Capítulo VIII- Um Papa Confuso
 
Clemente V não era homem para enfrentar Filipe o Belo, mas a sua carta ao rei, censurando-o por prender os Templários franceses sem a sua autorização, e pior ainda, de ter se apossado dos bens do Templo, que teoricamente pertenciam á Igreja, representava um ato de coragem. Isso fez ver a Filipe que o caso não seria resolvido assim, tão simplesmente, pela força da sua autoridade. Depois, os Templários não constituíam apenas uma Ordem monástica de caráter miltar, mas sim uma organização que tinha ramificações profundas em toda a sociedade medieval. Dentro da Ordem havia lavradores, pastores, moageiros, palafreneiros, ferreiros, carpinteiros, e principalmente pedreiros. Estes últimos, mais organizados, haviam escapado, em sua grande maioria, da prisão, mas os primeiros, gente comum, que não possuía a rigidez do soldado endurecido na batalha, certamente não resistiriam a dor da tortura física, nem á pressão da tortura moral, e logo confessariam o que quer que quisessem.
E depois, como Clemente V logo perceberia, o que sabiam aqueles pobres diabos acerca das complicadas teorias doutrinárias que estavam sendo discutidas na questão Templária? Se nem os próprios cavaleiros, em sua grande maioria, analfabetos, as compreendia, como esperar que aldeões, ainda mais incultos, pudessem saber que estavam praticando heresia pelo simples fato de estarem ligados á Ordem do Templo pelos laços do direito feudal?
No entanto, a polícia de Filipe havia prendido indiscriminadamente todos os que foram encontrados nas preceptorias varejadas no território da França. E encarcerados em masmorras, estavam sendo torturados. Mesmo sabendo que esses “homens dos Templários”, como eram conhecidos a imensa estrutura de mão de obra que apoiava a organização templária, não eram, por assim dizer, iniciados nos segredos rituais da Ordem. Filipe, ao desancadear a sua operação contra o Templo, não deu qualquer instrução no sentido de poupá-los. Suas ordens foram para que fossem arrebanhados onde quer que se encontrassem, todos os que, de alguma forma, tivessem alguma ligação com o Templo.
A preocupação de Clemente não era sem razão, pois no mês de janeiro daquele ano, não havia se passado três meses da malfadada ação do dia 13 de outubro do ano anterior, e trinta e seis dos cento e trinta e quatro templários presos no Templo em Paris já tinham admitido alguma veracidade nas acusações feitas ao Templo. Se os próprios cavaleiros, homens treinados e enrijecidos na forja da guerra, haviam sucumbido á tortura, ou á mera ameaça dela, o que dizer de um simples aldeão que mal resistia ás intempéries da vida?
 
Porém, até mesmo o Papa ficou boquiaberto e sem ação quando soube que o próprio Jacques de Molay, Grão-Mestre da Ordem, havia confessado ter cometido os crimes que eram imputados à Ordem. Até aquele momento, ele havia duvidado que houvesse qualquer verdade naquelas acusações, mas as confissões dos maiores dignatários do Templo o deixou sem ação. E o pior disso tudo era a declaração dos acusados de que tudo o que haviam confessado era espontâneo e não lhes havia sido arrancado sob tortura.
Foi então que Clemente V resolveu entrar na dança. Se Filipe o Belo, lhe apresentava um fait acompli, ele iria aproveitar esse fato consumado em seu próprio benefício. Não havia se passado ainda um mês da confissão de Jacques de Molay, e ele estava escrevendo a todos os reis cristãos da Europa, pedindo a eles que, discretamente e sem alarde, com muito cuidado, prendessem todos os Templários em seus respectivos reinos e mantivessem os bens deles sob custódia para a Igreja, até que os devidos processos fossem concluídos e uma destinação pudesse ser dada. Nesse mesmo documento, intitulado Pastoralis praeminetiae, ele elogiava o rei Filipe pela sua iniciativa, que correspondia á fé e ao zelo que um rei cristão deve ter, mas que o comando de tais procedimentos era de exclusiva competência da Igreja e não devia ser exercido pelo braço secular. O medo de Clemente V era óbvio. Não queria que nos demais reinos cristãos ocorresse a mesma coisa que em França, ou seja, que os bens da Ordem fossem engordar os tesouros reais.
 
