Sobre remédios
Durante a idade média a igreja católica dominava a Europa; eram tempos de obscurantismo. Nessa época, a prática da medicina era muito mal vista. Não se deveria tentar interferir com os desígnios de Deus; se alguém ficasse doente, era essa a Sua vontade, e só uma mente endemoniada tentaria intervir diretamente na situação. Deveria-se apenas rezar, pedir a Deus para que tivesse complacência para com o ser em agonia, que o salvasse. Tentativas de curá-lo, a prática médica, eram vistas como bruxaria, artes demoníacas.
Tais crenças destruíram praticamente toda a medicina europeia. Todas as culturas humanas haviam desenvolvido algum meio de tratar os enfermos, alguma forma de medicina; a igreja destruíra o conjunto de práticas médicas incorporado pela cultura europeia. Restaram lá os pedidos a Deus.
Os iluministas começaram a questionar tais sandices supersticiosas, recuperando a ideia de tratar os doentes, mas, muito tarde, todo o conhecimento médico europeu já havia sido perdido. A descoberta do novo mundo, no entanto, trouxe novidades auspiciosas. Entre outras tantas, a redescoberta de práticas médicas. Os selvagens americanos conheciam inúmeras técnicas de tratamento de enfermos, conhecimento imediatamente apropriado pelos europeus.
Uma dessas práticas consistia na fabricação de remédios; infusões para ingestão oral, ou para aplicação tópica em lesões.
Estamos acostumados com a ideia de “remédios”. Ainda durante a infância, somos compelidos a acreditar que a ingestão de determinados compostos tem o poder de curar doenças, de eliminá-las. A justificativa de que a ingestão de determinadas substâncias é capaz de extinguir a doença de um corpo me parece bastante nebulosa, muito longe de ser óbvia.
Analisemos, brevemente esse conceito aprendido com os selvagens americanos. Talvez os primitivos acreditassem haver um espírito curativo em certas plantas que pudesse ser levado para o corpo através de infusões. Qualquer que fosse a crença, supunha-se que certas beberragens obtidas de vegetais tivessem poder curativo, fossem remédios capazes de curar doenças específicas. A crença não é simples, e me parece de difícil compreensão e justificativa. Aposto haver nela, ou no conjunto delas, um complexo arcabouço teórico que a justifique.
Os europeus, no entanto, trataram de descartar o referido arcabouço, a matriz ideológica na qual fazia sentido ingerir as estranhas beberragens portadoras de espíritos curativos. Mas se apropriaram da prática, sob novas justificativas, e os espíritos curativos foram cedendo lugar a substâncias químicas, nas explicações. Surgiu então a estranha crença de que certas substâncias químicas, quando ingeridas, teriam o poder da cura. A ideia tem seu apelo, ainda que bastante duvidosa. A crença gerou a proliferação dos remédios.
Mas, como inventar um remédio? Como descobrir que uma determinada substância química, administrada sob certa dosagem, tem poder curativo sobre determinada doença? O número de substâncias químicas é gigantesco, virtualmente infinito, impossível testar uma a uma, todos os doentes teriam morrido sem que a primeira descoberta tivessse sido obtida. Assim, impunha-se a hipótese bastante profícua de que haveria uma substância capaz de curar uma doença, mas nenhuma ideia de como encontrá-la, uma lástima. Restava aos europeus perguntar aos selvagens, e foram eles que ensinaram aos sábios de Europa como fazer os primeiros remédios.
Dessa maneira, os barbeiros europeus foram incorporando a seu conhecimento, os conhecimentos aienígenas remodelados, justificados por um modo mais apropriado aos padrões locais que impunham o expurgo de espíritos índios, favorecendo o enigmático e misterioso conceito de substância química. Os barbeiros que se aperfeiçoavam na nova arte iam ganhando o status de cirurgiões, e se especializando na cura dos doentes, abandonando concomitantemente a prática de cortar cabelos e barbas; surgiam os médicos.
Os novos médicos, então, tornaram-se os detentores do conhecimento da cura índia deslocado para o seu velho mundo. Note que os índios nunca mereceram respeito, e que a apropriação de seus métodos se dava através de uma certa esperteza dos larápios que, ao mesmo tempo em que incorporavam as práticas índias, as denunciavam como crendices incivilizadas. Não se buscavam médicos índios, os chamados curandeiros, para tratar os pacientes importantes, apropriava-se de parte de seus conhecimentos médicos, ao mesmo tempo em que se denunciava os impostores supersticiosos que os havia ensinado. Note que toda a medicina europeia havia sido eliminado, restando apenas a intolerância.
