HANAH ARENDT e a Banalidade do Mal
Pode-se afirmar que junto com a célebre frase de Sócrates – “só sei que nada sei” – a sentença em epígrafe, formulada pela filósofa Hannah ARENDT, é uma das mais conhecidas no campo da Filosofia.
Quando a Filósofa cunhou essa frase, tinha em mente a lanosa aceitação da crueldade que imperava nos “Campos de Concentração Nazistas” durante a Segunda Guerra Mundial, mas aquela brutalidade avançou para a rotina da Sociedade atual e trouxe a reboque a mesma complacência (covarde, indiferente, natural ou sábia?), tornando a sentença de atualidade perene.
A repetição exaustiva que a Imprensa faz de crimes horrendos, o Hedonismo predominante, a mudança nos papeis familiares e sociais, o esgarçamento dos freios morais e éticos etc. levam ao julgamento resignado de que o Mal, amalgamado com a brutal luta pela sobrevivência, nada tem de escandaloso.
Não é raro, com efeito, encontrar assassinos e outros cruéis facínoras dentre o círculo de pessoas consideradas “normais”, ajustadas ao convívio social, sendo considerados cidadãos “acima de qualquer suspeita”.
Tornou-se quase comum que meliantes sejam considerados e descritos como pessoas “de bem”, “esteios sociais”, ou simplesmente cidadãos que se ocupam apenas de sua vida.
Tornou-se comum conviver com a crueldade e geralmente só nos indignamos e nos rebelamos contra ela quando somos diretamente atingidos pela mesma.
Mas o que leva ao exercício rotineiro da crueldade?
Como é possível compreender que indivíduos aparentemente ordeiros, pacíficos, cordatos, comuns, encontrem prazer ao praticarem o Mal contra outros Seres?
Donde nasce essa monstruosidade que exige dor, humilhação e o sofrimento do Outro para satisfazer tortuosas necessidades?
Por que é necessário saborear o sofrimento, por exemplo, imposto aos animais em Circos, Rodeios, Cavalgadas, Farras do Boi e noutras formas de torturas?
Por que é preciso exercitar a tortura física e emocional, a privação, o assassinato etc. contra outros Seres e contra outros humanos?
A Psicologia é pródiga em oferecer respostas para essa perversão, para essa deformação de caráter.
São explicações que vão do adestramento Cultural e Social a que o indivíduo é submetido, até às patologias psiquiátricas.
Ainda que reconhecesse a validade dessas respostas, ARENDT sentiu a necessidade de buscar na Filosofia os Fundamentos, as Bases desse comportamento.
Por isso decidiu investigar o assunto com mais profundidade e conseguiu produzir uma obra que realmente trouxe novas luzes para esse obscuro desvão da natureza humana.
Ainda que não esgotasse o assunto, iluminou com propriedade os motivos que levam o homem a sentir prazer com o sofrimento alheio, ao contrário dos outros animais que se utilizam da violência apenas para sobreviverem (não se sabe de um leão que antes de matar uma gazela a tenha torturado, por exemplo).
Esclareceu, também, o porquê de apenas os humanos necessitarem extrapolar as suas necessidades básicas e, pior, dar a esse comportamento um verniz de normalidade.
O porquê de camuflarem (algum resquício de decência? Medo da censura social?) o seu sadismo, de modo que as suas atrocidades (ou pelo menos o gosto pelas mesmas) só sejam reveladas em momentos especiais, como aconteceu com o Tribunal de Nuremberg que julgou os Nazistas derrotados.
Aliás, foi justamente nesse cenário que a Filósofa criou grande parte de seu Ideário, cuja atualidade do tema faz com que seja revisitado constantemente.
Johanna ARENDT nasceu em Hanoover, Alemanha. De origem judaica e vivendo sob o iniciante Regime Nazista sentiu a partir de 1933 o laço de a perseguição política apertar e o rol das privações aumentar. E também sentiu as agruras do breve encarceramento que sofreu nesse mesmo ano.
Por isso decidiu emigrar para escapar da perseguição nazista contra vários segmentos, inclusive o de judeus.
