LOBO DA COSTA, O MAGNÍFICO

Pretendemos realizar uma reflexão sobre alguns aspectos da vida e obra do grande poeta e jornalista Francisco Lobo da Costa, que lamentavelmente em vida não teve a oportunidade de receber os louros que lhes eram devidos. Vamos tentar entender porque algumas mentes brilhantes parecem cumprir um destino solitário e obscuro na sua curta transitoriedade, e as transformações sofridas pelos indivíduos que inevitavelmente são vitimados por uma época castradora e individualista.

Faz-se necessário também perceber a importância da subjetividade humana, esse mundo interno que ao longo do tempo vamos adquirindo, e que é formado através das crenças e valores do indivíduo, com suas experiências e histórias de vida, ou seja, o somatório de seus conhecimentos que lhes dão a percepção das coisas. Se lembrarmos da filosofia kantiana, o mundo não têm sentido algum, e a existência é um vazio a ser preenchido. Somente o homem com sua capacidade de criar e recriar, é que pode dar um sentido ao próprio sentido.

Para trilhar esse caminho encantador da interpretação da vida e do homem em todo o seu contexto, e a sua pluralidade de interpretações e simbologias, vamos nos valer de algumas anotações teóricas da psicologia, para podermos entender a cultura de uma época, a produção universal dos sentidos (religião, ciência e filosofia), modos diferentes de construir a realidade, e o processo de desenvolvimento humano, que inclui:

1. SUBJETIVIDADE (algo que é interno);

2. INDIVIDUALIDADE (características naturais do indivíduo);

3. PERSONALIDADE (processo resultante de relações entre as condições objetivas e subjetivas do indivíduo); e

4. IDENTIDADE (atributos específicos de cada um).

Todos estes fatores são extremamente necessários para a compreensão da formação do psiquismo. Baseados nisso, vamos analisar com muito carinho a Francisco Lobo da Costa, grande figura que nasceu em 1853. Observar o seu potencial, suas emoções, suas aptidões e suas preferências. Vamos procurar entender a sua trajetória e o enigma que envolveu sua passagem neste espaço terreno, cujo caminho não se fez de modo linear nem contínuo, pelo contrário, foi repleto de rupturas, relações complexas, indiferenças, discriminações e muita mágoa.

Pensando bem, essa reflexão não deixa de ser também sobre nossa vida, nosso trajeto, nossa existência no aqui e agora. Talvez porque todos nós possuímos um pouco de “Francisco”: seus sonhos, suas frustrações, seus impasses, e sua desconformidade com o mundo. Da mesma forma, todos nós, em alguma vez, já sentimos o seu sucesso, a sua criatividade e o seu lirismo poético. A vida é a repetição de tudo. Somos todos circunstancialmente atingidos por faltas, patologias, conflitos, perdas, desencontros, além do lado prazeroso: o sucesso e as realizações tão sonhadas. Muda apenas o personagem de cada contexto, e ele é quem determinará a amplitude e intensidade de seu ato. Importante também é salientar que o homem é produto de sua época, e recebe toda a influência no seu tempo, espaço e cultura.

Francisco Lobo da Costa, nosso poeta, era um homem comum, filho de um militar não graduado e pequeno comerciante, que devido à situação financeira precária, não conseguiu prover os estudos, de seus filhos. Quando completou 14 anos, sem outra alternativa, o adolescente Francisco teve de interromper a escola e trabalhar.

Nessa época, a independência das colônias latino-americanas impulsionou um sentimento de nacionalidade diretamente refletido pela literatura. Embora o espírito nacionalista fosse intenso, parte da população brasileira permanecia na miséria, em situação de escravidão, sem acesso à emancipação e aos direitos humanos básicos, como o direito à educação, etc. Um verdadeiro paradoxo.

Diante da dificuldade financeira enfrentada por sua família, e não podendo permanecer nos bancos escolares, Francisco foi ficando cada vez mais indignado com o destino que lhe era reservado, de tal sorte que o poeta assumiu uma posição de rebeldia e protesto. Julgo importante ressaltar que se soma a tudo isto o fato de que Francisco era um adolescente e que, por si só, precisava construir sua identidade e sua personalidade. Precisava, portanto, demarcar seu território, e acima de tudo experimentar a conquista de espaço que lhe era negada. Certamente que, para atingir a identidade do ego, ele necessitava passar por vários processos de identificação que, em verdade, foram mal vivenciados, surgindo o que se chama de "confusão de identidade", que gera tudo o que ele sentia: angústia, rebeldia, retaliação e dificuldade de relacionamento.

Certamente que a arte de se expressar através da poesia deu a Francisco um significante e um significado para a sua vida. Considerando que o homem é um processo em construção, que detém a liberdade e o poder de escolha, o menino discriminado pela elite, conseguiu se expressar, ou seja, dizer algo de algo e imortalizar o seu nome. Foi exatamente aí onde ele conseguiu construir o mito e a magia, constituindo assim, uma organização ideológica do mundo. Este fenômeno acontece quando o homem constrói uma imagem mental e representativa através da intersecção entre o mundo subjetivo e o mundo objetivo.

