A MAÇONARIA ROSA-CRUZ
 
 
As Lojas Capitulares do Rito Escocês fecham o ciclo dos seus ensinamentos com o grau 18, denominado Soberano Príncipe da Rosa-Cruz. Esse grau, no antigo ritual, como nos informa Bernard Rogers[1] era o último dos graus superiores, no qual se revelava ao iniciado a Palavra Sagrada, corolário de todo ensinamento esotérico que a maçonaria passava aos seus membros. No Rito do Arco Real, o ensinamento correspondente a esse grau é dado nos graus crípticos, correspondentes, no Rito Escocês, aos chamados Graus Filosóficos ou Kadosh.
Esse grau mostra a profunda interação existente entre as três grandes tradições que influenciaram o pensamento humano, na época de transição entre a chamada Idade Média e a Idade Moderna. É fruto das grandes mudanças ocorridas no cenário cultural do Ocidente, com o advento dos movimentos que ficaram conhecidos como Reforma Protestante e Renascença. A primeira, como se sabe, provocou verdadeira revolução no comportamento religioso das pessoas e a segunda, uma profunda mudança cultural.
Destarte, esse grau resume a interação entre a Alquimia, a Gnose e as tradições cavaleirescas, três grandes vertentes de pensamento herdadas da Idade Média, as quais, influenciadas pela abertura proporcionada pela Renascença, deram nascimento a uma forma de pensar e viver completamente nova, a qual viria a modificar toda a vida da sociedade ocidental.
O grau 18 apresenta uma síntese do pensamento rosacruciano, que era, na época, uma das mais fortes influências sobre o meio intelectual europeu. Por isso, apesar dos rituais maçônicos dar a esse grau diversos nomes, como Cavaleiro da Águia Branca, ou Cavaleiro do Pelicano, Mestre da Marca, etc. o que se trata, nesse grau, é o simbolismo iniciático introduzido na maçonaria pelos adeptos da Alquimia e os cultores das tradições da cavalaria. Foi dessa interação que nasceu, aliás, a aura de “clube de cavalheiros”, que a maçonaria assumiu desde então.[2]
Historicamente, sabe-se que a  Rosa-Cruz, como sociedade organizada, nunca existiu antes do século XIX. As chamadas Fraternidades da Rosa-Cruz (AMORC), que hoje são conhecidas por esse nome, nada tem a ver com o grupo de pensadores hermetistas que, entre 1614 e 1616, provocaram considerável comoção nos meios intelectuais da Europa, pelo lançamento de três famosos documentos de caráter misterioso e ocultista, chamados Fama Fraternitatis R.C., Confessio Fraternitatis Rosae Crucis e Núpcias Alquímicas de Christian Rozenkreutz .  Estes trabalhos, como demonstrados por Serge Huttin e Frances Yates, foram produzidos pelo alquimista Johan Valentin Andreas, um dos pioneiros do chamado grupo de pensadores rosacrucianos. Eram trabalhos, que refletiam também as questões políticas existentes na época, refletiam não só o conflito religioso desencadeado pela Reforma, como também as disputas dinásticas que ensangüentaram a Europa durante vários séculos.(3)
 
De acordo com os Manifestos Rosa-Cruzes, “iria ocorrer uma transformação no mundo da política e do pensamento da humanidade”, em razão dos segredos e da aplicação dos conhecimentos que os rosa-cruzes possuíam. “Uma nova época de liberdade espiritual começaria para a humanidade, na qual ela seria libertada dos grilhões que lhes impusera a Igreja Católica, durante séculos.” Com essa mudança, diziam os Manifestos, o homem voltaria a fazer parte da natureza, e com ela conviveria harmoniosamente, numa relação de participação e colaboração harmônica, e não como predador e dominador, como ocorria até então. Destarte, um “novo homem”, semelhante aquele que Giordano Bruno e os filósofos hermetistas profetizavam, nasceria dessa relação. Seria um homem socialmente comprometido com as idéias de progresso científico e material, e  espiritualmente preparado para professar uma nova religião, isenta de dogmas, cimentada nas virtudes da igualdade, da liberdade e da fraternidade. Uma religião onde a única deusa seria a Justiça, tendo como base doutrinaria a beleza e a ciência, que eram as fontes da verdadeira Gnose. Essa seria a doutrina, que alguns anos mais tarde, iria encantar a intelectualidade europeia e ser cultivada pela maioria deles com o nome de Iluminismo. 
 
