O homem e a vocação
 
   A característica de uma personalidade, a sua "interioridade" é ser uma vida determinada pelo espírito; é quando a "interioridade" é caracterizada pela consciência de si mesma.
   A consciência só existe quando todo o biologismo do ser vivo, pode ser recriado espiritualmente e dar acesso a uma apreensão do "significado". 
   Em seguida, a interioridade pessoal é do "querer". Podemos falar do "querer", como da consciência. Da mesma forma, não poderíamos falar de vontade pessoal no vivente, quando apenas nele aparece um "instinto", que o leva a atos orgânicos ou psíquicos ordenados à manutenção da sua vida, isto é, estritamente biológicos. 
   Para que falemos de um querer autêntico, é necessário que nossas altas camadas e também nossas faculdades de apreensão sejam despertadas pelo valor do "ideal", pela exigência da "situação". É preciso que o sujeito apreenda esse valor como altamente objetivo, isto é, fundado nele mesmo, como ideal, e que ele o situe diante dele e em seguida passe à ação.
   Esta é uma característicca que se apresenta em sua pureza específica, quando não considerada apenas como "valor em geral", mas como valor de dever vocacional. 
   A vocação é a manifestação do sentido do homem; é a criação de uma forma vital expressiva dominada pelo espírito. A ação humana vocacional procede do espírito; sua segurança não instintiva, mas espiritual.
   
Se nos desviarmos da verdade a respeito de nós mesmos caimos doentes no espírito. Esta doença se dá não quando o homem escorrega para o erro, mas quando ele renuncia à verdade a respeito de si mesmo;não quando ele mente, ainda que frequentemente, a si mesmo, mas quando ele não tem mais a verdade como obrigatoriedade, não ainda quando ele engana o próximo a respeito de si mesmo, mas quando ele orienta a vida para a destruição de sua própria verdade. Então o homem adoece no espírito, e não é necessário que essa doença se manifeste em sintomas psico-patológicos, pois tal homem doente pode até ser muito poderoso e galgar sucessos e sucessos. Contudo ele não passa de um doente e um observador que não fosse um psicólogo, mas que tivesse também o dom de exergar as coisas do espírito, perceberia essa moléstia. É possível que a infecção se propague também no domínio psíquico e aí provoque sintomas clinicamente observáveis. Entretanto, a psiquiatria, por si só, está bem longe de poder sarar essa doença do espírito, pois seria necessária uma CONVERSÃO. E essa mesma conversão exigiria algo mais que um simples ato de vontade. Consistiria numa reforma real da consciência (metanoia), o que é bem mais difícil de ser feito que qualquer terapêutica.
   As raizes da vocação humana da "pessoa" são: JUSTIÇA E AMOR.
   A "pe
ssoa" adoece se ela se desvivar da justiça, não se ela cometer injustiças, mesmo frequentemente, mas se ela abandonar a justiça. Essa justiça é o respeito próprio de cada ser no seu princípio, e a ordem hierárquica que disso procede, no seu fim, na sua ação.
 
   O homem e a vocação

   Mesmo não sendo Deus, o homem é livre na ação. Ação (vocação) mas para que isso tenha sentido é indispensável que o homem se ponha na ordem fundada na Verdade, isto é, na justiça, ou melhor que ele faça da Justiça o seu Dever. Acho que aí poderíamos ver o sentido vocacional do homem. "Sede fecundos, enchei a terra e dominai-a" (Cn 1.28). Tudo foi posto nas mãos do homem, não como joguete nas mãos de uma criança, mas como realidade autêntica e "criada" por Deus, depositada em mãos fieis, para ser reconhecida e respeitada como tal. Ver essa vocação e aprová-la, isso é justiça, é a primeira atitude vocacional moral e fundamento das demais.
   O homem como pessoa finita só tem um sentido, se for esssencialmente orientado para a justiça; se ele desviar ficará exposto ao perigo e ele mesmo se torna perigoso, pois será uma potência, uma força sem ordem, e é justamente por isso que o homem adoece como pessoa. 
   Da justiça nasce o Amor, que é a percepção de um valor original presente numa realidade estranha a nós, antes de tudo nas realidades pessoais e é também experimentar a solicitude em que esse valor se desenvolve e subsiste, a solicitude pela realização. Não é quando o homem peca contra o amor, quando ele cai no egoísmo e na ira, que ele corre perigo de adoecer do espírito, mas sim quando ele abandona a sua vocação ao amor e faz da sua vida simplesmente um jogo de cálculo e de força.
   Parece-me que estão aí as raízes mais profundas da dignidade humana; dignidade da pessoa como tal. É possível a uma pessoa o sacrifício da vida temporal, de bens, de trabalho, mas nunca o sacrifício da sua dignidade vocacional como tal, porque a dignidade vocacional da pessoa é absoluta: ela não lhe advém do ser, que é finito, mas de um SER que é também Ele, absoluto, e não um Absoluto abstrato, de uma idéia, de um valor, de uma lei...pois essas realidades são apenas o conteúdo de sua vida concreta, não natureza da pessoa.
   Para mellhor compreendermos o sentido vocacional da pessoa, lembremeno-nos que a criação por Deus de uma pessoa é bem diferente da criação de uma realidade impessoal, pois esta sendo vivente ou não é simplesmente o efeito imediato do querer divino.
   Mas Deus não cria assim a pessoa, pois seria um ato sem sentido.Ele a cria por um ato que antecipa, e pelo mesmo fato funda a sua dignidade, isto é, por um APELO. As coisas nascem da ordem de Deus; a pessoa nasce do seu APELO, e esse APELO significa que Deus a chama a ser seu próprio "TU", ou mais exatamente, que ELE mesmo destina-se a ser o "TU" do Homem, o "TU" vocacional do homem. Deus é TU do homem no sentido absoluto e é nisso que consiste a personalidade criada.Se fosse possível ao homem esquivar-se dessa relação de pessoa a pessoa com Deus, se lhe fosse possível não apenas afastar-se de Deus, mas de escapar ontologicamente do face a face com Deus, se ele pudesse limitar-se simplesmente à relação pela qual o ser criado recebe do Criador sua norma e sua relidade, então ele deixaria de ser uma pessoa. Ele se tornaria e a própria hipótese é absurda —  a coia humana, o animal dotado de espírito. 
   Criando, Deus faz-se o "TU do homem, e ELE permanece como "TU", queira o homem ou não. E o homem é homem na medida em que, reconhecendo o que ele é e permanecendo na obediência vocacional, ele realiza a relação "EU"  "TU" com Deus. Em caso contrário, ele deixa de ser pessoa, visto que sua própria existência sobre a qual ele não tem nenhum poder é uma resposta ao APELO do Criador. Entretanto, por sua vontade livre ele entra em contradição com o seu próprio ser e torna-se uma mostruosidade. uma frustração vocacional total, que eternizando-se constitue a danação.
                                          
         Roberto Gonçalves
     Escritor

- Metanoia é uma palavra de origem grega e signifca arrependimento (tanto espiritual, bem como intelectual) mudança de direção e mudança de mente, mudança de atitudes, temperamentos, caráter trabalhado e evoluído (José Ferrater Mora, ed. Loyola, 2000, 780 pág)
 
RG
Enviado por RG em 13/09/2013
Reeditado em 01/04/2017
Código do texto: T4479878
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