Sistema de linguagem 
 
A religião, cuja etimologia vem do verbo latino religare, é uma forma pela qual o grupo praticante está tentando se comunicar com a divindade de sua eleição. Nesse sentido ele desenvolve uma série de atos litúrgicos, que integra elementos de linguagem auditiva, como as preces, as cantatas, os mantras, as batidas dos tambores e atabaques da religiões africanas, como também elementos de linguagem visual, como os ícones, os ídolos, os estandartes, as vestimentas, adereços e alfaias, bem como a literatura escrita, que é um dos mais poderosos recursos utilizados pelas religiões.
Igualmente desenvolve elementos de linguagem cinestésica, que são, fundamentalmente, a prática litúrgica contida nos rituais, os exemplos demonstrados de fé, a oferta de sacrifícios, o pagamento de promessas, enfim, tudo que se relacione com o envolvimento dos sentidos do praticante na sua relação com a divindade. [1]
Assim, podemos dizer que religião é um sistema de linguagem, e por ser assim, aquele que o utiliza também vê, escuta e sente a divindade de formas diferentes. Isso ocorre porque cada sistema linguístico tem as suas próprias particularidades e seus usuários representam seus conteúdos mentais de acordo com as identidades que desenvolvem em suas histórias de vida.
Embora nas raízes das crenças que informam a religião possa estar, e geralmente estão, os mesmos arquétipos, será a história de vida do grupo praticante da religião que inspirará a linguagem na qual ela será representada. Santos com belas auréolas iluminadas, anjos com fluidas asas, profetas barbudos com semblantes austeros, ou espíritos da floresta, duendes, criaturas híbridas, a meio caminho entre o humano e o animal, ou mesmo forças da natureza em forma de monstros, belas figuras de mulheres, como as fadas, ou feias como as bruxas, serão aliciadas pelos sentidos visuais do praticante para representar a divindade da sua crença.  
Como se vestirá o praticante para invocar a divindade? Usará roupas negras como os maçons, acompanhadas de aparatos, alfaias e instrumentos da profissão de construtor, para honrar aquele a quem eles consideram o Grande Arquiteto do Universo? Ou usarão batinas, estolas, mitras, saltérios, turí-bulos, para auxiliar a visualização do seu contéudo divino, como fazem os ministros do culto católico? Ou então se meterão em peles de animais, pintarão o corpo com muitas e variadas cores, e usarão instrumentos que simbolizam as forças que querem invocar e honrar, como fazem os xamãs das tribos indigenas da África e da América, e os aborígenes da Oceania?
E como ele fará para conversar com a divindade? Elaborará canções, preces, mantras, rezará ladainhas, salmos? Usará chocalhos, sinos, tambores, instrumentos musicais que imitam sons naturais? E como será a liturgia dos sentidos? Oferecerá alimentos à divindade para a delicia do paladar dela? Praticará a liturgia do “passe”, do compartilhamento do ágape, do abraço fraterno, da “corrente da união”, da queima do incenso, para eliciar uma mais ativa participação dos sentidos prioceptivos na execução do culto?
Todas essas práticas litúrgicas e rituais são âncoras que servem para eliciar uma disposição sensitiva que facilita o praticante do culto a se comunicar com o meio divino. Isso explica porque, dentro de uma mesma crença, encontrarmos formas tão diferentes de cultuar a divindade. O cristianismo, por exemplo, é uma crença. O catolicismo, com suas variações romana, grega, ortodoxa etc. é uma religião com suas formas de culto, ou seja, linguagens próprias desenvolvidas conforme as visões que cada grupo têm da divindade. As confissões evangélicas também desenvolveram seus próprios cultos como forma de linguagem. Assim, religião e culto podem ser considerados sinônimos. E ambos podem ser definidos como sendo um sistema de linguagem que a sensiblidade humana desenvolveu para se comunicar com a divindade da sua crença.
 


Uma missa. Foto Edição Ecumênica Enciclopédia Barsa. A missa é um ritual desenvolvido como forma de linguagem destinada a promover a comunicação entre os praticantes da religião e a divindade de sua crença.
                                                                                   

Um xamã paramentado invocando a divindade de sua crença.  Foto: Google


[1] Veja-se, a esse propósito, O Código dos Códigos, excelente trabalho de Northrop Frye, publicado pela Ed. BoiTempo, 1996, onde o autor discorre sobre a linguagem bíblica, mostrando como ela reflete as diversas fases de amadurecimento da consciência humana.
 
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 21/06/2013
Reeditado em 28/06/2013
Código do texto: T4351862
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