FECUNDAÇÃO

Recebo o poema pelo correio internético, brinde do autor, e me apresso em examiná-lo. Vejamos:

“COORDENADAS DO PRAZER

Uili Bergamin

com realidades inventadas

experimento

algum gozo

da própria concepção

o gozo

privado

tento preencher o vácuo

que entrevejo

e suporto

o gozo

de criar significado em tanta

criação

significantes trocam de acepção

deslizam formando cadeias

de metáforas e metonímias

invento coisas e sentidos

de coisas

que então me inventam

reciprocamente

que me completam

em tantos desejos quanto posso tolerar

coordenadas do prazer

é uma vontade de tudo

que o nada infinitiza”.

– Do livro DO ÚTERO DO MUNDO. Caxias do Sul: Dora Luzzatto, 2007, 72 p.

– Recebido por e-mail em 22/09/2013.

Realmente, trata-se de um bom exemplar em Poesia, incidental e incisivo. Um espécime bem diferenciado do que normalmente circula na Grande Rede, ressaltada a codificação linguística com raros laivos de metaforização polivalente, mas se percebe, de pronto, que o autor sabe de seu ofício. Pura metapoesia – porque poesia sobre poesia – dizendo de suas específicas dificuldades de estranhamento e alumbramento, como todo espécime em que existe um alter ego que se reinventa à revelia de seu criador, e anda de per se, atento ao seu reinventar recíproco, tal como em Fernando Pessoa-ele-mesmo-o outro. O mestre lusitano não se assumia como autor do texto em nenhum momento, porque claramente constatava que o texto poético nascia e fluía de seu alter ego, em que se percebe visivelmente a utilização do “eu poético”, que não é o seu próprio EGO, funcionando este como hospedeiro da inteira voz embebida de significantes e significados. Pode-se constatar o que afirmo em “Tabacaria”, o longo poema publicado em 1928, em que o “eu” e o dono da “tabacaria de defronte” – o Esteves – são os personagens que dão coro à historieta (possivelmente real) pejada de intimismo aparentemente personalizado, e ao mesmo tempo, recheada de questões universais, as quais tomam totalmente o espaço imaginário do eu poético do autor e, também o do leitor, que se envolve, emocionado, com a reflexão que o poema propõe. Este “eu poético” não é, por certo, o da pessoa do poeta, e sim, o homem universal e questionador hospedado no imaginário de Pessoa. No caso presente, também eu – o analista gozoso – frente à “fecundação” de Uili Bergamin, “infinitizo o nada”, tendo dentro de mim a “vontade de tudo”, pelo apossamento da espinha dorsal do texto, em gozo (privado) e imagístico. E recria-se a proposta – vivificada – tal como o vento outonal me deita os cabelos, sem destino e direção, no mundo real, emocionado e instigado por força do verbo tido e havido como depoimento. Bem como se espera de um poema freudiano de prazer e gozo na fecundação da Palavra. E o desejo completa-se pela inventiva do outro polo. O autor merece parabéns pelo poema, mercê de seu aparente hermetismo, que, no entanto, abre a janela ao sol, para formar um novo território de invenção – o do receptor. Tal como ocorre aqui, na propositura de um quase-intertexto pelo analista, que bebe água na fecunda fonte...

– Do livro A FABRICAÇÃO DO REAL, 2013.

http://www.recantodasletras.com.br/ensaios/4509667