Ilha do Bananal: santuário ecológico dos índios Karajá

Existem inúmeros grupos indígenas espalhados pelo Brasil, mas poucos deles são tão conhecidos e admirados como os índios Karajá. Basta fazer uma simples pesquisa para conferir que os Karajá estão entre os mais populares, ao lado de outros grupos importantes, como os Ianomâmi, os Xavante e os Tupi-Guarani.

Às vezes é difícil explicar as razões que tornam algumas culturas mais populares do que outras. Mas quem conhece um pouco da cultura dos índios Karajá entende facilmente por que eles são especiais. São muitos os aspectos curiosos e instigantes desse grupo.

De acordo com a cultura judaica/cristã nossa civilização surgiu no Jardim do Éden, um lugar belíssimo situado na região do Oriente Médio. Foi de lá que o primeiro casal, Adão e Eva, saiu para povoar outras localidades. Na mitologia Karajá há uma explicação semelhante, pois eles também surgiram de um paraíso natural, de onde saíram para habitar a região central do Brasil.

O mito de origem dos Karajá revela que eles moravam numa aldeia, no fundo do rio Araguaia, aonde viviam tranquilamente. Certo dia, um grupo resolveu conhecer a superfície, chegando à Ilha do Bananal. Eles ficaram extremamente fascinados com a beleza daquele lugar. A Ilha do Bananal é a maior ilha fluvial do mundo, com cerca de 2 milhões de hectares, e é considerada um imenso santuário para a vida selvagem. Os índios reconheceram naquele local magnífico inúmeras oportunidades que eles não tinham no mundo subaquático e, desde então, se espalharam para viver em aldeias às margens do rio Araguaia.

Foi dessa narrativa que surgiu a explicação simbólica que trata da divisão territorial dos índios Karajá em três grupos. Logo que saíram do mundo subaquático eles se dividiram em territórios diferentes. Os índios que se dispersaram da Ilha do Bananal descendo o rio Araguaia ficaram conhecidos como Xambioá, e habitam hoje aldeias situadas no município de Santa Fé do Araguaia, norte do Estado do Tocantins. Os Karajá são aqueles que permaneceram na porção oeste da Ilha e também os que subiram o rio Araguaia, habitando atualmente terras do município de Aruanã, em Goiás. O terceiro subgrupo é formado pelos Javaé, que ficaram no meio dos outros, na porção leste da Ilha. Vale destacar que mesmo ocupando diferentes territórios esses três subgrupos (Karajá, Javaé e Xambioá) preservam sua identidade como um só povo.

Desde sua origem do fundo das águas esses índios mantem forte relação simbólica com o rio Araguaia e seus afluentes. Cada um dos aspectos da cultura Karajá é recheado de símbolos e valores ligados a exuberante natureza da Ilha do Bananal e de suas redondezas.

É fácil perceber a diferença de uma aldeia Karajá/Javaé com as aldeias de outros grupos indígenas. Os Karajá sempre constroem suas aldeias dispondo as casas em duas ou três linhas retas paralelas ao rio. Enquanto outros grupos indígenas constroem aldeias circulares destinando o centro como local de referencia, as casas dos Karajá ficam todas voltadas para o rio, que é sua maior referência mitológica e social. É a partir desse simbolismo com o rio que eles estabelecem um território específico para a construção de suas moradias e de todos os demais aspectos de sua vida, como a construção dos cemitérios, das casas rituais, para a realização das festividades, para plantio das roças, coleta de frutos, caça e pesca.

