra a corrente.

É nesse sentido que a produção autobiográfica e a memorialística não-conservadora fez emergir outros saberes e tornaram patentes os sintomas da descrença nos processos revolucionários no qual a figura do intelectual era o centro (autoritário), e foram também com essas produções que se descobriu que o tecido social é formado por diferenças e que negar essa diferença é recalcar a liberdade individual. (A questão da diferença cultural foi trabalhada por teóricos como Homi Bhabha na década de 90, o seu “O local da cultura” é um exemplo disso.)

Falar das produções literárias autobiográficas e memorialísticas não-conservadoras das décadas de 60 à 80 é falar da emergência de um novo espaço no qual “a atenção dada à palavra do Outro” se realiza. É, por exemplo, na produção de um Darcy Ribeiro, com Maíra; de um Callado, com Sempreviva e com Silvério Trevisan e seu Em nome do desejo que vemos essas questões materializadas em preto/branco.