A medicina índia chegou à Europa de uma maneira muito truncada. Ainda havia fortes objeções religiosas contra essa forma de bruxaria demoníaca, além do quê, os detentores do conhecimento eram menosprezados, desrespeitados, reduzidos a sub-pessoas, de maneira que um cirurgião ilustre não poderia dar atenção aos ensinamentos de tais figuras. Colecionaram listas de ervas, e quando muito, das aplicações a que tais ervas se destinavam. Note que, tanto o nome da doença, quanto sua carcterização, eram distintas em um e outro mundo.
Posteriormente, as substâncias químicas dessas ervas índias foram isoladas, passando a ser aplicadas na forma de xaropes e comprimidos; sob essa forma podem-se conseguir preços muitíssimo mais altos que sob a forma de ervas.
Essa é a estranha origem dos remédios.
A imensa maioria dos remédios atuais ainda se baseia nesses conhecimentos índios. As infusões obtidas das ervas passaram a ser depuradas, extraindo-se delas o seu sumo, as drogas que, supostamente, teriam, de fato, o poder curativo.
Esse conhecimento original obtido com os selvagens permitiu a busca de novas substâncias similares às primeiras, encontradas em outras ervas, ou obtidas através de modificações químicas das substâncias originais. Tais modificações são facilmente conseguidas reagindo-se a substância curativa com outras, quimicamente ativas; o produto da reação herda, frequentemente, muitas das propriedades do reagente original.
Tendo se apropriado do conhecimento médico índio, os europeus trataram de negá-lo veementemente. Trata-se, como todos sabemos, de curandeirismo, de superstições nefastas causadoras de muitos males. A intolerância presente na raiz da medicina ocidental permanece presente e cada vez mais forte.
Sempre que uma prática curativa oriental, como a acupuntura, é trazida para o ocidente recebe inúmeras críticas, fortísimos apelos de proibição, e de proscrição de seus praticantes por parte dos médicos. Se, mesmo assim, a atividade resiste, os médicos passam a exigir o monopólio de sua prática, mesmo quando, como no caso da acupuntura, ela se baseia em pressupostos completamente estranhos e incompatíveis com os da medicina ocidental. Ainda que os pressupostos de ambas as práticas sejam completamente díspares e antagônicos, os lucros obtidos com as duas são contabilizados na mesma moeda.
Retornando aos remédios, o pressuposto de que substâncias simples possam curar determinadas doenças, ainda que surpreendente e altamente duvidoso, parece ter conseguido alguma confirmação empírica. Drogas como o álcool etílico, usadas há milênios, têm efeitos imediatos no organismo, favorecendo, por exemplo, a recuperação da temperatura, em condições de hipotermia. Os exemplos, de fato, existem, embora, relativamente, poucos.
Uma única situação parece plenamente compreendida e justificada: na falta de determinada substância, sua complementação tem efeito curativo. É o caso das deficiências, por exemplo, de ferro, cálcio, ou vitaminas.
A imensa maioria dos remédios, no entanto, não se encaixa em tal situação, pouquíssimos o fazem, basta conferir: pegue uns remédios a esmo em uma farmácia, todos eles terão suas indicações, no entanto, seus efeitos no organismo são pouquíssimo compreendidos, tendo-se apenas uma ideia muito vaga de como poderiam ajudar na cura das doenças a que são indicados; de fato, provavelmente, são variações de remédios índios, descobertos magicamente, utilizados, originalmente, por eles, sob justificativas inaceitáveis para os médicos ocidentais.
Pode-se supor que tais alterações, as modificações dos remédios índios têm ampliado o poder curativo dos remédios tradicionais. É possível que isso tenha ocorrido algumas vezes, ainda que tais alterações sejam feitas às cegas, com base em tentativas e erros. Imagine a chance de acertar alterando-se uma dada substância curativa às cegas. Na maioria das vezes, no entanto, tais alterações são necessárias como estratégias de mercado; medicamentos movimentam um mercado bilionário, disputado agressivamente por laboratórios gigantescos e ávidos de lucros. Talvez o novo remédio não acarrete melhoras mais significativas no paciente, mas certamente propiciará mais lucros.
