UM VELHO ALTIVO E TEIMOSO
 
     Jacques de Molay tinha setenta anos quando foi preso. Estava completando nove anos como Grão-Mestre do Templo.
     Embora septuagenário, apresentava-se em boas condições físicas e parecia gozar de boa saúde. Tanto é que cavalgara, juntamente com dez cavaleiros, nos dias que antecedera á sua prisão, os quase trezentos kilometros que separam Poitiers de Paris. Em Poitiers se avistara com o Papa,onde ficara ciente que o máximo Pontífice ordenara uma investigação sobre as acusações que pesavam sobre os Templários. Essa investigação, o próprio Jacques de Molay já havia solicitado, em face das notícias que  haviam chegado aos seus ouvidos. Ele sabia que o rei Filipe havia apresentado ao Papa uma lista com uma série de acusações contra os Templários. Essas acusações eram baseadas em testemunhos de antigos cavaleiros que haviam deixado a Ordem, como o Papa o informara.
   – Dificilmente acreditaria que tais imputações fossem verdadeiras, meu filho– disse o Papa ao Grão-Mestre – mas é preciso apurá-las, até por conta da vossa segurança e pelo zelo com o destino da Ordem.
   –  Concordo com Vossa Santidade – disse Jacques de Molay. – Os inimigos na nossa Ordem estão cada vez mais ativos e é preciso tomarmos muito cuidado.
    Clemente apresentou então ao Grão-Mestre as acusações que lhe haviam sido feitas por Filipe, extraídas do depoimento de três antigos membros da Ordem, Esquin de Floyran, Bernard Pelet e Gerard de Byzol. Esses cavaleiros haviam sido todos expulsos da Ordem, e agora se dedicavam a difamá-la onde pudessem e encontrassem alguém que os quisesse ouvir.
– De certo que são difamações e calúnias urdidas por esses canalhas – disse o Papa. – e o rei está se aproveitando disso para atacar o Templo.
– Tendes razão quanto a isso– respondeu o Grão-Mestre. – Como sabeis, nós recusamos o seu pedido de iniciação na Ordem e ele, desde então, tem procurado a nossa perdição.
– Não é só por despeito que ele vos quer destruir. Sabeis disso– disse o Papa.
– Sei – respondeu o Grão-Mestre. É principalmente por cobiça.
– Assim– disse o Papa – com um olhar de viés, que não deixava dúvidas – seria conveniente tomar vossas providências em relação ao tesouro do Templo.  
– Entendo. Vossa Santidade tem razão. Isso será feito o mais rápido possível– disse o Grão Mestre.
 
   Jacques de Molay era um velho teimoso e analfabeto, como Guilherme Nogaret o apodava, mas não tinha nada de bobo. Sabia que um processo de difamação e calúnia estava em curso contra o Templo, processo esse que se destinava a liquidar a Ordem e expropriá-la de seus bens. Alguns dias antes chegara ás suas mãos um documento assinado por um advogado de Paris, chamado Pierre Dubois, denominado De recuperatione terre sancte, na qual o referido causídico advogava veementemente uma nova cruzada para recuperação dos domínios cristãos na Terra Santa. E que essa cruzada fosse comandada por Filipe, usando os recursos das duas poderosas Ordens, a do Templo e do Hospital.
   “Essencial para esse empreendimento” dizia o documento, “ é que a Ordem do Templo e do Hospital de São João sejam fundidas numa única organização.” Dado o pouco interesse demonstrado pelos hospitalários nessa fusão, e a obstinada resistência de Jacques de Molay, já manifestada inclusive por escrito, o documento não fazia por menos: recomendava sim-plesmente que a “Ordem do Templo fosse destruída e para as necessidades da justiça, aniquilada por completo.” 
     Foi por isso que, na noite de 12 de outubro, após assistir o funeral da princesa Caterine de Courtenay, esposa do Carlos Valois, irmão de Filipe o Belo, ele ordenara ao preceptor de Paris, Gerard de Villiers, que levasse o tesouro do Templo para Gisors, onde ele ficaria escondido até poder ser embarcado para o exterior. Isso foi feito, e assim, o dinheiro do Templo iria financiar as lutas dos portugueses contra os mouros e a guerra dos escoceses pela independência da Inglaterra.
    