Em contraste com outros grupos da região central do Brasil que preferem a caça, os índios Karajá/Javaé são exímios construtores de embarcações e excelentes pescadores. A Ilha do Bananal se assemelha ao pantanal matogrossense, pois nela também predominam os campos (conhecidos popularmente como varjões) que inundam no período de cheia dos rios. Não é de impressionar que esses índios tenham optado pela pescaria como sua principal atividade de subsistência, pois a Ilha do Bananal é berçário de cardumes dos peixes mais nobres, como, tucunaré, pintado, pirarara, filhote, dourada, cachorra, bicuda, piau, pacu, jaraqui, matrinchã, traíra, e o mais especial de todos os peixes do Brasil, o pirarucu (também chamado de pirosca). Os Karajá teciam artesanalmente grandes redes de fibra vegetal para realizar pescarias coletivas de pirarucus nos mais de 200 lagos que existem na Ilha. Além disso, a região do Bananal e de seus principais afluentes (rio das Mortes e rio Formoso do Araguaia) abriga imensas populações de tartarugas e tracajás, que anualmente desovam nas diversas praias que se formam quando o nível das águas baixa no período de estiagem.

Essa fartura de peixes e tartarugas serve para preparo de deliciosas refeições que são um destaque a parte nos principais rituais que eles realizam. O Hetohoky é o rito de iniciação masculina que marca a passagem dos adolescentes para a vida adulta. A Festa dos Aruanãs é uma grande comemoração que conta com a visita de seres míticos que saem do fundo das águas para se divertirem com os índios. Essas festividades são espaços de grande interação social, com momentos para refeições especiais, danças, cantorias, competições, jogos e brincadeiras. Esses dois rituais apresentam ciclos anuais, que se sincronizam com a subida e descida do rio Araguaia. No período de seca os rituais são mais discretos, no período de cheia os rituais são bem intensos e exuberantes.

Como preparativos para essas celebrações os índios se enfeitam com belas vestimentas e se pintam utilizando produtos naturais. O jenipapo misturado ao carvão fornece a cor preta; das sementes do urucum extraem a cor vermelha, que também pode ser obtida do barro vermelho retirado das margens do rio Araguaia; do tubérculo do açafrão obtém a cor amarela. Além das pinturas corporais, essas tinturas naturais são empregadas numa variedade enorme de itens, como, cestos, bolsas, máscaras, esteiras, maracás, colares, miçangas, cocares, remos, lanças, arcos, flechas e bancos ritualísticos.

As pinturas Karajá são riquíssimas em detalhes e associações simbólicas. Em geral os desenhos seguem formas geométricas e suas combinações (linhas, gregas, faixas e listras) são relacionadas a partes especificas do corpo humano e aos animais que habitam a região (morcego, jacaré, sucuri, jabuti etc.).

Os Karajá também são especialistas na produção de cerâmica. As famosas bonecas Ritxoko feitas de barro e delicadamente pintadas representam cenas da vida cotidiana ou retratam passagens de mitos e lendas. Eram usadas tradicionalmente como brinquedos pelas crianças, mas atualmente tem forte valor comercial. Especialmente na época de festividades, quando as aldeias ficam movimentadas pela presença de turistas, as índias comercializam grande número dessas belíssimas bonecas que são levadas pelos visitantes como peças decorativas.

Outro destaque da cultura dos Karajá se refere a sua vasta coletânea de narrativas tradicionais. Diferentemente de nós que buscamos transmitir nossos conhecimentos principalmente através de textos em livros e revistas, os povos indígenas repassam seus costumes e ensinamentos por meio de contos, estórias, mitos e lendas. Os Karajá têm mitos para tudo, para explicar a origem do sol, da lua, da chuva, do arco-íris, o surgimento da agricultura, o nascimento de animais e plantas, a origem da menstruação, a criação do homem branco, entre muitos outros. Normalmente, estes mitos estão associados aos rituais e a temas sociais, como o papel dos gêneros masculino e feminino, o valor do casamento, o contato com os brancos, as doenças e a morte etc.