Clemente V não,vignorava as confissões feitas pelos dignatários do Templo em Paris, e que o próprio Jacques de Molay as confirmara perante os doutores da Universidade de Paris. Notícias da irada reação desses prelados já haviam chegado aos seus ouvidos. Por isso ele tomara a iniciativa de solicitar ás autoridades seculares, em todos os reinos cristãos, que tomassem as mesmas medidas que Filipe tomara em França, resguardadas, evidentemente, as devidas salvaguardas para que os bens do Templo não fossem simplesmente confiscados, como fizera o rei francês.
Mas competia à Igreja apurar a verdade dos fatos. Clemente não podia deixar isso simplesmente ao braço secular, pois se o fizesse, o que aconteceu em França ocorreria no resto da Europa, e o Papado, que já enfrentava poblemas de perda de poder na França e na Inglaterra, onde a guerra de Eduardo II contra os rebeldes escoceses o tinha exposto, gerando oposição tanto junto aos ingleses quanto aos escoceses, enfrentaria sérios problemas.
Foi com essas preocupações em mente que Clemente enviou uma carta a Filipe, nomeando dois cardeais, Bérenger Fredol e Estevão de Suisy, incumbidos de submeter os Templários présos um a novo interrogatório. Mas a essa manobra do Papa, Filipe o Belo, não estava disposto a se deixar enrolar. Escreve de volta, repetindo todas as acusações e as confissões obtidas, e, numa velada ameaça, diz que “Deus detesta os mornos” e todo atraso na repressão dos crimes representa conivência com eles. Lembra ao Papa que os Inquisidores cumpriram uma obrigação e não se podia admitir que fossem contraditos no ministério que haviam recebidos de Deus.
Filipe não poderia ser mais claro. Com todas as palavras, estava dizendo ao Papa que não aceitaria injunções de nenhuma ordem nesse caso. Pois, conforme disse, “era o defensor da fé, e não poderia tolerar uma tal injúria contra os Inquisidores, pois se o fizesse estaria quebrando seu juramento. Isso queria dizer, em alto em bom som, que o Papa poderia fazer as investigações que quisesse, mas isso não mudaria nada do que foi feito.
 
Eram em número de cento e quarenta os cavaleiros os Templários presos no dia 13 de outubro de 1307. Todos haviam sido torturados, e após a tortura, submetidos ao interrogatório, por parte de Guilherme de Paris, ou por delegados seus. Cento e trinta e seis deles confirmaram as declarações de seus dignatários, acusando ou confirmando a Ordem do Templo das práticas das quais estavam sendo acusados. Guilherme de Nogaret, em nome de Filipe, mandou que os arautos do rei proclamassem por todo o reino as confissões dos Templários, causando na população uma grande comoção. A opinião pública se dividiu. Muita gente, que já não gostava dos Templários, pediu a fogueira e o cadafalso para os malditos hereges. Mas não foram poucos os que duvidaram da veracidade das declarações apregoadas pelos arautos. Não acreditaram que tais declarações fossem espontâneas, pois sabiam que os carrascos da Inquisição eram mestres no uso da tortura e costumavam arrancar dos pobres diabos que caiam em suas garras qualquer declaração.
Filipe estava a cavaleiro da situação. Apenas quatro Templários foram suficientemente fortes para agüentar a tortura e negar as acusações. Seus nomes foram registrados para a memória dessa vilania. Chamavam-se Jean de Chateauvillars, Henry de Herçingy, Jean de Paris e Lambert de Toisy. Eram muito poucos para fazer frente ás declarações em contrário de 136 Irmãos, inclusive os próprios comandantes da Ordem.
 
Clemente poderia desfazer o que Filipe fizera, se tivesse a coragem para tanto. Pois no interrogatório conduzido pelos cardeais Bérenger e Estevão, os referidos dignatários desdisseram tudo que foi confessado perante Guilherme de Paris e os membros da Inquisição. Nessa ocasião, Jacques de Molay rasgou de alto a baixo sua camisa e desnudou seu peito para mostrar aos cardeais as marcas das torturas a que tinha sido submetido.
 