Há uma segunda ressalva; além dos complementos alimentares, em meados do século XX descobriram-se substâncias antibióticas. Tratam-se de substâncias excretadas por outros seres, com o propósito de defesa de seu próprio organismo. O primeiro antibiótico descoberto, a penicilina, consistia em uma substância bactericida excretada por um fungo. Posteriormente outras substâncias análogas foram encontradas, produzidas por outros organismos. Também, se faz a modificação de tais substâncias reagindo-as com outros compostos. Provavelmente essa foi a grande descoberta da medicina ocidental. Funciona, Mesmo assim, trata-se, fundamentalmente, de uma utilização cega da defesa de um outro organismo.
De qualquer modo, ainda que se conheçam inúmeras ações das drogas no organismo, as relações de tais efeitos com a cura do doente, com a extinção da doença costumam ser completamente nebulosos. As bulas fazem referências a inúmeros efeitos da droga, mas dão apenas uma leve pista, bastante especulativa, de como ela extinguiria a doença.
Também não temos a menor ideia de como buscar uma nova droga, exceto pelo método absurdo e improfícuo de procurar a esmo, na doida. A única tentativa ocidental não obteve confirmação: entre os pressupostos homeopáticos encontra-se o de que “o igual cura o igual”, sugerindo a busca de plantas que apresentassem alguma similaridade com a doença, para dela extrair-se a substância curativa. O descrédito dessa ideia resulta em um surpreendente vácuo: ninguém tem nenhuma ideia de como procurar uma substância curativa. Assim, a se acreditar no funcionamento de nossos remédios índios, somos tentados a crer também em algum tipo de magia que os teria guiado nessa busca. Pode parecer completamente absurdo, mas ainda usamos remédios mágicos. Percebo agora que a expressão soa bem, ao contrário de “dança da chuva” por exemplo, um enigma.
Certos pudores fazem com que as propagandas de remédios sejam direcionadas aos médicos, e não à população em geral, camuflando a agressividade desse mercado. De fato, as revistas médicas, creio que todas elas, são financiadas pelos laboratórios. Note que são essas revistas que dão aval às medicações, que asseveram e determinam sua validação.
Quando uma nova droga está sendo testada, espera-se, frequentemente, resultados pífios. Obtidas através de tentativa e erro, de reformulções cegas de outras drogas, não surpreende que a maioria tenha mais efeitos deletérios que benéficos. De fato, a maioria delas não possui nenhum efeito curativo sobre a doença em mira.
Os que executam os testes, no entanto, sabem qual o resultado desejado pelos financiadores. Pode-se esperar que os laboratórios torçam para que seus remédios funcionem; há inúmeras razões para se orgulharem da cura de uma doença. Os lucros bilionários resultantes desses mesmos resultados reforçam ainda mais tal orgulho, e podem ser repartidas com outros.
Asssim, as lautas verbas recebidas dos laboratórios deixam bem claro que resultados são desejáveis. A aprovação de uma nova droga resultará em enormes lucros. os pesquisadores sabem disso, os diretores de revistas têm a memória refrescada constantemente pela imensa verba recebida dos laboratórios.
Pode ocorrer, e isso é bastante esperado, que dois pesquisadores, testando a mesma droga, encontrem resultados diversos. Não surpreende, em absoluto, que um pesquisador encontre evidências de efeitos curativos de um novo remédio, enquanto a medida de um outro sugira que nenhum efeito benéfico advém do uso do novo remédio.
Em circunstâncias normais, tal situação indicaria resultados inconclusivos, sugerindo a repetição dos testes. Efetivamente, para o laboratório que fabrica a droga, isso significaria o adiamento dos lucros, uma lástima. Os diretores das revistas têm plena consciência desse fato, e também torcem para que seus financiadores permaneçam felizes com os resultados dos testes e com suas publicações, afinal, eles pagam por isso.
Caso o editor deva escolher entre um e outro dos testes aventados, parece então bastante natural a escolha do resultdo que favoreça o uso do novo medicamento, que o valide. Muitos sairão felizes com tal escolha.