Muitas comunidades indígenas já perderam parte de sua cultura, e até mesmo sua língua. Vários grupos chegaram a deixar totalmente seu idioma materno para falar somente o português. Quem visita uma aldeia Karajá/Javaé na Ilha do Bananal vê que eles mantém sua língua bem viva, e essa é mais uma das particularidades especiais desse grupo. Um fato curioso que chama muita atenção trata-se das diferenças que existem entre a forma como homens e mulheres escrevem e falam. Por exemplo, a forma feminina para a palavra “tartaruga” é “otuni” e a forma masculina é acrescida de uma letra “K”, ficando assim “(K)otuni”. Mesmo com essas diferenças entre a fala masculina e feminina todos se entendem bem.

Conviver por um tempo em uma aldeia indígena é uma oportunidade extraordinária para viver situações inusitadas e interessantes. Uma fonte de experiências curiosas e, às vezes, embaraçosas vem dessa diferença entre a fala dos homens e mulheres. Quando alguém está visitando uma aldeia Karajá e tenta aprender a linguagem deles é comum que os índios ensinem termos e expressões do sexo oposto, gerando assim muitos risos e brincadeiras. É importante destacar que o sorriso fácil, a alegria em situações rotineiras, o jeito descontraído no trato diário e o hábito de fazer brincadeiras são alguns traços marcantes da cultura brasileira que nós herdamos dos índios.

É certo que poucos povos indígenas brasileiros da atualidade possuem uma cultura material e imaterial tão rica e preservada como os Karajá.

A Ilha do Bananal é um local realmente especial, pois ela reúne características naturais do Cerrado, Pantanal e Floresta Amazônica, com espécies e ambientes dessas três áreas, o que a torna extremamente rica e diferenciada. Os Karajá se desenvolveram aproveitando ao máximo essa transição ecológica, aprimorando-se como uma sociedade indígena portadora de formas de organização social e cultural com alta capacidade de manejar recursos, bem semelhante aos grupos indígenas amazônicos mais evoluídos.

Comparativamente é possível dizer que a cultura dos Karajá é mais diversificada e abrangente que a de outros povos que se desenvolveram em locais áridos e com menor oferta de recursos.

A Ilha do Bananal, com sua variedade de ecossistemas, ofereceu uma gama enorme que produtos que ao longo de gerações foram apropriados pelos indígenas numa enormidade de aplicações. Nessa rica planície da bacia do rio Araguaia os Karajá/Javaé encontraram uma impressionante variedade de elementos naturais que permitiram seu amplo desenvolvimento sociocultural, mas que pelos mesmos motivos sempre os colocaram em situação de conflitos e lutas com aqueles que ambicionam desfrutar dessas riquezas naturais.

Conhecer a Ilha do Bananal com suas lindas paisagens, seus belos rios e lagos, suas extensas praias de areia branca, abundância de animais e plantas não deixa dúvidas que esse lugar precisa ser preservado. Entender que o rio Araguaia é o berço de uma sociedade única, que desenvolveu-se ao longo de gerações em sintonia com os ciclos naturais desse santuário, nos faz deixar de lado qualquer preconceito e nos leva a compreender que a Ilha do Bananal e seu povo nativo, os índios Karajá/Javaé, são partes especiais do rico patrimônio nacional que devem ser igualmente valorizadas e protegidas !!!

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Publicado na obra Nação Ilha do Bananal (2º volume da Série Retratos do Tocantins), do escritor e fotógrafo Divino Allan Siqueira. 1ªedição. Gurupi: Lógica, 2013, v. 02, p. 140-144. Home page: http://br.blurb.com/books/4695949-retratos-do-tocantins-nacao-ilha-do-bananal-fotogr

Giovanni Salera Júnior

E-mail: salerajunior@yahoo.com.br

Curriculum Vitae: http://lattes.cnpq.br/9410800331827187

Maiores informações em: http://recantodasletras.com.br/autores/salerajunior

Giovanni Salera Júnior
Enviado por Giovanni Salera Júnior em 13/09/2013
Reeditado em 26/10/2013
Código do texto: T4479442
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