– Desde a nossa prisão formos impedidos de dormir regularmente– disse o Grão-Mestre– pois os carcereiros a isso se esmeraram.
– Fomos esticados nos cavaletes, postos na estrapada e tivemos os pés calcinados – declarou Hugo de Pairaud.
– Farpas de madeira foram enfiadas nos dedos dos nossos pés e mãos, até os ossos – revelaram vários cavaleiros, mostrando aos cardeais, hororizados, a feridas purulentas entre os dedos.
 
A outros foram arrancados os dentes e houve alguns que foram pendurados pelos genitais. Os cardeais, ao ver o resultado de tal suplício, choraram amargamente e se mostraram incapazes mesmo de falar alguma coisa perante a horror do que tinham visto. Essas mesmas cenas se repetiram no interrogatório de praticamente todos os cavaleiros do Templo que foram ouvidos pelos ditos cardeais. Dez cardeais, ao todo, haviam sido designados para ouvir todos os Templários presos, e consta que eles ameaçaram renunciar a essa tarefa depois de ver os horrores aos quais os cavaleiros tinham sido submetidos, pois o Papa, mesmo á vista de seus relatórios, não teve coragem de tomar qualquer medida para aliviar o sofrimento deles.
Não foi senão a custo de muita pressão que o Papa finalmente conseguiu fazer com que Filipe transferisse uma parte dos Templários presos em Paris para Poitiers. Reservou, todavia, o direito de reter os bens da Ordem. Setenta e dois cavaleiros foram levados, sob escolta, para Poitiers, mas Filipe se recusou a liberar Jacques de Molay e os três outros dignatários da Ordem.
  
Perante o Papa e o colégio de cardeais, os setenta e dois cavaleiros refizeram suas declarações, justificando que o disseram, em razão do tratamento a que foram submetidos.
– Fomos privados das coisas mais necessárias, sendo alimentados somente de água e pão.
– Fomos proibidos de assistir missa e recitar os ofícios.
– Fomos tratados como excomungados, sem direito a qualquer sacramento que se concede a um cristão.
– Prometeram que a nossa vida seria poupada se reconhecessemos espontaneamente as acusações que eram feitas á Ordem.
– Os inquidores nos disseram o que devíamos falar.
– Todo o interrogatório foi feito em latim e são poucos os que, entre nós, entende essa língua.
– Trinta e seis dos nossos Irmãos morreram em conseqüência das torturas, por terem se recusado a falar o que os inquisidores queriam....
 
Guilherme V já não tem dúvidas que as acusações são falsas. Reforça ainda a sua convicção as respostas que os reis de Inglaterra, Aragão, Castela, Portugal e Sicília dão á sua carta, solicitando a prisão dos Templários em seus respectivos reinos. Nenhum deles acredita nas acusações que feitas por Filipe e se recusam a abrir processo contra o Templo, a não ser que o próprio Papa o ordene por escrito.
Clemente V deve ter se sentido fortalecido com essas posições adotadas pelo restante das autoridades seculares da cristandade. Em fevereiro de 1308 sentiu-se com coragem suficiente para enfrentar o rei Filipe e anulou os poderes dos Inquisidores, chamando o caso todo para sua própria autoridade.
 