      Filipe não conseguira botar as mãos no ouro do Templo mas se apossara de todos os bens que estavam registrados em nome da Ordem em todo o território da França. Isso não havia passado despercebido aos olhos do Papa. Embora repeitosamente, com a devida cautela de um Papa que era refém do rei, Clemente V mostrou certa indignação pelo ato de rapina praticado por Filipe contra os bens do Templo.“ Vós, nosso querido filho (...) violastes em nossa ausência e deitastes a mão a pessoas e propriedades dos Templários. Vós também os aprisionastes e, o que mais nos entristece, não os tratastes com a devida clemência e o respeito que merece as pessoas de tão altos dignatários. Acrescentastes ainda ao desconsolo do encarceramento outra aflição: Vos deitastes a mão á pessoas e propriedades que estão sob a proteção direta da Igreja Romana.(...) Vosso impetuoso ato é visto por todos, e de forma correta, como um ato de desrespeito para conosco e a Igreja Romana (...).”
     Era,sem dúvida, um ato de coragem, praticado por um Papa que tinha abdicado do seu poder e se submetera, covardemente, aos desígnios de um rei que fizera dele um mero títere, ás suas ordens. Clemente não estava preocupado com o destinos dos Templários, naquele momento encarcerados em sua maioria, caçados por toda a França e alguns deles sendo mortos onde eram encontrados. Eles estava preocupado com os bens da  Ordem, que Filipe surrupiara com mão grande.
    Certamente que ele, sendo o Papa e chefe máximo da Igreja, poderia ter exercido a sua autoridade sobre Guilherme de Paris, para evitar que os Templários fossem submetidos aos suplicios da tortura. Afinal, embora o tribunal da Inquisição fosse, de certa forma, independente até da influência papal, nenhum Inquisidor, por mais poderoso que fosse, se oporia ao Papa.
   A Inquisição era uma instituição eclesiástica e por conta dessa vinculação, estava subordinada ao Papa. Ela fora criada justamente para investigar a heresia cátara, e com a eficiência mostrada naquele episódio, se tornara uma instituição com vida própria. Tinha um imenso poder, que o próprio Papa temia. Os reis, como Filipe o Belo e Jaime II de Aragão, logo perceberam a importância política de tal instituição e fizeram dela uma arma poderosa contra os seus inimigos. Essa foi a razão de Filipe ter chamado Jean de Marigny, que depois se tornaria o temível Guilherme de Paris, para se tornar seu secretário e confessor primeiro, e depois faria dele o chefe da Inquisição na França.
    
    Levado á presença de Guilherme de Paris, o monge dominicano d’Ennezat leu para ele as mesmas acusações que já haviam sido feitas ao preceptor da Normandia, Geoffroy de Charney. Ao ouvi-las, Jacques de Molay mostrou a mesma indignação que seu Irmão de Ordem havia demonstrado ao ser confrontado com tais declarações.
– Infâmia – declarou o idoso cavaleiro, com uma indignação que as espessas barbas brancas não conseguiam esconder.
– Negais então as acusações que são feitas contra vós? – perguntou Guilherme de Paris.
– Nego, pela minha alma e pela minha devoção à Santa Madre Igreja, que tudo não passa de falsidade e calúnia – disse o Grão-Mestre, mostrando a altivez que ainda conservava, apesar da idade e da situação desconfortável que se encontrava.
   A postura altiva do Grão-Mestre não deixou de ser observada pelo Grande Inquisidor. “ Maldito herege”, pensou Guilherme de Paris. “Vejamos se ainda conservará essa postura de arrogância depois de alguns dias no cavalete.”
– Sabeis que essas acusações foram todas feitas por antigos Irmãos da Vossa Ordem? – inquiriu Gulherme de Paris.
– Essas acusações são falsas e foram feitas por membros expulsos da Ordem por conduta inadequada. Deveis levar em conta essa circunstância – disse o Grão-Mestre.
– Certamente a levaremos – disse Guilherme, com sorriso irônico. – Mas vós deverieis ser mais colaborativo e poupar vosso tempo e o nosso dizendo logo o que queremos saber.
– Se vós vos se referis a essas acusações absurdas que foram feitas contra a nossa Ordem, nada tenho a vos dizer – repetiu Jacques de Molay.
– E quanto aos bens em espécie do Templo, o que foi feito deles – inquiriu Gulherme.
   Era a primeira vez que essa pergunta surgia no inquérito. Jacques de Molay sabia que esse era o verdadeiro móvel de todo esse processo. "Estava demorando", pensou ele.
    Não pretendia entregar a coisa de modo tão fácil. Se Filipe queria destruir o Templo, e ele certamente o faria, disso o Grão-Mestre estava certo, pelo menos teria que salvar o tesouro do Templo. Ele permitiria que a Ordem permanecesse viva mesmo que fosse suprimida em França e outros países onde Filipe possuía influência.
– Não existem tais bens em espécie – respondeu o Grão-Mestre.
– Estais faltando com a verdade – disse Guilherme. Todos sabem que o Templo de Paris guarda uma incalculável riqueza em espécie.
– Ela foi toda emprestada ao rei Filipe e a outras organizações – respondeu de Molay. – Como sabeis, a coroa deve uma soma imensa ao Templo.
    Guilherme não estava disposto a deixar que o teimoso Grão-Mestre do Templo desviasse o interrogatório para outra questão.
– Recusai-vos pois, a nos dar essa informação?– insistiu Guilherme. – Sabeis que temos meios para arrancá-la de vós. Insistis em negar?
– Nada tenho a vos dizer sobre essa questão – disse o Grão-Mestre.
– Velho teimoso e tolo – vociferou o Inquisidor. – Sereis culpado por tudo que for feito convosco e com vossos Irmãos .
    Só dois olhos altivos e frios responderam á colérica ameaça do Inquisidor.
– Levai-o de volta á sua cela – ordenou o Inquisidor aos dois soldados que guardavam, impassíveis como estátuas, a porta da sala onde se processava o, interrogatório.  RIA.
 (continua)

DO LIVRO "A RECONSTRUÇÃO DO TEMPLO, ROMANCE DA MAÇONARIA- NO PRELO