Seu comportamento contestatório e hostil foram, sem dúvida, o resultado de uma vivência social, eivada de um ambiente agressivo, controlador e excessivamente discriminador. Quando o indivíduo possui quem o ajude a compreender-se e modificar os conceitos que tem de si- mesmo, há possibilidade da modificação de posturas e comportamentos, mas para isso é preciso que haja um clima favorável para que ocorra essa ressignificação. No entanto, quando isso não ocorre, o indivíduo bloqueia esse desenvolvimento, surgindo então os conflitos que se fortificam em fatores externos.

Como jornalista, transformou seus espaços de comunicação num verdadeiro pelourinho, denunciando em seus artigos as contradições e irregularidades da época. Os teóricos dizem que toda frustração leva a uma agressão. A pessoa ressentida com o mundo agredirá outras pessoas ou a si mesma: a autoagressão. Mesmo portador de uma capacidade inventiva capaz de uma releitura, Francisco absorveu a identidade daqueles que viviam na boemia, com seus erros e escolhas que não levavam a caminho nenhum. Tudo isso o levou a materializar, no universo de suas idéias, imagens e desejos contraditórios para uma sociedade extremamente discriminadora. Afinal, não podemos esquecer que o jovem Francisco era apenas um menino em processo de maturação, sem acesso à renda, à posição social, sem poder e sem regalias, a não ser a sua poesia que tinha como porta-voz, e a imprensa, da qual se utilizava para saciar o seu desejo de resposta.

Na verdade, a nossa capacidade de viver a realidade é muito fragmentada. Principalmente quando somos jovens e acreditamos que os contratempos estão excluídos de nossa vida, que o inesperado está fora de cogitação, porque de certa maneira nos sentimos onipotentes e donos do mundo. Por isso, entender a própria finitude e limitação é o primeiro passo para atingirmos a maturidade e para poder construir ou reconstruir se caso (ruir) o sonho e o desejo.

Nosso poeta Francisco viveu em uma época marcada pelo escravagismo, na qual uns poucos eram senhores e a maioria escravos. Pelotas era marcada pela opulência do charque, ficando muito evidente que o preconceito em relação à classe social menos favorecida era intenso e determinante.

Sua história é igual à de muitos outros jovens que não têm o privilégio de apenas estudar e vivenciar a vida em toda a sua plenitude prazerosa. Já dizia Freud, o pai da psicanálise: Somos feitos de carne, mas temos de viver como se fôssemos de ferro.

Penso que seria importante analisarmos o porquê da rejeição de Lobo da Costa: seria ele rejeitado pela sua classe social e pelas duras palavras utilizadas nas críticas de jornal ou seria ele invejado pela sua criatividade poética, em que pese ter saído tão cedo da escola?

Certamente que a inveja é um dos sentimentos mais depreciativos e destrutivos do ser humano. De onde vem a inveja? Da inconsciência do indivíduo sobre si próprio. Do vazio que ele não consegue preencher. Da sua necessidade de mostrar-se frente a tudo e a todos, de ser olhado e amado sem limites. De ser o melhor. É uma historieta que vem desde Caim e Abel, depois se repete com nossos pais, nossos irmãos, amigos e o meio em que vivemos.

Se formos analisar Lobo da Costa sob o foco psicanalítico, constataremos que suas criações artísticas são imaginárias satisfações de desejos inconscientes, iguais aos sonhos, e tanto quanto os sonhos, essa criatividade e dom foram utilizados no sentido de evitar um conflito aberto com as forças de repressão. Seu poema “Na chácara”, evidencia nossa exposição quando ele diz:

“E hei de esmagá-la no peito,

Como uma serpe, à traição,

Feri-la? Com que direito?

Matá-la?! Com que razão?

Se eu vejo um mundo tão vasto

Embora cheio de fel!...

E vou levado de rastro

Nas ancas do meu corcel.

Francisco fala de esmagar a serpente, símbolo da traição, mas ao mesmo tempo retrocede, percebendo que não lhe é dado o direito de escolha, entre a vida e a morte, e então se questiona. Fala também do FEL, ou seja, da sua DOR, do seu sonho E de seu desejo, mas também fala que o mundo é um corcel, um potro indomado, que tendo o nome de preconceito, o arrasta pelos descaminhos sem dó e sem piedade.

Freud diz que o homem possui um permanente conflito entre forças antagônicas que se: digladiam: Uma é a pulsão da vida e a outra é a pulsão da morte. Estas energias transitam livremente para aliviar a sobrecarga das tensões que regressivamente sempre trazem um terremoto de lembranças e imagens.

Ainda no fragmento do poema “Na chácara”, ele registra:

Se eu vejo pois tudo isso

Que à contrição me conduz,

E sinto o pranto de cristo

Caindo na minha cruz.