Mas Filipe não se deu por vencido com essa súbita crise de autoridade do Papa e buscou apoio junto aos doutores de teologia da Universidade de Paris. Perguntado se os teólogos aprovaram sua atitude e se o poder temporal poderia agir em caso de comprovada heresia, como era o presente caso dos Templários, os doutores responderam que o rei não tinha poder para abrir processo nesse caso, a menos que fosse requerido pela Igreja. Que o máximo que o rei poderia fazer, se comprovado realmente o perigo de uma heresia perigosa, era prender os acusados e os entregar á Santa Madre Igreja para julgamento. Em outras palavras, os doutores estavam dizendo a Filipe que ele não tinha poderes sobre a Inquisição.
Assim, claramente, toda a inteligência jurídica francesa concordava que os membros do Templo não estavam sujeitos á autoridade secular, o que privavs Filipe de submetê-los á justiça comum. Somente a Igreja podia julgá-los e condená-los pelos crimes dos quais estavam sendo acusados.
Filipe até se conformaria com esse parecer dos juristas da Universidade de Paris, se no mesmo arrasoado eles não tivessem escrito que os bens da Ordem pertenciam á Igreja, pois eles foram dados aos Templários na qualidade de defensores da Terra Santa, e como tal deviam ser “fielmente administrados e conservados com vistas ao dito fim.”
Essa resposta, como se podia esperar, não agrada a Filipe e este decide contra atacar. Guilherme Nogaret também é advogado e é com ele que o rei busca conselho.
 
– Como podemos inverter essa situação?- perguntou o rei.
– Da mesma forma como trataste a situação com Bonifácio VIII – Majestade.
Filipe se lembrava bem do seu conflito com o velho e teimoso Papa que havia desafiado a sua autoridade e queria sobrepor-se ao poder de todos os reis. Quanto á questão da opinião pública, Nogaret lembrou-lhe que ela também era hostil naquela ocasião.
 
– Vossa Majestade, naquela ocasião, convocou os pares do reino, as assembléias dos cidadãos e do clero, e expôs-lhes a situação com tanta clareza que ninguém objetou que Vossa Alteza enviasse uma tropa para pressionar o Papa.
 
O episódio do atentado de Agnani ainda estava bem presente na memória de Filipe. Naquela ocasião, a sua capacidade de persuasão fora bem empregada. Não custava ver se ainda tinha a mesma habilidade. Assim, o rei convocou para o dia 5 de maio de 1308 uma reunião de todos os pares do reino, aqueles que viriam, mais tarde a formar os Estados Gerais de França.  Dessas assembléias participavam os presidentes das câmaras setoriais e provinciais, almotacés, cônsules, os nobres e os representantes do clero. E para garantir que cada uma das organizações participantes dessas assembléias estivesse de acordo com suas pretensões, ele, de próprio punho, enviou uma carta aos seus representantes, explicitando as suas razões para “livrar a Santa Madre Igreja da abominável Ordem dos Templários.”
A assembléia realizou-se em Tours e se prolongou por três semanas. O inefável Pierre Dubois, advogado que anteriormente já servira ao rei com um ensaio jurídico justificando a fusão do Templo com o Hospital, reapareceu com um inflamado discurso contra a recusa do Papa em dissolver a Ordem.
 
– O povo do reino da França– diz o advogado– que sempre foi e será, pela graça de Deus, obediente e devoto à Santa Madre Igreja, mais que qualquer outro, solicita que seu Senhor, o rei da França, faça ver ao nosso Santo Padre, o Papa, que ele enfureceu demasiado os franceses e provocou grande escândalo entre povo, por que castiga apenas com palavras a heresia dos Templários.
E Dubois afirma, em sua diatribe, que o Papa está sendo tolerante com os Templários porque a Ordem tem dinheiro. E mais: que o Papa se escuda no nepotismo para garantir suas posições, já que um bom número de bispos e cardeais perten-cem á família do Papa. E por fim exorta o Papa a pedir desculpas aos nobres Inquisidores, perante os quais os hereses do Templo haviam confessado seus abomináveis crimes, que agora o Papa queria encobrir.
Dubois e outros advogados se sucedem na tribuna, todos assacando violentas críticas ao Papa e apoiando o rei em sua ação contra o Templo. Oferecem tantas e profundas justificativas para que se condenem os Templários, mesmo á revelia da autoridade papal, que a assembléia não pode deixar de dar ao rei, mais uma vez, sua anuência para agir.
E assim, Filipe, o Belo, apoiado pelo povo de França, decide continuar o processo á revelia da própria Igreja.
Afinal de contas, pensava o rei, Clemente V, nem de longe era um adversário á altura, como tinha sido, no passado, Bonifácio VIII. Se áquele velho turrão ele havia vencido, a este então...