Os Manifestos Rosa-Cruzes, como é óbvio, não revelavam nenhuma novidade no fervilhante caldeirão cultural em que se transformara a Europa em fins do Século XV e início do Século XVI. Eram idéias que já vinham sendo cultivadas nos meios intelectuais da França, Países Baixos e principalmente Alemanha, onde a população, especialmente os intelectuais, estavam já cansados das amarras que a Igreja colocava aos seus espíritos.
Os alquimistas, praticantes da chamada ciência hermética – um misto de ciência natural e doutrina gnóstica – eram os que mais sofriam com a perseguição da Igreja. Por isso, quando ocorreu a chamada Reforma Protestante, eles foram os primeiros a se aliar aos rebeldes pensadores da Renascença no seu repudio á ditadura do clero. Assim, o pensamento Rosa-Cruz, que refletia esse estado de coisas, nada mais representou do que um episódio da Reforma religiosa, pois se tratava, na verdade, de uma obra destinada a fazer a propaganda de uma cultura que havia sido reprimida e tratada com muita desconfiança pela Igreja até então.
Assim, o que esses Manifestos propagavam nada mais era que uma inteligente peça de mídia, que visava valorizar a Alquimia, seus pretensos segredos e conquistas no campo da ciência e do desenvolvimento espiritual, segredos esses que seus praticantes pretendiam ter possuir.
     Tudo isso, como se vê, já fazia parte do efervescente caldo cultural que fervilhava na Europa na época.  No inicio do século XVI começou a abertura cultural denominada Renascença. Assistiu-se á uma revalorização do homem a partir dos antigos modelos grego-romano de beleza e competência pessoal. O culto ao humano, eclipsado durante a Idade Média pela valorização do ideal ascético, começou a ganhar os principais centros intelectuais da Europa. A ciência, até então confinada aos mosteiros e aos laboratórios dos alquimistas, começava a se renovar pelo uso da razão,  sobrepujando a fé. Multiplicaram-se as universidades e estas montam centros de pesquisas, substituindo os antigos laboratórios dos alquimistas na investigação dos fenômenos da natureza. Nasce assim a ciência moderna.  Teorias racionais de explicação do universo contrastam com as velhas idéias admitidas pela Igreja.  
 
Em meio a tudo isso acontece uma revalorização do pensamento hermético e das teses gnósticas, que haviam sido banidas dos meios acadêmicos pelo expurgo feito pela Igreja no Concílio de Nicéia, quando a grande maioria dos escritos gnósticos, e os trabalhos dos filósofos hermetistas foram censurados e destruídos. Filósofos como Giordano Bruno, Thomas Mórus,Marcilio Ficcino, Pico de La Mirándola e outros, ressuscitaram as idéias de utopias políticas e religiões solares, que encantaram os intelectuais nos primeiros séculos da Era Cristã. As explicações do universo, admitidas pela Igreja, que eram centradas na filosofia de Aristóteles e no heliocentrismo de Ptolomeu são contrastadas por uma nova ciência astronômica desenvolvida por cientistas como Galileu Galilei e Nicolau Copérnico.
 Outros filósofos e artistas, como Leonardo da Vinci, Erasmo de Roterdã, Nicolau Maquiavel, Roger Bacon lançam as bases de uma nova ética e uma nova moral, enriquecendo o pensamento filosófico do Ocidente, antes centrado nas filosofias dos padres da Igreja, especialmente Santo Agostinho e São Tomas de Aquino.
 
Toda essa efervescência cultural logo se faria sentir no território mais sutil dos sentimentos humanos, que é a religião. A corrupção do clero católico e principalmente as motivações políticas e econômicas desencadearam a revolução protestante conhecida como Reforma, mas foi, sem dúvida, a onda de liberdade de pensamento que se espalhou pela Europa durante os anos da Renascença que destruiu o monopólio da Igreja católica sobre o espírito da sociedade ocidental. Desse caldo de cultura viria a surgir o frade Martinho Lutero para incendiar de vez o pensamento ocidental com as bases da sua Reforma Religiosa.
 