Em 1937 o Regime Nazista caçou-lhe a cidadania alemã e ela se tornou apátrida até 1951 quando conseguiu a cidadania estadunidense.
HANNAH trabalhou como Professora Universitária e Jornalista enquanto escrevia e publicava suas importantes obras sobre Filosofia Política, ou “Teoria Política”, como ela preferia dizer.
Nelas, defendia um Pluralismo Político que fosse capaz de gerar a materialização do potencial de Liberdade e de Igualdade entre todas as pessoas.
Sua perspectiva sobre “A inclusão do Outro” adquiriu grande importância nos meios intelectuais; assim como a defesa que fez da “Democracia Direta”, a ser constituída por “Conselhos” que tomariam decisões mais acertadas que aquelas exaradas pela “Democracia Representativa”.
Por essas sólidas argumentações; por suas análises e comentários sobre Sócrates, Platão, Aristóteles, Kant, Heidegger, Montesquieu e Maquiavel; por suas obras sobre a “Filosofia Existencial” e por sua critica ao “Totalitarismo” – “Theorie der totalen Herrschaft”, HANNAH passou a ser tratada como Filósofa, embora rejeitasse o título com veemência.
No campo pessoal, contudo, um fato gerou certas ranhuras na imagem que dela se fazia, pois ao fim da Guerra, ele voltou à Alemanha e se empenhou decididamente na reabilitação do Filósofo Heidegger que caíra no abandono graças ao seu envolvimento com o Regime de Hitler.
Esse empenho lhe custou severas censuras das Entidades Judaicas, que também não lhe perdoavam o romance que manteve com o próprio HEIDEGGER.
Romance, aliás, que foi o mote de seu livro “Lettres et autres Documents”.
Assim, entre aplausos e apupos, HANNAH viveu até 1975, quando faleceu por complicações de saúde e foi sepultada em Nova Iorque, EUA.
O Mal
No inicio da chamada “Filosofia Patrística”, cujo maior expoente foi Santo Agostinho (354–430, Tunísia atual) já se afirmava que o Mal não seria uma força autônoma, que existe por si.
Posteriormente, na Idade Média, Tomás de Aquino (1225–1274, Itália) expôs em sua obra “A questão disputada sobre o Mal” uma teoria análoga a de Agostinho; ou seja: o Mal é a “ausência de algo”, ao invés de ser uma coisa em si mesma.
Na atualidade, em 1971, no EUA, o Cientista Social Philip Zimbardo levou a cabo a célebre “Experiência da Prisão Stanford”, na qual, estudantes comuns e de índoles pacificas e sociáveis foram persuadidos a participar de atos cruéis que normalmente seriam rejeitados pelos mesmos, comprovando que a maldade não é uma característica inata do homem. É mais um comportamento induzido, exceto, é claro, nos casos patológicos.
Ainda em tempos atuais, o Filósofo francês René Girardi (1923) propôs em sua obra “A Violência e o Sagrado”, de 1972, que a brutalidade é produto do “Desejo Ilimitado”.
Desejo, que é sempre despertado pelo “Desejo do Outro”; ou seja, se outrem quer, eu também “devo” querer o mesmo. E o buscarei a qualquer preço. Inclusive com o uso da violência.
Essas quatro importantes opiniões levaram à atual crença quase hegemônica de que, com efeito, o Mal é fruto da ausência de uma sólida base ética pessoal (talvez resultante de uma infância transtornada). Não é uma entidade que existe por si mesma.
E que é esse vácuo que proporciona a oportunidade para que a Maldade seja insuflada em todos quantos padeçam de personalidade tacanha ou carente e limitadas inteligência e/ou cultura.
Limitação que os leva a pensar e a agir com o objetivo principal de serem aceitos por um grupo social, e serem estimados e queridos.
E assim agem e pensam sem atentarem para a violência que cometem contra seus próprios valores e convicções.
Cometem os piores crimes apenas e tão somente para se sentirem “queridos, amados”, ou “obedientes, devotados e profissionais (sic)”.
São esses, pois, os que sentem “a falta de algo” em suas personas, como disse Tomás de Aquino, e buscam completar-se através do aplauso alheio.
