CAPÍTULO V- AS REFLEXÕES DE JACQUES DE MOLAY
Jacques de Molay voltara para sua cela muito preocupado. Primeiro porque, até aquele momento, o Papa não havia se pronunciado acerca da prisão dos membros da Ordem e nem da sua própria detenção. Talvez não tivesse ainda sido informado disso. Afinal, Avignon, onde o Papa agora estava enclausurado, ficava ha mais de trezentos quilometros de Paris.
Tinha certeza que Clemente V não concordaria com aquela violência praticada por Filipe, mas sabia também que o Papa era politicamente fraco e o rei tinha muita ascendência sobre ele.
Pelas perguntas de Nogaret e pela amostra que dera no interrogatório, ele sabia o que o esperava. Tortura. Tortura moral e física. Ele estava velho, mas era ainda um soldado rijo e valente. Não cederia aos desejos de Nogaret, não diria para onde mandara o dinheiro do Templo, nem confessaria os crimes que estavam sendo imputados á Ordem.
Esse era outro problema. Jacques de Molay sempre se ocupara dos assuntos militares e administrativos da Ordem, jamais se preocupando com questões doutrinárias. A Ordem, desde que se tornara uma grande potência, multiplicara suas atividades, se tornando, ela mesma, uma Igreja dentro da Igreja e um estado dentro dos estados onde se instalara.
Ele sabia que dentro da complicada organização que comandava, haviam outras organizações, cada qual se ocupando de um rol de interesses, aos quais a Ordem havia se envolvido nos últimos dois séculos. Havia uma organização militar que cuidava das campanhas nas quais os Templários estavam en-volvidos; havia um organismo burocrático que cuidava dos interesses da Ordem, que eram muitos; havia um corpo ecle-siástico, que cuidava da parte espiritual. Havia inclusive, uma forte confraria de artesãos e construtores civis, que cuidava das construções templárias, atividade essa que era uma das ativas dentro da Ordem. Desde os primórdios de sua origem, os Templários haviam aprendido a construir seus próprios edifícios, arqutetonicamente projetados e erguidos de acordo com os seus propósitos. Dessa forma espalharam pela Europa toda um sem número de capelas, preceptorias, fortalezas e castelos, que causavam inveja nos nobres senhores feudais e no próprio clero. Pierre de Montreil, o professor dos maçons franceses, era um arquiteto pertencente á Ordem. Nesse mesmo instante, seu primo, Jean de Longwy, Mestre eleito da Compagnonnage, estava comandando uma associação de compagnons, trabalhadores em construção civil, na construção de mais um transepto na Catedral de Notre Dame de Paris.
Molay sabia que a confraria dos pedreiros tinha a sua própria liturgia e cultivavam uma estranha simbologia que ele não entendia nem fizera muita questão de entender. Eram símbolos ligados á geometria, e tinham ligações com o passado, lembrando antigas civilizações como os egípcios e os gregos, que ele, sendo analfabeto, não alcançava o significado. Será, pen-sou de passagem, que as acusações feitas á Ordem teria alguma coisa ver com essas práticas dos pedreiros ligados á Ordem? Ou então com as estranhas idéias que alguns dos Irmãos anda-vam desenvolvendo em algumas preceptorias, idéias essas ligadas á estranha ciência que os muculmanos praticavam, de fabricar ouro em suas oficinas?
Jacques de Molay já ouvira falar sobre a existência de monges, dentro da Ordem, que estavam se dedicando a essa estranha prática, chamada de alquimia por eles. Mas nunca se importou muito com essas informações. Primeiro porque não acreditava que isso fosse possível. Fabricar ouro através de manipulações em minerais simples como o chumbo, parecia ser coisa de velhos contadores de histórias, ou então de peregrinos, como os de Canterbury, que se reuniam á noite, em volta de uma fogueira, e para matar o tempo, ficavam inventando histórias extraordinárias. Mas, se isso fosse verdadeiro, melhor ainda. Seria mais uma maneira de engordar o tesouro da Ordem. De uma forma ou de outra, se lucro não trouxesse, também não haveria prejuízo.
Mas o que mais o preocupava, agora, ali sentado no banco de pedra rústica, que lhe servia também de cama, era os rumores que ouvira acerca de algumas usanças que alguns Capitulos da Ordem andavam praticando. Práticas rituais que de maneira alguma constavam dos ritos admitidos pela Ordem em sua liturgia normal. Essas informações vinham principalmente dos Capitulos sediados na região do Languedoc, onde, cerca de meio século atrás, florescera a heresia albigense.
Jacques de Molay lamentava não ter se informado melhor sobre esses assuntos. Estaria agora mais preparado para responder ás acusações de Nogaret e suportar, com mais firmeza, às perguntas de Guilherme de Paris.
Mas logo se conformou e abandonou esse pensamento. Fossem ou não, verdadeiras, as acusações de heresia que se fazia contra a Ordem, essa era apenas uma desculpa. Na verdade, o móvel de tudo isso era a própria Ordem, o seu poder político e econômico e sua riqueza. O Grão-Mestre rememorou todas as negociações das quais participara nos últimos dois anos, a proposta do Papa, em fundir a Ordem do Templo com a Ordem do Hospital de São João, a tentativa de Filipe o Belo, de entrar na Irmandade, a sua recusa, os ensaios jurídicos produzidos pelos advogados do rei, justificando a supressão do Templo, as próprias queixas feitas contra os Templários, de que eram usurários, agiotas, autoritários e violentos.
Lamentou não ter dado ouvidos a esses sinais de perigo. Ficara encastelado no poder que lhe conferia os Estatutos da Ordem, na independência que lhe conferia a Igreja, na proteção que lhe dava o Papa. Afogara-se no próprio poder que pensara que tinha.
Jamais imaginara que o aríete que romperia as muralhas do Templo seria a questão religiosa. Nunca dera muita importância a isso. Até porque ele era um católico devoto. Sempre realizara os sacramentos egixidos pela fé católica e jamais renegara qualquer um deles, e nem tampouco qualquer artigo de fé. E quanto á sua própria conduta pessoal, não tinha lembrança de ter realizado qualquer ato que o envergonhasse. Mantivera os votos de castidade que fizera por ocasião de sua iniciação. Jamais tocara em mulher e nem se juntara a qualquer Irmão em conúbio carnal, como estavam agora os Templários sendo acusados de fazer e como ele sabia, que em muitos mosteiros e conventos, os monges faziam. Isso, para ele, era um difamação terrível que merecia ser decidida em ordálio. Pena que não lhe fosse permitido desafiar Guilherme de Paris, ou mesmo Nogaret, para o julgamento de Deus, para um combate pessoal na liça.
Imerso em seus pensamentos, Jacques de Molay nem havia prestado atenção na argola de ferro que o carceiro havia aferrolheado em volta de seu tornozelo. Era a primeira vez que lhe punham aqueles grilhões. Até aquele momento, desde que fora preso, no dia treze de outubro, seus carceireiros não haviam tomado aquela medida, usual em um prisioneiro que é lançado em uma masmorra. Por isso, o Grão-Mestre não tinha ainda se dado conta da miserabilidade da sua situação. Pensava haver ali apenas um conflito de política mal formulada, a qual seria logo aplainado com os naturais conchavos que se fazem em casos como esse. O rei Filipe desejava a ajuda dos Templários para a realizações de suas ambições no continente. Pois bem, ele poderia tê-la. Queria também o dinheiro do Templo para ajudá-lo a recompor as combalidas finanças do reino. Isso também não era problema. Afinal de contas, tudo isso, afinal poderia ainda trazer bons frutos para a Ordem.O Papa Clemente desejava fundir a Ordem do Templo com o Hospital de São João. Pois bem, ele não se oporia mais á essa medida.
Jacques de Molay e a maioria dos cavaleiros Templários eram analfabetos e completamente ignorantes da complicada teologia que a Igreja pregava. Não compreendia, por exemplo, porque Deus, sendo um ser onipotente e Senhor de tudo que existia no universo, precisou mandar seu filho único para sofrer tanto na terra para resgatar um punhado de pecadores que talvez nem merecessem tanto sacrifício. Era uma estranha estra-tégia essa, que um soldado, como ele, não conseguia entender. Ouvira alguns irmãos da Ordem tentar dissertar com ele sobre esse assunto, mas cortara desde logo a convesa por achá-la imprópria e subversiva, dada a obediência que deviam aos cânones da Santa Madre Igreja. Mas agora lhe vinham á memória certos rumores que ouvira sobre esse assunto, de que alguns Irmãos andavam tendo muitas dúvidas a respeito desse assunto, e até corria rumores de algumas práticas estranhas que haviam adotado em suas iniciações.
Não dera muita importância a essas coisas, porque de doutrina religiosa ele pouco entendia, e mais, não fazia questão de entender. Mas de política ele entendia e muito bem. Sabia que o que estava acontecendo com ele e com seus Irmãos de Ordem, naquele momento, era simplesmente um problema político. A Ordem, isso já dissera Bonifácio VIII, quando Filipe iniciara suas diatribes contra o Templo, já não estava mais cumpirndo a finalidade para a qual fora fundada. Veio-lhe á memória o último diálogo que travara com o velho Papa, em fins de 1302, quando o exército Templário voltara derrotado da Terra Santa, após perder a fortaleza de Arwad, na Síria e os últimos domínios cristãos na Palestina.
– O Templo, meu caro Grão-Mestre, foi fundado para defender e conservar os lugares santos. Agora que os cristão já não tem quase nenhum domínio na Terra Santa, talvez seja a hora de repensar as vossas obrigações – disse o Papa.
– O fato de estarmos momentaneamente em desvantagem em relação aos sarracenos não quiser que devemos abandonar a luta – retrucou o Grão-Mestre.
– Pensais então que será possivel recuperar os territórios cristãos na Palestina? – perguntou, incrédulo, o Papa.
– Sim, Santidade. Com a ajuda dos mongóis, seria possivel uma reconquista.
– Agora a cristandade precisa se aliar a infiéis para realizar os seus objetivos? perguntou, com certa amargura, o Papa.
– Não creio que nenhum reino cristão tenha, neste momento, condições econômicas e militares para iniciar uma nova cruzada – respondeu o Grão-Mestre.
O Papa estava pensando na queda de Acre, o último bastião dos cruzados na Terra Santa, e na descrição jereminiana que um frade dominicano, testemunha do massacre de Acre, escrevera: “Chorai, sobre vossos chefes, que vos abandonaram. Chorai sobre vosso Papa e vossos cardeais e prelados e sobre o clero da Igreja. Chorai sobre os vossos reis, príncipes, barões e cavaleiros cristãos, que se chamam a si mesmos de grandes combatentes, mas deixaram esta cidade repleta de cristãos sem defesa e abandonaram-na, deixando-a só como um cordeiro no meio de lobos.”
O padre que escrevera essa lamentação atribuia à falta de firmeza moral e ao enfraqucimento da fé, que principalmente os cavaleiros Templários tinham mostrado nessa ocasião. A queda de Acre e Tripoli foram computadas á falta de fervor dos Templários npos combates e ás disputas pelo poder, que eles travavam com os Hospitalários.
Pela primeira vez surgiu, dentro da Igreja, a idéia de fundir as duas Ordens, idéia essa propagada pelo Papa Nicolau IV. Essa idéia havia ganho força dentro de toda a cristandade, mas a morte de Nicolau IV e as manobras dos Grãos-Mestres Templários e Hospitalários, ciosos de sua independência, haviam torpedeado esses planos. Principalmente porque a idéia era que, com a fusão das duas Ordens, uma nova cruzada fosse finan-ciada pelo tesouro de ambas.
– Os mongóis odeiam os sarracenos tanto quanto nós – disse Jacques de Molay, quebrando o fluxo dos pensamentos do Papa. – Se conseguirmos agora levantar um exército para apoiá-los, com certeza eles nos devolverão Jerusalém e poderemos retomar Tortosa, para dali iniciarmos uma nova guerra de reconquista.
Mas estava-se em dezembro de 1302, e naquele momento, a unica preocupação de Bonifácio VIII era a sua briga com Filipe o Belo, rei de França, que havia desdenhado e refutado a sua bula, Unan Sancten, na qual o Papa reclamava a “supremacia pontificia sobre todos os reinos da cristandade, para salvação de todas as almas.”
– Neste momento – disse o Papa – tenho que voltar todas as minhas forças para resolver este problema com Filipe. Não posso pensar em nenhuma cruzada. E completando: – Aconselho também a vós que vos acauteleis contra Filipe – disse o Papa.
Logo depois dessa conversa com Bonifácio VIII, a sete de setembro de 1303, aconteceria o atentado de Agnani, no qual o Papa seria preso por um esquadrão de soldados de Filipe o Belo, comandados pessoalmente por Guilherme de Nogaret. Nessa ocasião, o Papa seria esbofeteado por Sciarra de Colonna, irmão do cardeal Colonna, Jacques, inimigo do Papa. Em consequência, Bonifácio VIII morreria quatro semanas mais tarde. Seria substituido por Niccoló Bocassino, Cardeal-arcebispo de Óstia, que morreria um ano depois, suspeito de envenenamento por parte de cúmplices associados á Filipe, já que Bento XI, nome que Niccoló adotara, se recusara a levantar a excomunhão de Guilherme de Nogaret e os irmãos Colonna pelo atentado de Agnani. Em seu lugar fora eleito o Papa Clemente V.
Sózinho em sua cela, esfregando os tornozelos agora dormentes e esfolados pelos aros de ferro da corrente que o prendia á parede úmida da cela, Jacques de Molay rememorava todos esses acontecimentos. Não podia deixar de recriminar-se pela teimosia e pela falta de visão que o acometera nesses anos cruciais que antecederam a sua prisão.
– Como fui tolo – pensou. – Poderia ter sido tudo diferente.
(continua)
Jacques de Molay voltara para sua cela muito preocupado. Primeiro porque, até aquele momento, o Papa não havia se pronunciado acerca da prisão dos membros da Ordem e nem da sua própria detenção. Talvez não tivesse ainda sido informado disso. Afinal, Avignon, onde o Papa agora estava enclausurado, ficava ha mais de trezentos quilometros de Paris.
Tinha certeza que Clemente V não concordaria com aquela violência praticada por Filipe, mas sabia também que o Papa era politicamente fraco e o rei tinha muita ascendência sobre ele.
Pelas perguntas de Nogaret e pela amostra que dera no interrogatório, ele sabia o que o esperava. Tortura. Tortura moral e física. Ele estava velho, mas era ainda um soldado rijo e valente. Não cederia aos desejos de Nogaret, não diria para onde mandara o dinheiro do Templo, nem confessaria os crimes que estavam sendo imputados á Ordem.
Esse era outro problema. Jacques de Molay sempre se ocupara dos assuntos militares e administrativos da Ordem, jamais se preocupando com questões doutrinárias. A Ordem, desde que se tornara uma grande potência, multiplicara suas atividades, se tornando, ela mesma, uma Igreja dentro da Igreja e um estado dentro dos estados onde se instalara.
Ele sabia que dentro da complicada organização que comandava, haviam outras organizações, cada qual se ocupando de um rol de interesses, aos quais a Ordem havia se envolvido nos últimos dois séculos. Havia uma organização militar que cuidava das campanhas nas quais os Templários estavam en-volvidos; havia um organismo burocrático que cuidava dos interesses da Ordem, que eram muitos; havia um corpo ecle-siástico, que cuidava da parte espiritual. Havia inclusive, uma forte confraria de artesãos e construtores civis, que cuidava das construções templárias, atividade essa que era uma das ativas dentro da Ordem. Desde os primórdios de sua origem, os Templários haviam aprendido a construir seus próprios edifícios, arqutetonicamente projetados e erguidos de acordo com os seus propósitos. Dessa forma espalharam pela Europa toda um sem número de capelas, preceptorias, fortalezas e castelos, que causavam inveja nos nobres senhores feudais e no próprio clero. Pierre de Montreil, o professor dos maçons franceses, era um arquiteto pertencente á Ordem. Nesse mesmo instante, seu primo, Jean de Longwy, Mestre eleito da Compagnonnage, estava comandando uma associação de compagnons, trabalhadores em construção civil, na construção de mais um transepto na Catedral de Notre Dame de Paris.
Molay sabia que a confraria dos pedreiros tinha a sua própria liturgia e cultivavam uma estranha simbologia que ele não entendia nem fizera muita questão de entender. Eram símbolos ligados á geometria, e tinham ligações com o passado, lembrando antigas civilizações como os egípcios e os gregos, que ele, sendo analfabeto, não alcançava o significado. Será, pen-sou de passagem, que as acusações feitas á Ordem teria alguma coisa ver com essas práticas dos pedreiros ligados á Ordem? Ou então com as estranhas idéias que alguns dos Irmãos anda-vam desenvolvendo em algumas preceptorias, idéias essas ligadas á estranha ciência que os muculmanos praticavam, de fabricar ouro em suas oficinas?
Jacques de Molay já ouvira falar sobre a existência de monges, dentro da Ordem, que estavam se dedicando a essa estranha prática, chamada de alquimia por eles. Mas nunca se importou muito com essas informações. Primeiro porque não acreditava que isso fosse possível. Fabricar ouro através de manipulações em minerais simples como o chumbo, parecia ser coisa de velhos contadores de histórias, ou então de peregrinos, como os de Canterbury, que se reuniam á noite, em volta de uma fogueira, e para matar o tempo, ficavam inventando histórias extraordinárias. Mas, se isso fosse verdadeiro, melhor ainda. Seria mais uma maneira de engordar o tesouro da Ordem. De uma forma ou de outra, se lucro não trouxesse, também não haveria prejuízo.
Mas o que mais o preocupava, agora, ali sentado no banco de pedra rústica, que lhe servia também de cama, era os rumores que ouvira acerca de algumas usanças que alguns Capitulos da Ordem andavam praticando. Práticas rituais que de maneira alguma constavam dos ritos admitidos pela Ordem em sua liturgia normal. Essas informações vinham principalmente dos Capitulos sediados na região do Languedoc, onde, cerca de meio século atrás, florescera a heresia albigense.
Jacques de Molay lamentava não ter se informado melhor sobre esses assuntos. Estaria agora mais preparado para responder ás acusações de Nogaret e suportar, com mais firmeza, às perguntas de Guilherme de Paris.
Mas logo se conformou e abandonou esse pensamento. Fossem ou não, verdadeiras, as acusações de heresia que se fazia contra a Ordem, essa era apenas uma desculpa. Na verdade, o móvel de tudo isso era a própria Ordem, o seu poder político e econômico e sua riqueza. O Grão-Mestre rememorou todas as negociações das quais participara nos últimos dois anos, a proposta do Papa, em fundir a Ordem do Templo com a Ordem do Hospital de São João, a tentativa de Filipe o Belo, de entrar na Irmandade, a sua recusa, os ensaios jurídicos produzidos pelos advogados do rei, justificando a supressão do Templo, as próprias queixas feitas contra os Templários, de que eram usurários, agiotas, autoritários e violentos.
Lamentou não ter dado ouvidos a esses sinais de perigo. Ficara encastelado no poder que lhe conferia os Estatutos da Ordem, na independência que lhe conferia a Igreja, na proteção que lhe dava o Papa. Afogara-se no próprio poder que pensara que tinha.
Jamais imaginara que o aríete que romperia as muralhas do Templo seria a questão religiosa. Nunca dera muita importância a isso. Até porque ele era um católico devoto. Sempre realizara os sacramentos egixidos pela fé católica e jamais renegara qualquer um deles, e nem tampouco qualquer artigo de fé. E quanto á sua própria conduta pessoal, não tinha lembrança de ter realizado qualquer ato que o envergonhasse. Mantivera os votos de castidade que fizera por ocasião de sua iniciação. Jamais tocara em mulher e nem se juntara a qualquer Irmão em conúbio carnal, como estavam agora os Templários sendo acusados de fazer e como ele sabia, que em muitos mosteiros e conventos, os monges faziam. Isso, para ele, era um difamação terrível que merecia ser decidida em ordálio. Pena que não lhe fosse permitido desafiar Guilherme de Paris, ou mesmo Nogaret, para o julgamento de Deus, para um combate pessoal na liça.
Imerso em seus pensamentos, Jacques de Molay nem havia prestado atenção na argola de ferro que o carceiro havia aferrolheado em volta de seu tornozelo. Era a primeira vez que lhe punham aqueles grilhões. Até aquele momento, desde que fora preso, no dia treze de outubro, seus carceireiros não haviam tomado aquela medida, usual em um prisioneiro que é lançado em uma masmorra. Por isso, o Grão-Mestre não tinha ainda se dado conta da miserabilidade da sua situação. Pensava haver ali apenas um conflito de política mal formulada, a qual seria logo aplainado com os naturais conchavos que se fazem em casos como esse. O rei Filipe desejava a ajuda dos Templários para a realizações de suas ambições no continente. Pois bem, ele poderia tê-la. Queria também o dinheiro do Templo para ajudá-lo a recompor as combalidas finanças do reino. Isso também não era problema. Afinal de contas, tudo isso, afinal poderia ainda trazer bons frutos para a Ordem.O Papa Clemente desejava fundir a Ordem do Templo com o Hospital de São João. Pois bem, ele não se oporia mais á essa medida.
Jacques de Molay e a maioria dos cavaleiros Templários eram analfabetos e completamente ignorantes da complicada teologia que a Igreja pregava. Não compreendia, por exemplo, porque Deus, sendo um ser onipotente e Senhor de tudo que existia no universo, precisou mandar seu filho único para sofrer tanto na terra para resgatar um punhado de pecadores que talvez nem merecessem tanto sacrifício. Era uma estranha estra-tégia essa, que um soldado, como ele, não conseguia entender. Ouvira alguns irmãos da Ordem tentar dissertar com ele sobre esse assunto, mas cortara desde logo a convesa por achá-la imprópria e subversiva, dada a obediência que deviam aos cânones da Santa Madre Igreja. Mas agora lhe vinham á memória certos rumores que ouvira sobre esse assunto, de que alguns Irmãos andavam tendo muitas dúvidas a respeito desse assunto, e até corria rumores de algumas práticas estranhas que haviam adotado em suas iniciações.
Não dera muita importância a essas coisas, porque de doutrina religiosa ele pouco entendia, e mais, não fazia questão de entender. Mas de política ele entendia e muito bem. Sabia que o que estava acontecendo com ele e com seus Irmãos de Ordem, naquele momento, era simplesmente um problema político. A Ordem, isso já dissera Bonifácio VIII, quando Filipe iniciara suas diatribes contra o Templo, já não estava mais cumpirndo a finalidade para a qual fora fundada. Veio-lhe á memória o último diálogo que travara com o velho Papa, em fins de 1302, quando o exército Templário voltara derrotado da Terra Santa, após perder a fortaleza de Arwad, na Síria e os últimos domínios cristãos na Palestina.
– O Templo, meu caro Grão-Mestre, foi fundado para defender e conservar os lugares santos. Agora que os cristão já não tem quase nenhum domínio na Terra Santa, talvez seja a hora de repensar as vossas obrigações – disse o Papa.
– O fato de estarmos momentaneamente em desvantagem em relação aos sarracenos não quiser que devemos abandonar a luta – retrucou o Grão-Mestre.
– Pensais então que será possivel recuperar os territórios cristãos na Palestina? – perguntou, incrédulo, o Papa.
– Sim, Santidade. Com a ajuda dos mongóis, seria possivel uma reconquista.
– Agora a cristandade precisa se aliar a infiéis para realizar os seus objetivos? perguntou, com certa amargura, o Papa.
– Não creio que nenhum reino cristão tenha, neste momento, condições econômicas e militares para iniciar uma nova cruzada – respondeu o Grão-Mestre.
O Papa estava pensando na queda de Acre, o último bastião dos cruzados na Terra Santa, e na descrição jereminiana que um frade dominicano, testemunha do massacre de Acre, escrevera: “Chorai, sobre vossos chefes, que vos abandonaram. Chorai sobre vosso Papa e vossos cardeais e prelados e sobre o clero da Igreja. Chorai sobre os vossos reis, príncipes, barões e cavaleiros cristãos, que se chamam a si mesmos de grandes combatentes, mas deixaram esta cidade repleta de cristãos sem defesa e abandonaram-na, deixando-a só como um cordeiro no meio de lobos.”
O padre que escrevera essa lamentação atribuia à falta de firmeza moral e ao enfraqucimento da fé, que principalmente os cavaleiros Templários tinham mostrado nessa ocasião. A queda de Acre e Tripoli foram computadas á falta de fervor dos Templários npos combates e ás disputas pelo poder, que eles travavam com os Hospitalários.
Pela primeira vez surgiu, dentro da Igreja, a idéia de fundir as duas Ordens, idéia essa propagada pelo Papa Nicolau IV. Essa idéia havia ganho força dentro de toda a cristandade, mas a morte de Nicolau IV e as manobras dos Grãos-Mestres Templários e Hospitalários, ciosos de sua independência, haviam torpedeado esses planos. Principalmente porque a idéia era que, com a fusão das duas Ordens, uma nova cruzada fosse finan-ciada pelo tesouro de ambas.
– Os mongóis odeiam os sarracenos tanto quanto nós – disse Jacques de Molay, quebrando o fluxo dos pensamentos do Papa. – Se conseguirmos agora levantar um exército para apoiá-los, com certeza eles nos devolverão Jerusalém e poderemos retomar Tortosa, para dali iniciarmos uma nova guerra de reconquista.
Mas estava-se em dezembro de 1302, e naquele momento, a unica preocupação de Bonifácio VIII era a sua briga com Filipe o Belo, rei de França, que havia desdenhado e refutado a sua bula, Unan Sancten, na qual o Papa reclamava a “supremacia pontificia sobre todos os reinos da cristandade, para salvação de todas as almas.”
– Neste momento – disse o Papa – tenho que voltar todas as minhas forças para resolver este problema com Filipe. Não posso pensar em nenhuma cruzada. E completando: – Aconselho também a vós que vos acauteleis contra Filipe – disse o Papa.
Logo depois dessa conversa com Bonifácio VIII, a sete de setembro de 1303, aconteceria o atentado de Agnani, no qual o Papa seria preso por um esquadrão de soldados de Filipe o Belo, comandados pessoalmente por Guilherme de Nogaret. Nessa ocasião, o Papa seria esbofeteado por Sciarra de Colonna, irmão do cardeal Colonna, Jacques, inimigo do Papa. Em consequência, Bonifácio VIII morreria quatro semanas mais tarde. Seria substituido por Niccoló Bocassino, Cardeal-arcebispo de Óstia, que morreria um ano depois, suspeito de envenenamento por parte de cúmplices associados á Filipe, já que Bento XI, nome que Niccoló adotara, se recusara a levantar a excomunhão de Guilherme de Nogaret e os irmãos Colonna pelo atentado de Agnani. Em seu lugar fora eleito o Papa Clemente V.
Sózinho em sua cela, esfregando os tornozelos agora dormentes e esfolados pelos aros de ferro da corrente que o prendia á parede úmida da cela, Jacques de Molay rememorava todos esses acontecimentos. Não podia deixar de recriminar-se pela teimosia e pela falta de visão que o acometera nesses anos cruciais que antecederam a sua prisão.
– Como fui tolo – pensou. – Poderia ter sido tudo diferente.
(continua)