      Martinho Lutero (1483 – 1546) foi o desencadeador do movimento conhecido como Protestantismo. Não há qualquer informação que ligue a figura do inspirador da Reforma religiosa à Maçonaria, nem qualquer referência que possa sugerir uma interação dele com os maçons operativos. Mas, na altura em que ele dava início ao maior e mais importante cisma que o Cristianismo viria a sofrer em sua história, estes já constituíam um importante fenômeno cultural, difundido por toda a Europa, principalmente na Alemanha, onde ele começou a sua pregação.
Em razão da liberdade de consciência e da condição de pedreiros livres que ostentavam, podendo mover-se livremente pelo território europeu sem os incômodos burocráticos a que estavam sujeitos os demais cidadãos, esses profissionais e os intelectuais que eles haviam admitido em suas corporações, devem ter se constituído em importante canal para as idéias do frade alemão. Assim, face às ligações que Martinho Lutero mantinha com os círculos místicos da Alemanha, não seria imprudente apontá-lo como simpatizante das idéias daquele grupo precursor que viria dar origem ao movimento Rosa-Cruz, fundado pelo alquimista Joahnnes Valentin Andreas, no início do século XVII, cuja influência na Maçonaria foi fundamental para o direcionamento que ela tomou enquanto fenômeno cultural.
Os Manifestos Rosa-Cruzes excitaram, como é óbvio, a imaginação popular e não poucos intelectuais se sentiram atraídos pela “Fraternidade da Rosa-Cruz”. Como vimos, os rosacrucianos, na verdade, nada mais faziam do que divulgar teses e tradições herméticas desenvolvidas por alquimistas e filósofos gnósticos. Seus segredos eram aqueles que os alquimistas diziam ter descoberto em seus “magistérios”. Grupos desses “rosacrucianos” faziam parte ativa das Lojas especulativas alemãs, francesas e inglesas e tinham introduzido nos rituais dessas Lojas símbolos, alegorias, evocações e ensinamentos extraídos da tradição hermética e gnóstica. O termo “rosacruciano” tornou-se sinônimo de livre-pensador. Todo intelectual que não se conformava com a “saia justa” que as autoridades religiosas queriam impor ao pensamento se dizia, ou se julgava um “rosacruciano”. Voltaire, Isaac Newton, Leonardo da Vinci, Miguelangelo, entre outros, eram tidos como “rosacrucianos”.
Durante todo o século XVII as Lojas especulativas da Europa conviveriam com essa verdadeira Babel intelectual em que se tornara a prática maçônica. Maçons alquimistas, maçons gnósticos, maçons cavaleiros, cada qual, conforme escreveu H.P. Marcy, “interpretando à sua vontade as Velhas Constituições (as Old Charges), criando uma profusão de maneiras de fazer uma iniciação, de conduzir uma reunião, de interpretar os símbolos e os ensinamentos maçônicos.[3]
Em tese, podemos dizer que os Manifestos Rosa-Cruzes foram os correspondentes herméticos da doutrina professada na Maçonaria especulativa e anteciparam em mais de um século os estatutos da Ordem, porquanto agasalharam em suas propostas a idéia de Irmandade que a ordem maçônica mundial iria perseguir em seus objetivos.[4]
Por isso é que no grau 18 iremos encontrar toda uma tradição inspirada em temas alquímicos e cavalheirescos, tais como a alegoria da procura pela Palavra Perdida, que é claramente um tema hermético, da mesma forma que o mito da Fênix, o mítico pássaro que renasce das próprias cinzas, que na verdade, é uma alegoria que se refere ao processo de obtenção da pedra filosofal, o objetivo último de todo trabalho alquímico.
É verdade que nos ritos maçônicos as referências ao processo alquímico foram transformadas em alegorias de fundo espiritual para dar um caráter de esoterismo e transcendência á liturgia ritualística que ali se representa. De outra forma, cristianizaram-se diversas alegorias de inspiração hermética, para dar aos iniciados nesse grau uma aparência de doutrina alinhada com o pensamento cristão. Dessa forma, a Palavra Perdida, que na origem se soletrava IHVH, (o Tetragramaton dos gregos), passou a ser soletrada INRI, iniciais colocadas na cruz de Cristo.[5]  
Dessa forma, o catecismo do grau 18 do Rito Escocês, nada mais é do que o pensamento Rosa-Cruz cristianizado. Por isso é que, no painel do grau são representadas algumas das mais interessantes alegorias alquímicas Ali encontraremos a pedra que transpira sangue e água,posta sobre um triângulo que representa o Gólgota. E sobre o vértice desse triangulo uma rosa, simbolizando o sangue que o Filho do Homem verte sobre a cruz para a remissão dos pecados da humanidade. No meio da rosa, a letra G, símbolo da maçonaria, que representa a iluminação final, obtida pelo iniciado. No setentrião, um pelicano fura o peito com o bico. No meio do painel o mítico pássaro fênix, renascendo das próprias cinzas, está a denunciar o caráter hermético do grau, pois esta alegoria representa a própria essência da obra alquímica, ou seja, a ressurreição do metal impuro que foi destruído pela ação do fogo, e renasce das suas próprias cinzas, em outro estado, mas agora como metal puro, nobre, ou seja, o ouro.
Uma outra indicaçãode que o grau 18 foi inteiramente cristianizado é a obrigatoriedade de ele ter que ser realizado nas quintas-feiras santas, no horário em que Jesus teria realizado a sua última ceia com seus discípulos. Essa tradição denota a inspiração crística do grau, no sentido de que essa simbologia evoca um rito de passagem muito caro aos cristãos, que é a Santa Ceia. A Santa Ceia, como se sabe, foi a “iniciação de fato” a que Jesus submeteu seus discípulos para definitivo ingresso na sua Fraternidade. Essa iniciação se consumou com o simbólico ágape, no qual ele concitou seus discípulos a “beberem seu sangue e comerem sua carne”, para que eles, com esse ato, pudessem estabelecer uma eterna comunhão com ele. Essa tradição era comum em todas as antigas iniciações, pois o simbolismo de “comer o deus e partilhar do seu sangue”, constitui um dos mais antigos arquétipos da humanidade, como informa James Fraser em seu estudo clássico sobre mitos e tradições dos povos antigos[6]
Daí, também, o enceramento do grau ser feito com um banquete ritual onde os irmãos dividem um carneiro, evocação ao simbolismo do “cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”, simbolizando que os iniciados nesse grau, doravante chamados de “Cavaleiros Rosa-Cruzes” são os “novos homens”, renascidos como a fênix, responsáveis pela “transformação do mundo” preconizada pelos Manifestos Rosa-Cruzes.[7]
 