Os pesquisadores sabem dessa situação. Seu trabalho poderia parecer neutro, e deveria ser. O teste de um novo medicamento deveria resultar, simplesmente, na aprovação, ou reprovação neutra dos resultados. Não é o que ocorre. A reprovação será vista como fracasso. A reprovação sistemática dos testes de determinada droga acarretará sua rejeição, muito trabalho em vão, nenhum lucro obtido. Não há nenhum interesse na publicação de resultado tão desagradável, o que pode sugerir o adiamento da publicação, a repetição dos testes por outros profissionais, talvez mais habilitados, mais diligentes que esses que não conseguiram demonstrar os resultados das novas drogas. Uma vez que o laboratório financia a revista, todos sabem qual é o resultado desejado; o pesquisador que participa do jogo tem pleno conhecimento de tudo isso, sabe que será premiado caso consiga o resultado certo.
Por tudo isso, não surpreende que tantas drogas, e tão diversas, inundem as farmácias, mesmo na ausência de um método de busca de substâncias curativas.
Recentemente, parece ter surgido uma luz no fim do túnel. Novas tècnicas cristalográficas e de nanoscopia têm lançado luz sobre a estrutura de enzimas, catalizadores naturais altamente específicos que induzem reações químicas em nosso corpo. Esse novo conhecimento permitirá, no futuro, uma intervenção quase direta na fabricação de determinadas substâncias em nosso corpo, de modo que, em princípio, excessos ou carências evidenciados pelos exames bioquímicos poderão ser corrigidos exatamente onde necessários. Essa tecnologia é promissora. Pela primeira vez os pesquisadores terão alguma consciência do que estarão a fazer, sem a necessidade da utilização dos conhecimentos mágicos dos índios.
Podemos prever uma nova revolução na medicina. Acredito que isso venha a ocorrer nos próximos 30 anos. Posso apostar que, em seguida, a quase totalidade dos remédios atuais será posta de lado, denunciada como inócua. Creio que em poucas décadas, umas 5, imagino, nossas medicações contemporâneas passarão a ser vistas como bruxaria, equiparadas a asas de morcego.
De fato, em todas as épocas, os médicos criticaram seus predecessores. Pergunte a um deles sobre tratamentos antigos, da geração anterior, dirão que não funcionava. Em todas as épocas os médicos asseveram, com convicção, que os anteriores nada sabiam, que a medicina apenas engatinhava em seu tempo, e que aquilo era tudo o que podiam fazer em sua época, e complementarão: mas agora, os avanços extraordinários da medicina são indubitáveis, magníficos. Os do passado sempre repetiram isso, os do futuro repetirão o mesmo.
Acredito fortemente na tecnologia cirúrgica, que tem evoluído muitíssimo. Também acredito na tecnologia de imagens, recentemente trazida para a medicina diagnóstica. Mas não acredito na eficácia dos remédios, poucos deles funcionam, a maioria não passa de bruxaria.
Certo tempo atrás, fui ao dentista enquanto acometido por forte tosse, o que me causou certa apreensão. A injeção anestésica, no entanto, teve um efeito radical e imediato, inibindo por completo a tosse até então constante. O modelo usual da medicina atual sugeriria um efeito químico curativo da anestasia sobre a tosse; além disso, a palavra “anestésico” tende a sugerir um efeito calmante inibidor da tosse. Acredito em outra explicação. Penso que, sujeito a uma agressão química o corpo se retrai de algum modo, favorecendo alterações momentâneas capazes de mascarar sintomas de doenças já instaladas. Tal retração pode ser, facilmente, interpretada como indicativa de efeito curativo. Esse tipo de resposta poderia acarretar a aprovação dos testes de inúmeras substâncias inócuas para o tratamento da doença em mira. A retração devida à agressão química seria interpretada como efeito curativo.
Relembrarei o caso de Mozart, diagnosticado como portador de melancolia, doença comum em sua época. A droga mais indicada contra essa doença era o arsênico. Mozart morreu muito jovem, com os sintomas de envenenamento por arsênico. Hoje, esse tratamento seria criminoso. Posso apostar que nossas drogas contra “depressão” não são muito melhores que essa. Os que chamam a própria tristeza de depressão são vítimas fáceis.
Toda a questão, no entanto, é muito mais complexa. Uma vez fragilizados pela doença, gostamos de nos sentir amparados. Medicamentos adocicados têm seu papel; talvez não precisassem ser tão caros. Nossos remédios não são mais convincentes que uma dança da chuva.
P.S. Há um método que pode ser chamado: varredura estatística, e que consiste em encontrar, através de questionários, hábitos como ingerir tomate, como defesa contra determinados cânceres. Encontrado um alimento protetor, busca-se isolar a substância responsável pela proteção.