MELANCOLIA, de DÜRER
MELANCOLIA*
“Eu, mãe de sangue denso, fardo putrefato pesando sobre a terra, quero dizer quem sou, e o que por meu intermédio pode vir a ser. Sou a bílis negra, primeiro encontrada no latim, e agora no alemão, sem ter aprendido nenhum dos dois idiomas. Posso, pela loucura, escrever versos tão bons como os inspirados pelo sábio Febo, pai de todas as artes. Receio apenas que o mundo possa suspeitar de mim, como se eu pretendesse explorar o espírito do inferno. De outra forma, eu poderia anunciar, antes da hora, o que ainda não aconteceu. Enquanto isso, permaneço uma poetisa, e canto minha própria história, e o que sou. Devo essa glória a um nobre sangue, e quando o espírito celeste em mim se move, inflamo rapidamente os corações, como uma deusa. Eles ficam então fora de si, e procuram um caminho mais que terrestre. Se alguém viu alguma coisa através das sibilas, isso aconteceu graças a mim.”
(Poema de TSCHERNING. Melancholey Redet Selber. In: Apud BENJAMIN, Walter. Origem do Drama Barroco Alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984, p.170.)
Albrecht Dürer (1471-1528) pode ser considerado como o primeiro pintor obcecado pela própria auto-imagem. Além dos famosos auto-retratos e cenas religiosas inscritos em suas gravuras, Dürer também introduziu o nu na arte do norte europeu. Sempre movido pela “tentação de Narciso”, Dürer acreditava que todo artista - feito um demiurgo - devia descobrir os segredos do universo para atingir a beleza. Mas, que padrão de beleza Dürer intencionava atingir mediante a arte? De acordo com os estudos de Erwin Panofsky, o estilo das obras de Dürer marca a preocupação do pintor em redescobrir e reconquistar os padrões clássicos da arte da Antigüidade. Por outro lado, devemos lembrar que, historicamente, Dürer viveu no momento de transição da Idade Média para o Renascimento. Esta época foi marcada por uma longa crise advinda de recentes acontecimentos que haviam assolado o território europeu: a Peste Negra, a Guerra dos Cem Anos, as Revoltas Populares, além de outras tragédias. A impressão que se tinha era a da aproximação do final dos tempos.
Nesse sentido, a obra de Dürer consistiu num trabalho de síntese; ela representa a fusão que a criatividade artística do artista operou entre a sua inspiração nos clássicos da Antigüidade e a sua sensibilidade religiosa - a devoção religiosa de Dürer aparece com intensidade, sobretudo em sua série de xilogravuras que representam cenas do Apocalipse. Além disso, nota Panofsky, o projeto de reconquista da Antigüidade Clássica por Dürer é movido por uma inspiração atravessada por elementos artísticos procedentes do “Quatrocento” italiano:
“até a iconografia das primeiras figuras ‘ideais’de Dürer parece depor a favor, e não contra, sua derivação do ‘Apolo de Belvedere’. Dürer não foi ao encontro do ‘antique’, mas o ‘antique’é que foi ao encontro de Dürer- através de um intermediário italiano.” (Panofsky, 1979, p.333)
Entretanto, a independência reivindicada pelo artista Dürer era, freqüentemente, incompatível com a sua fé religiosa. Nesse sentido, a obra de arte movida pelas concepções do próprio artista é que oferecerão a autonomia ao objeto estético de Dürer. A geometria era a ciência por excelência tanto para Dürer como para o seu tempo. Assim, a elaboração da coleção de xilogravuras do artista foi inovadora, na medida em que deu destaque às imagens procedentes do universo religioso movidas por leis naturais. Dessa forma, Dürer promoveu a união perfeita do real com o imaginário, circunscrevendo o delírio do imaginário em regras geométricas. Foi esse trabalho de criação e inovação artística que conferiu a Dürer a condição de primeiro pintor a elevar a descrição da Melancolia à dignidade de um símbolo.
O que vemos, afinal, no quadro Melancolia I ?
A imagem, em geral, reproduz um campo de ruínas. A personagem central é um anjo ou um gênio alado de semblante irado e com os cabelos e as vestes, ambos em desalinho. Numa das mãos apóia o rosto furioso, e na outra carrega um compasso com o qual procura registrar alguma coisa; o braço encontra-se apoiado num livro fechado. De acordo com estudos de Klibansky, Panofsky e Saxl, “la gravure de Dürer se compose, en ses détails, de certains motifs mélancoliques ou saturniens traditionnels (clés et bourse, tête dans la main, visage sombre, poing serré)... ”. Ao redor da figura alada encontram-se, em desordem e espalhados pelo chão, os mais variados utensílios da vida ativa, além de outros detalhes procedentes da tradição cultural (pedras transformadas em figuras geométricas, a figura de Eros, um calendário...); todos eles sem qualquer serventia e tornados objetos de uma meditação irada, insistente e infindável sob o furioso olhar dessa espécie de anjo. Ao fundo, os anéis de Saturno suspensos no céu reúnem o sol (ou a lua?), irradiando intensos feixes de luz; vê-se, também, um sereno oceano. A geometria penetra em todos os detalhes do quadro, adquirindo status de poder artístico organizador na Melancolia I de Dürer. Como observa Olgária Matos, a:
“(...) aliança entre geometria e melancolia tem uma longa tradição: aqueles dotados para a geometria são predispostos à melancolia, porque a consciência de uma esfera situada fora de seu alcance faz sofrer àqueles que têm o sentimento da limitação e insuficiência no plano do espírito.” (Matos, 1989, p. 152)
Assim, para os filhos de Saturno o saber é sempre obtido pela eterna ruminação dos pensamentos, marcada pela certeza de que a conquista da objetividade do objeto é sempre insatisfeita.
A teoria da melancolia está estreitamente associada às influências astrais. A mais fatídica dentre elas é a exercida pelas influências astrais de Saturno, o planeta portador da melancolia. Segundo as análises de Klibansky, Panofsky e Saxl, “la fusion opérée par Dürer de la triade Saturne, Mélancolie et Géométrie son unification en une figure symbolique”.
Contudo, em se tratando de seus antecedentes culturais, a concepção de Melancolia, para os antigos gregos, mostrava-se por uma significação diferente, a qual avança sobre a Idade Média mediante a filosofia naturalista dos Quatro Humores.
PROF. DR. SÍLVIO MEDEIROS
Campinas, é outono de 2007.
* Direitos autorais reservados à Biblioteca Central da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, 1999.
NOTA DO AUTOR
O leitor interessado em contemplar a gravura “Melancolia I” de Dürer, por gentileza consultar: www.vil.net/nkdee/tegendraads.jsp
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
KLIBANSKI, Raymond, PANOFSKY, Erwin, SAXL, Frittz. Traduit de L’a anglais et d’autres langues por Fabienne Durand-Bogaert, Louis Évrard. Saturne et la Mélancolie. Paris: Gallimard, 1989.
MATOS, Olgária. Os Arcanos do Inteiramente Outro a Escola de Frankfurt, a melancolia e a revolução. São Paulo: Brasiliense, 1989.
PANOFSKY, Erwin. Significado nas Artes Visuais. Tradução Maria C. F. Kneese. São Paulo: Perspectiva, 1979.