[1] Descobrindo a Alquimia, Círculo do Livro, 1994
[2] Essa aura de “novos cavaleiros”, que foi atribuído aos maçons seria invocada até por Napoleão, quando foi aconselhado por seu Ministro da Justiça a fechar as Lojas Maçônicas na França. “ Os maçons”, disse ele, “gostam de brincar de cavaleiros. Só representam perigo quando levam a sério suas fantasias”. Cf. Jean Palou-Maçonaria Simbólica e Iniciática- Ed. Pensamento, 1964.    
[3] Jean Palou,op citado, pg. 35- Frances Yates, O Iluminismo Rosa-Cruz - EdPensamento, 1986
[4] São vários os trabalhos alquímicos que tratam da filosofia Rosa-Cruz. Os dois manifestos mais famosos, entretanto, são o “Fama e Fraternitatis” e o “Confessio Fraternitatis”, ambos publicados pela primeira vez em 1614 e 1615 respectivamente.  Os Manifestos Rosa-Cruzes falam da criação de uma “Fraternidade mundial de sábios”, congregada para a prática do bem e o desenvolvimento das ciências, objetivo que também faz parte dos postulados da Maçonaria.
[5] Esta também uma clara inspiração alquímica, pois as iniciais INRI,  é uma divisa muito utlizada pelos alquimistas Ela significa “Ignea Natura Renovatur Integra”, que pode ser interpretada como “A natureza inteira se renova pelo fogo”. 
[6] James George Fraser- O Ramo de Ouro- Ibrasa, 1986
[7] Para uma visão mais detalhada do conteúdo simbólico do grau 18 veja-se nossa obra “Conhecendo a Arte Real, publicada pela Ed. Madras, 2007