CACOFONIAS E CACÓFATOS

Chega o poema pelo bate-papo do Facebook, e comporta, em sua subjacência, uma alta carga de afetividade, devido à condição da autora ter sido oficineira de Poesia nos cursos que levei a cabo em Campo Grande/MS, de 2003 a 2007, sendo que nas quatro turmas que prelecionei a mesma se disse presente em todos os encontros, de forma altamente atuante. Vejamos:

“FINAL DE INVERNO

Carmem Lucia Andrade

Desbotada flor

de inverno

alisava

suave pássaro

de pés tortos

na cumeeira

da casa fria.

Rios secos

e lágrimas de vidro

derretiam

pés de pombos

esmigalhados

sob cortina de fumaça.

Borboletas observavam

meninos de asas.”

Estimada Carmem, poetamiga! Agradeço por me apresentares a tua produção poética atual. Assim continuo a acompanhar o teu talento pessoal e altamente criativo, o qual eu tenho a alegria de acompanhar faz mais dez anos. Parece mentira, quanto tempo transcorrido... O poema em exame tem boa codificação, é sintético, e utiliza linguagem enxuta, sem derramamentos. Apresenta-se como um exemplar do gênero Poesia esteticamente bem acima dos usuais textos apresentados sobre esta singela e cotidiana temática. O Inverno a estação do ano em que o observador fica mais tempo dentro de casa e mais fortemente percebe o mundo circundante. A peça apresenta criatividade e invenção. Possui, no entanto, um hermetismo próprio de alguns códigos autorais e que não o torna universal, ou melhor, entendível para todos os que fazem a sua abordagem para navegar junto na canoa solitária da Poesia... Em alguns poemas anteriores havia notado que estás suprimindo alguns artigos definidos que nem sempre poderiam ser cortados, por vir a prejudicar o entendimento da mensagem contida na obra. Nem sempre é aconselhável cortar todos, no poema, porque o andamento rítmico fica prejudicado... E o leitor, acostumado à linguagem em sentido denotativo do dia a dia, fica buscando algo que parece faltar para o entendimento da peça poética. O corte dos artigos definidos somente se faz necessário quando, na leitura do poema em voz alta – devido ao som precário – se percebe o cacófato (a formação de nova palavra) ou a cacofonia, o som ruim que afasta a beleza e leveza ínsitas ao poema de ritmo agradável. Normalmente, a cacofonia se dá quando usamos o artigo no plural. Um bom exemplo é “as asas”, em que prevalece o som de uma letra que produz o som ruim: as(z)asas... Outros exemplos me vêm: “os olhos”: o(z)olhos...; “as escolhas”: a(z)escolhas... Dá uma revisada no poema em exame e perceberás que a utilização do artigo definido, no singular, em nada o prejudicará quanto à estética formal. E dará à peça um melhor entendimento, por abrir-se melhormente ao receptor. Repito o que já disse acima: trata-se, seguramente, de um exemplar lavrado em arte poética, o que é difícil de acontecer com os usuários comuns da net, que se perdem em derramamentos que excluem formalmente a Poética. O final do texto é poesia pura. E sobrevém em mim o encantamento. Por estas e outras é que vejo que a Poesia te encontrou no caminho e se faz convidativa aos leitores.

– Do livro A FABRICAÇÃO DO REAL, 2013.

http://www.recantodasletras.com.br/ensaios/4462616