Renato Caldas, o poeta matuto que o Brasil Consagrou
Renato Caldas (1911-1991) ainda é, penso eu, o nome literário potiguar mais conhecido em todo o Brasil. Foi ele "que deu nome ao Rio Grande do Norte nas letras nacionais" publicando em 1940, o seu livro de estreia (escrito em linguagem genuinamente matuta) intitulado "Fulô do Mato".
O poeta que aparentava simplicidade viveu uma juventude andeja, sem endereço certo. Quando moço, bebia inveteradamente. Seresteiro da velha guarda, bonachão, brejeiro. Câmara Cascudo com quem Renato conviveu na intimidade, o definiu de tal modo: "miolo de aroeira, vivo como um pé de vento, cheio de verve e inspiração mental."
O Brasil, "dando expansão ao seu temperamento cosmopolita, Renato conheceu de ponta a ponta, nas suas intermináveis andanças de romântico caminheiro", principalmente o Nordeste, se apresentando em palcos de cinemas, teatros e outros locais improvisados, declamando suas poesias irreverentes, amorosas, cantando emboladas e modinhas que também sabia produzir ao seu modo.
Renato viveu parte da sua mocidade no Rio de Janeiro, onde trabalhou e conviveu com grandes compositores e intérpretes da Canção Popular Brasileira como Sílvio Caldas (ambos consideravam-se parentes), Francisco Alves (O Rei da Voz), Noel Rosa, Almirante, dentre outros. O músico Silvio Caldas (responsável pela introdução da seresta na MPB), no começo dos anos setenta, de passagem para Fortaleza, entrou na cidade de Assu (RN), para rever o velho amigo que não via há bastante tempo, acordando o poeta "cantando ao pé da janela numa típica serenata interiorana" como depõe João Batista Machado. O escritor Machado afirma ainda que somente duas pessoas tiveram aquele privilégio: Renato e Juscelino Kubitschek, também amigo de Sílvio.
Outro fato importante que engrandece mais ainda a sua biografia, aconteceu no início da década de noventa, virou poeta para inglês ver, pois vários poemas de sua autoria estão traduzidos para a língua inglesa e publicados numa revista cultural americana intitulada "International Poetry Review (Poesia Internacional Revisitada, na tradução), 1991, volume XVII, número I, editada em Greensboro, Carolina do Norte como, por exemplo, o poema sob o título "Fulô do Mato", que diz assim:
Sá Dona, vossa mecê,
É a fulô mais cheirosa,
A fulô mais prefumosa
Qui o meu sertão já botô!
Podem fazê um cardume,
De tudo qui fô prefume,
De tudo qui fô fulô,
Quí nem um, nem uma só,
Tem o cheiro do suó
Qui o seu corpinho suô.
- Tem cheiro de madrugada,
Fartum de areia muiáda,
Qui o uruváio inxombriô.
É um cheiro bom, déferente,
Qui a gente sintindo, sente,
Das outa coisa o fedô.
O poeta, no seu próprio dizer conheceu o sertão com os seus olhos. Os seus ouvidos já escutaram os gritos abafados pela fome de uma população flagelada e os arpejos sonoros de uma viola pontilhada; os seus olhos já viram os rios transbordando e já viram também, nos bebedouros esturricados, o gado morrendo de sede! Viu e sentiu o sertão: povo, solo, clima e paladar do seu trabalho." E um dia o poeta do povo, angustiado, escreveu:
Venha ver seu moço, ói,
O que é fome no sertão.
Mecê, é lá da cidade,
Num tem a infelicidade,
De conhecê isso não.
Mas é bom sempre que vêja,
Pru móde me acreditá.
E, pru raiva, ou compaixão,
Dizê aos nossos irmão,
Qui viu o nosso pená.
... Mas sertão num é Brasí.
O Brasí, é lá pru sú.
Isso aqui é um purgatóro...
Quem mata a fome é o sodóro
E a sede é o mandacarú.