Ele fala de visão: ver. crer, perceber. sofrer. Tudo isso está refletido no fragmento deste poema. O pranto de Cristo, o justo que lutou pelos injustos, e a cruz, símbolo da dor, que narcisicamente, Francisco se apropia e a carrega mesmo em silencioso protesto.

Como podemos perceber, Francisco Lobo da Costa, sofreu muito com o preconceito, e mais ainda com as dificuldades de vínculos apropriados que lhe dessem um embasamento. Suas insinuações ferrenhas através de seus artigos, e seu comportamento em desacordo com o exigido da época o deixavam cada vez mais de lado, e à margem desse grupo social. Como todo indivíduo, desenvolveu um sentimento de defesa, capaz de minorar sua dor e o seu desejo de afeto, totalmente frustrado. A dor e o pesar desencadearam nele uma raiva retaliadora. Dessa forma começou a se distanciar, tanto em relação a seus próprios afetos, quanto com relação às outras pessoas.

Em seu poema-desespero ele fala:

Se é triste o fado que o poeta arrasta,

Na luta vasta a se cobrir de pó

Se não tem louros a cobrir-lhe a senda

Funesta, horrenda, de martírio e dó.

Francisco utilizou a literatura como uma forma de resistir à dor, sublimando essa carga de desafeto, e a direcionando para um objetivo socialmente valorizado. Em seu poema fala das forças misteriosas que se supõe dirigirem o destino: os fados que não quiseram dar-lhe a felicidade. Em cada verso sonhou ser um herói. Foi rei, sábio e o mais importante homem sobre a terra. Foi Deus, chorou no calvário e carregou a Cruz de Cristo. Crucificou-se, e ostentou com orgulho a coroa de espinhos sob sua mente romântica e poética.

Apaixonou-se. Teve um grande amor, um sentimento proibido, totalmente impossível pelas distâncias e preconceitos da sociedade da época. Acalentou seu sonho, chorou sozinho, e, sem forças entregou-se ao álcool, como uma forma de superar-se na fantasia do desejo.

Sistemática e inconscientemente se autopuniu. Às vezes a autopunição assume formas não evidentes, quase sutis e impercebíveis. No seu caso, ficou a afirmativa do seu desencanto, e a necessidade que ele tinha de agredir a sociedade com seu próprio corpo, com suas atitudes e com suas palavras. E ao mesmo tempo necessitava se autopunir, flagelar-se, sucumbir para não sentir a culpa de não saber sobrepor-se à dor.

Portanto, a impulsividade e irritação que marcaram o jeito de ser de Lobo da Costa, são características de um "comportamento compensatório". Infelizmente, a maioria das pessoas não possui uma ajuda de terceiros que possam fazê-la perceber que existem outros caminhos, e que optar por uma atitude compensatória adaptativa é uma das soluções para não afogar-se no desencanto de um sonho.

Francisco começou a isolar-se e a envelhecer prematuramente, tal qual seu sonho, escolhendo o único caminho disponível para ele, a mesa de um bar nos bordéis da cidade, rodeado por pessoas que como ele, haviam sido discriminadas. Todos tendo algo em comum: a mesma mágoa, o mesmo estigma, a mesma sina, entregues ao ócio e ao desatino das fantasias desorganizadas.

A história nos revela que o desânimo causado pela frustração do não reconhecimento, e da rejeição de um amor, ou qualquer tipo de retaliação ou preconceito, pode fazer qualquer um desistir não só de lutar para conquistar o que lhe frustrou, como fazê-lo regredir no tempo, numa interdependência silenciosa que não encontra eco, nem espelhamento.

Desta forma, Francisco começou a desistir de tudo, sem perceber que desistia da vida, a cada minuto que transcorria, como expressa em seu poema "Pressentimento":

Falaste em pressentimento,

e bem fatal é o teu!

É um sonho de criança

Que a nuvem cor da esperança

Levanta lá para o céu.

Mas o teu sonho... que sonho

É bem mentido, não é teu

Na primavera dos anos,

Só brotam os desenganos

À sombra do mausoléu.

Este poema parece adivinhar o seu último momento na terra. Quando o leio, fico imaginando aquela noite - 18 de junho de 1888. Uma noite fria em que Francisco se despediu. É como se eu o estivesse vendo: ali, caído, poeticamente envolvido pelo manto da madrugada, entreverado com o roseiral silvestre, que magicamente adornou seu espírito. Ali estava Francisco Lobo da Costa, acariciado pela chuva que inutilmente tentava despertá-lo para que não desistisse da luta. Mas, enfim, o seu pesadelo precisava terminar quando o dia começasse a despertar, para que o mundo inteiro soubesse de seu percurso, para que nós hoje soubéssemos que Francisco encolheu-se perante a vida, para transformar-se em estrela com a sua morte.

(*) Psicóloga. Presidente da Academia Sul-Brasileira de Letras, sediada em Pelotas/RS.

– Do livro O IMORTAL ALÉM DE SI PRÓPRIO. Joaquim Moncks / Marilú Duarte, 2013.