O SURREAL DESAFIO

Recebo o texto que surge abaixo, com uma tácita solicitação de leitura da peça literária. Vamos ao estudo:

“SEM TÍTULO

Definir o infinito.

Sol em cascata ilumina lua de ouro e as estrelas desabrocham no jardim.

Flutua, sobre as flores de luz, enxame em zumbido estridente e derrama o mel no dia iniciante.

Cítara gigante, escada para diminutos personagens: anões do arco iris. De corda em corda, em harmonia, cumprem desempenho musical.

Música estranha entorpece o ambiente.

Surge homem transparente, puro cristal, onde em ritmo compassado pulsa o coração. E o sangue multicolorido circula em ânsia orgásmica pra alimentar o arco celeste.

Pés arraigados, corpo disforme, braços suspensos cobertos de musgo -- verde esperança -- de captar luz. Sem rosto. Olhos faróis: intenso brilho compete com o sol.

A máscara do tempo sôfrega desaba.

Contato concreto. Janela aberta. Aragem matinal. Dia.

Marísia.”

– em 30/05/2013, via e-mail.

Confreira Marísia! Agradeço a remessa do texto. Parabéns pela sua confecção. Acho que se tu não desejasses uma análise crítica, não mo remeterias. E, por gostar muito de ti e também por pertencermos ao mesmo colegiado literário, aceito o desafio. Aí vão algumas anotações, pedindo, de pronto, mil escusas pela ousadia. Vamos ao relato. O texto está muito fragmentário, desconjuntado, ainda mais se apresentado com paragrafação, tal como chegara. Não continha unidade de conteúdo desde a sua apresentação formal. Dei-lhe o formato dos textos do português Saramago: sem marginação e sem espaços. O leitor, no caso, faz a sua pontuação ao executar o ato de leitura. A pretensa peça literária (em original) está muito confusa e faltam alguns elementos formais em sua confecção, como se a autora não se apercebesse de que o corte de alguns elementos verbais só se permite se não prejudicar o entendimento do conteúdo. Tal é o caso dos artigos, pronomes pessoais e oblíquos, partículas apassivadoras dos verbos, em sua forma reflexiva. Há, nesta peça, um excessivo uso de vocábulos polissilábicos – são 16 em 11 frases; e trissílabos, que são 31, em 11 frases. Consequentemente, o texto fica arrastado pela montagem de uma “tartaruga gráfica”, perdendo em andamento rítmico e entrando em antagonismo com o seu eventual receptor. Pelo que se pode observar, trata-se de um texto em que predomina a prosa poética, no entanto, esqueceu a autora de observar uma regra básica que vem do exercício do poético: os qualificativos são antepostos aos substantivos, especialmente se traduzidos por trissílabos ou polissilábicos (tingidos de amarelo). Este proceder fixado pelos autores consagrados aumenta a sugestionalidade e melhora o ritmo, na prosa artística e no verso. Atreve-se o analista a dar certa objetividade ao contexto, visando torná-lo palatável e esteticamente interessante, sempre com foco no conteúdo original, algo difícil, visto que o mesmo, em sua classificação finalística pertence ao inconsútil jardim do surrealismo. Por se tratar de texto açambarcado pela prosa poética – como já se disse alhures – a linguagem permanece rasamente codificada, o que autoriza a exclusão do vocábulo final “Dia”, e torna coerente a sua substituição pela linguagem figurada: ... “Matinal aragem” – a brisa da manhã que inaugura o nascimento do dia. Por fim, como a peça passa a ter unidade e representação intelectiva, o analista deduziu do temário, de seu conteúdo, e o intitulou “MATINAL”. Eis o formato-sugestão:

“MATINAL

Marísia de Jesus Vieira

Definir o infinito. O sol em cascata ilumina a lua de ouro e estrelas desabrocham no jardim. Flutua, sob os fachos de luz, um enxame em estridente zumbido e derrama-se o mel no iniciante dia. Cítara gigante, escada para diminutos personagens: anões do arco-íris. De corda em corda, em harmonia, eles cumprem desempenho musical. Estranha música entorpece o ambiente. Surge o homem transparente, puro cristal, em que pulsa o coração em compassado ritmo. E o multicolorido sangue energizado circula em orgásmica ânsia para alimentar o celeste arco. Pés arraigados, corpo disforme, braços suspensos cobertos de musgo verde esperança a captar luz. Sem rosto. Faróis nos olhos: o intenso brilho compete com o sol. A máscara do tempo desaba. Contato concreto. Aberta janela. Matinal aragem.”

– Do livro A FABRICAÇÃO DO REAL, 2013.

http://www.recantodasletras.com.br/ensaios/4340565