Aliás, essa falta de discernimento sobre o Mal que cometem, pôde ser testemunhado pela própria HANNAH, em 1961 durante o julgamento de Adolph Eichmann, que fora um dos organizadores do chamado “Holocausto”, o programa de execução em massa que o “Regime Nazista” deflagrou contra ciganos, homossexuais, negros, judeus e outros segmentos considerados inferiores (sic) da população.
Em sua obra, “Eichmann em Jerusalém”, Hannah descreve a aparente normalidade cotidiana do acusado.
No banco de réus, a figura do Nazista em nada lembrava o estereótipo de “monstro sanguinário” que se poderia imaginar. Ao contrário, ele parecia um cidadão comum, lendo seu jornal em um café qualquer.
Assim, depois de assistir ao julgamento, ARENDT assumiu inteiramente a posição dos Filósofos citados anteriormente, acerca da natureza do Mal; ou seja, ele não é uma força autônoma, tampouco provém do desejo consciente (excluindo-se, claro, os casos de anormalidades psiquiátricas) de se fazer a Maldade aleatoriamente.
Ficou-lhe evidente e indubitável que os motivos pelos quais as pessoas agem de maneira cruel estão intimamente associados às falhas de julgamentos e à falta de esclarecimento.
Indivíduos desprovidos de boa educação e/ou de inteligência sucumbem facilmente à manipulação que qualquer um lhes impuser.
E as Sociedades e os Regimes opressores são pródigos e hábeis nessas manipulações e facilmente criam “Inimigos Externos ou Internos”, “Monstros” e “Culpados por nossas dificuldades”; não lhes sendo difícil assombrar o populacho com esses fantasmas.
O populacho, por sua vez, também não hesita em “responder e se defender” dos tais “inimigos” através da linguagem que lhe é mais afeita: a violência. Não hesita em praticar toda sorte de crueldade contra aqueles a que foram adestrados a odiar.
NOTA do AUTOR – é comum, por exemplo, que no Brasil o termo “Direitos Humanos” seja equiparado à concessão de privilégios aos criminosos. Políticos mal intencionados, Comunicadores de Massa popularescos e outros indivíduos desse naipe não titubeiam em incentivar o povo mais humilde a praticar violências contra marginais. Mesmo que usem de covardes subterfúgios, fica claro em suas mensagens esse incentivo e o indivíduo cooptado por essa falácia não se percebe como “massa de manobra” da Elite, que, assim, desvia as atenções de sua responsabilidade e culpa pelas mazelas sociais. Ao elegerem “o bandido” como bode expiatório para todas as chagas do País, preservam seus privilégios e sinecuras. É claro que a Lei atual é falha e a violência criminosa é seriíssima, mas ao invés de se educar o Povo para votar corretamente e para cobrar de seus Representantes providências efetivas, o que se faz é perpetuar uma situação cujo potencial de gravidade inibe melhores expectativas para a Nação.
A ideia de que o Mal seja banal não lhe diminui o horror. Mas porque intuímos que nós próprios somos capazes de cometer alguma maldade (embora lutemos tenazmente contra essa possibilidade) tendemos a preservar a condição de humano para o Malvado, ao invés de taxá-lo de “monstro estranho”.
Com isso trazemos para perto da nossa rotina normal o Mal executado, tornando-o, por isso, banalizado.
Ainda que o julguemos terrível e execrável, sabemo-lo comum.
A partir dessas conclusões, para ARENDT não nos resta alternativa que não seja a de exercermos uma constante vigilância em relação aos nossos próprios impulsos, erros de julgamentos e preconceitos variados.
E, claro, exercer a mesma vigília em relação à Sociedade e ao Regime evitando por todos os meios possíveis que as trevas do obscurantismo reinem através da sórdida manipulação de pessoas simplórias e, por isso, sujeitas a obedecer sem qualquer questionamento.
Resta-nos, pois, sermos criteriosos tanto no aspecto individual, quanto no coletivo e buscar a eliminação de todos os preconceitos e pré-julgamentos que levem ao exercício da Maldade, como se ela, além de banal, fosse inevitável.