O SAPATINHO DE CRISTAL

Marilú, a psicóloga-ensaísta, intenta em examinar a peça literária abaixo:

“AS TRÊS AMANTES

Necessito fazer uma confidência um pouco caricata. Também tenho uma amante indesejada e importuna que se chama Dona Asminha, cujo concubinato irresistível já dura mais de onze anos. Ela é uma mimosa balzaquiana. Já está perdendo um pouco os traços da juventude, mas é hábil no amar e tem um rosto lindo. Veste-me da cabeça aos pés. Chegou-se a mim como quem vem do nada e não me quer largar. A bem da verdade tenho duas. A outra é a Srta. Diabetes, mais jovem e envolvente. Talentosa nos seus encantos. Uma doçura de mulher. O seu amor é tão profundo que me ocupa o sangue. Ela se contenta em ser a segunda na minha vida. Não escolhi nenhuma das duas. Chegaram e fizeram casa, cama e mesa. Sabem uma da outra e nem dão bola. Nada de ciúmes, nada de altercações. Respeitam-se mutuamente. Mas acho que nem uma nem outra me levará pro túmulo por vias diretas, por excesso de trabalho, engenho e arte. Elas não são violentas, só me apertam o peito e amassam a barriga das pernas. Mesmo sem fazer amor fico com o corpo quente e o ar fica difícil. E o cansaço então... Asminha é pesada e cai sobre mim como uma diaba: no sofá, no banheiro, na cozinha, e por vezes, faz o tradicional trajeto até a cama. Detesta cobertores, mesmo no inverno, só me quer despido. Não há meio termo. Quando muito tolera um lençolzinho. Acho que é a sua possessão que se manifesta. Age como um servidor público. Já adquiriu estabilidade. Há muito não marca ponto. Faz greve por qualquer motivo. Sempre a dizer desaforos, maledicências. E a variação do humor quem atura? Por várias vezes me acorda na madruga. Chego à conclusão de que manda em mim. Agora não há outro jeito, tenho de aguardar a sua aposentadoria... Atualmente, estou em estado de penúria. