No Oiapoque ou no Chui: eu vou onde você for, pequena
Ficara calado a manhã toda. Trocou apenas algumas palavras com os amigos quando lhe perguntaram se tudo estava bem. Não estava nada bem. O silêncio era um dos efeitos colaterais de toda aquela pressão e medo que tomavam conta do corpo do guri. Toda a cobrança e a necessidade de "ser alguém" para os outros se orgulharem. Planos traçados e encaminhados; planos esses que ele não fora convidado para esquadrinhar. Devia fazer o que "sonharam" para ele. E ele? Como ficava nisso tudo? Provas. Vestibulares. Faculdade. Trabalho. Dinheiro. Sucesso. O que mais...? Por último o que devia vir em primeiro lugar: a felicidade.
Tudo machucava. Tudo doía. Não era culpa do mundo, não só do mundo. Era culpa dele. Muito menos dele do que do mundo. Ele se deixava atingir pelas coisas banais. O que não devia ter importância era um peso astronômico para o molecote. Brigas, chateações, medos, inseguranças, neuras. O alemão estava mais perdido dentro dele mesmo do que pelo "mundão velho sem porteira". Tinha poucas certezas naquele momento: que gostava mais do que tudo daquela guria que nunca tivera perto o suficiente para abraçar com seus braços, mas que estava junto dele o tempo todo, que o mundo era grande demais e cruel demais para que ele se deixasse abalar por tudo - não iria chegar ao fim assim - e que a vida era rara demais para ser desperdiçada com medos infundados.
Pensativo e sentado no fundo do ônibus, voltava para casa. Queria abrigo. Não ficara para a aula a tarde. Os olhos pesavam, tentavam fechar as cortinas para o mundo. Sentiu a cabeça pesar. Uma pontada. "Droga...". Humberto queria alcançar logo sua casa. Ignorou o olhar das duas garotas que sentavam à sua frente. Ele torcia a cara de dor, elas pareciam ter percebido com o canto dos olhos. Ao celular mandava noticias para a preocupada Liberdade. Ela era tão atenciosa. Tão querida. Tão amável. Tão ela.
"Você está com febre, guri?". Não estava com febre. "Você já comeu? Está forte?". Já tinha almoçado. "Você vai descansar, né?". Iria descansar, mas queria mesmo é deitar naquele abraço quente e carinhoso e ouvir o coração pulsante e belo da guria. Cada dia que passava era um dia mais próximo do amanhã. Logo (não importava quando) poderia recostar o ouvido contra seu peito e sentir que ali habita um coração perfeito. Seguiu pela rua até sua simples casa. Adentrou. Sentiu-se um pouco melhor. Abandonou a mala no sofá. Subiu lentamente, cambaleava. Deixou à beira da cama os sapatos. Tirou o uniforme. Vestiu então uma roupa quente e confortável. Tremia com o ar frio contra a pele pálida. Sentiu um arrepio subir pela espinha.
Desceu as escadas. Pegou uma chaleira no armário. Encheu de água. Ainda tremia de frio. Foi ao fogão. Colocou a água para ferver. Abriu outro armário e retirou um embrulho de chá. "Boa Noite - não há nada melhor no fim do dia". Não era o fim do dia, mas parecia o necessário.
- Hum... Parece bom... - colocou em cima da mesa.
O celular no bolso vibrou. Respondeu então à pequena guria.
"Já estou em casa. Estou fazendo chá. Eu vou tomar remédio agora...". Mais um armário aberto. Um copo d'água. Um comprimido. Goela abaixo. Logo surtiria efeito. Logo mataria aquela saudade. Esse logo podia ser o tempo que fosse. Abriu as janelas da cozinha. Deixou o frio entrar. Arrepios.
A fumaça dançava enquanto trazia o aroma doce do chá. Quente. Deixou de lado em cima da escrivaninha. Abriu o notebook. Encontrou ali, no Facebook, algumas surpresas. Quase sempre encontrava. Eram as melhores surpresas. Notificações vindas dela. Pequenos e doces carinhos que sempre lhe traziam afagos ao coração. Uma imagem em preto e branco da página de um livro. Desfocada, exceto em uma pequena passagem. "Vem que eu te faço um cafuné". Sentiu-se mais do que tentado. Sentiu-se motivado. Tudo que mais queria era estar ali, ao lado dela, recebendo e dando aquela "cafuné" tão esperado e desejado.
(*)
Ela estava assustada. Estava perdida. Ele queria dividir aquela carga. Queria ser o seu alívio imediato. Sentiu um aperto no coração. Não gostava de pensar que ela estava daquele jeito. Quando ela contou que lágrimas corriam de seus verdes olhos ele não suportou mais. Cascatas corriam pela sua pele. Caíam e atingiam suas pernas acomodadas na cadeira. Algumas acertava a branca escrivaninha. Era uma decisão apenas dela. Queria vê-la feliz. Não importava onde fosse. Ele se desdobraria em quantos fossem necessários para visitá-la no Oiapoque, no Chui, onde quer que fosse. Ele assumiu que sentiu medo de perdê-la para a distância, mas logo entendeu que era uma insegurança boba. Um medo egoísta e mesquinho. Algo que o tomou por alguns segundos. Estava assustado, frágil; ela também estava. Chorou feito criança dolorida. Colocou tudo pra fora. Não em verbos, mas em lágrimas.
Encontraram-se em uma situação de perguntar um ao outro se tinham se arrependido de ter permitido tudo chegar aquele ponto. Nunca iria se arrepender. Nunca iria se arrepender de ter permitido a felicidade entrar na sua vida. Pediu perdão pela bagunça. Entenderam juntos que estavam assustados e o medo havia falado mais alto dessa vez. Encontraram novamente aquele sentimento que os fazia estar ligados. Ele gostava dela mais do que tudo. E ela gostava dele mais do que tudo. "Então me abraça forte e, me diz mais uma vez que já estamos distantes de tudo. Temos nosso próprio tempo...". Se estivessem perto, a uma distância de um coração, estariam abraçados. Trocariam caricias no fundo de seus olhos e talvez lágrimas. O medo passara. Fora vencido pelos dois, juntos - sempre juntos. Tinham seu próprio tempo. E se este fosse uma ou duas eternidades, Humberto iria esperar pacientemente para o tão esperado encontro, tão esperada descoberta. Sentiu que o mundo perdera o cinza assustador e que a luz vinda daquela estrela maior - dela - aquecia seu coração. Sorriu entre as úmidas corredeiras.
"Como eu te gosto, guria...". "Como eu te gosto, guri".
Eu quero que você seja a guria mais feliz do mundo, pequena... E saiba que vou te visitar onde for, quando for... Vou guardar comigo essa saudade dos seus olhos, do seu abraço, do seu beijo, do seu cafuné... Um dia meu coração vai poder bater tranquilamente ao lado do seu... E lembre-se que a cada novo dia, estamos mais próximos do "amanhã"... Eu te gosto mais do que tudo...