Os versos daquele poeta eclético, versátil, retrata além da seca devastadora, a enxurrada (que também castiga algumas regiões do sertão nordestino), os amores fracassados. Tem alegria, irreverência, humor, malícia, como o célebre poema intitulado "Reboliço", que na década de cinquenta o poeta potiguar Celso da Silveira declamou num certo programa cultural da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, além de ter sido recitado por Zé Praxedes - O Poeta Vaqueiro, nas apresentações que fazia pelo Brasil afora, bem como declamado pelo deputado federal Ney Lopes no plenário da Câmara dos Deputados, a propósito do falecimento de Renato Caldas em 1991, cujos versos transcrevo adiante para o nosso deleite:
Menina me arresponda,
Sem se ri e sem chorá:
Pruque você se remexe
Quando vê home passá?
Fica toda balançando,
Remexendo, remexendo...
Pensa tarvez, qui nós véio,
Nem tem ôio e nem tá vendo?
Mas, se eu fosse turidade,
Se eu tivesse argum valô,
Eu botava na cadeia
Esse teu remexedô...
E adespois dele tá preso,
Num lugá, bem amarrado,
Eu pedia - Minha Nêga,
Remexe pro delegado.
As suas décimas (glosas), trovas, quadras, bem como as suas tiradas e boutades são terríveis. Certa vez, estando em Natal, no consultório do dr. Pedro Segundo, um velho médico natalense, aguardando ser atendido para ali proceder o exame de toque na próstata, escreveu:
Vejam a desgraça do mundo!
Depois de velho e cansado
Vou recordar o passado
Levando dedo no 'fundo'.
O doutor Pedro Segundo
É quem vai aproveitar.
Eu terei de suportar
Esse tremendo suplício:
Por o fundo em sacrifício
Para poder melhorar.
No ano de 1968, Renato se submeteu a uma cirurgia na próstata, no navio hospital do Projeto Hop, da Marinha norte-americana que naquela época se encontrava encalhado no Porto de Natal. Obtendo sucesso no procedimento cirúrgico, o médico logo lhe deu alta, porém com a seguinte recomendação: “Seu Renato. O senhor está de alta, mas cuidado para não comer gordura!" Renato olhou para sua mulher que pesava aproximadamente seus bons cem quilos, dizendo: "Está ouvindo, Fausta, e agora?"
Certa feita, ao passar pela feira livre de certa cidade do interior nordestino, fora abordado por uma feirante vendedora de legumes. "Seu Renato, faça um versinho para eu divulgar minhas batatas!” E ele de imediato escreveu num pedacinho de papel de cigarro, dizendo assim:
Batata, batata doce
Batata que o povo gosta,
Um quilo dessa batata
Dá vinte quilos de 'bosta'.
Renato namorava uma jovem chamada Maria da Conceição que certo dia regressou à São Paulo para passear e rever familiares. Conceição se com ele, Renato, que retornaria em trinta dias. Na hora da despedida, Renato entregou a sua amada, o seguinte bilhete rimado:
Maria da Conceição
Faça uma boa viagem
E leve meu coração
Dentro da sua bagagem.
Passaram-se dias, meses, anos, e nada de notícias de Conceição. Ao tomar conhecimento que ela, sua amada, teria se casado naquela capital paulistana, bem como do seu endereço, vingou-se num telegrama rimado endereçado a Conceição, dizendo:
Maria da Conceição
Você fez boa viagem?
Devolva meu coração
Que foi na sua bagagem.
E o mulherengo poeta no melhor de sua criatividade, escreveu no seu "Oiá Pidão", o poema adiante:
Os óio de Sinha Dona?
Ninguém pode arresistir.
Parece dois esmolé.
Qui só véve pra pedi.
Óios pidão desse geito,
Juro pro Deus, nunca vi.
Às vez, eu penso, Sá Dona,
Quando óio pra vancê:
Qui mecê tá é cum fome
E vergonha de dizê...
Eu tenho aquela vontade
De me virá em cumê.
Mas, tenho mêdo, Sá Dona,
Qui seja tapiação;
Pode mecê num tê fome
E fazê judiação:
Pegá, amassá, mordê
E adespois largá de mão.
Fernando Caldas