A Literatura versus o Cinema na divulgação dos mitos gregos
Pego emprestado às crônicas de Clarice a noção de que depois da viagem do ser humano à Lua, nosso conceito de atualidade foi forçosamente modificado. Tudo se torna obsoleto com a passagem de um simples minuto. Apesar disso, opto por trazer à tona um assunto antigo, ligado a "Tróia" - um filme lançado há três anos.
Justifico-me: eu sou todo arcaico e desatualizado... só pego um livro quando este já cheira a mofo e, evidentemente, aqui em casa, estávamos ainda excluídos da era do DVD. E, como não freqüento cinemas, ainda não tivera a oportunidade de assistir tal filme.
Mas, depois de ter comprado o DVD e tê-lo instalado devidamente (claro, sem auxílio de manuais, que hoje não mandam mais isso junto com o aparelho), fui à locadora e, de imediato, aluguei este filme, atraído pelo eterno fascínio que a mitologia grega me causa.
O problema é que, assistindo ao filme, comecei a notar nele uma desagradável "dessacralização" da história contada por Homero. Na Ilíada, os deuses do panteão grego são participantes ativos da guerra, sendo mesmo seus causadores.
Todos sabem (sabem?) que o troiano Páris só foi correspondido por Helena porque Afrodite, deusa do amor, intercedeu por ele em troca de um julgamento favorável num concurso de beleza no Olimpo. O filme mostra isso? Não. Mostra apenas uma Helena adúltera que trocou um Menelau de aparência desagradável por um galã bastantes anos mais novo. Cadê os deuses, cadê as profecias? Alguém sabe a paternidade de Helena?
Interessante notar, ainda, que tirando os deuses de cena, os produtores tiveram que diminuir os dez anos da guerra para alguns poucos dias, resumidos em parcas cenas de combate direto. Bem feitas, é verdade, mas poucas.
A guerra de Tróia do cinema é bem menos romântica e envolvente que a obra de Homero. Apenas figuras humanas se mostram, tudo é levado adiante pela ânsia de poder de Agamênon e de glória de Aquiles.
Me lembra muito um romance de Kundera que nos mostra que o homem age por desejo de imortalidade. No filme, todos os movimentos dos personagens são em prol da imortalização de seus nomes e, estranhamente, vejo numa das cenas Aquiles dizer que os deuses imortais invejam os humanos. Quem inveja quem? Não sei.
Sei apenas que esse filme, embora compreensível, ao dessacralizar a história, tirou muito do "romantismo" que a lenda possui. Diluiu toda a lógica da história, toda a sua simbologia. Enfim, por não ter de situar a ação em uns quantos minutos na tela, Homero (e a Literatura de um modo geral) levam a melhor quando o assunto é criar ou recontar ou divulgar os mitos gregos.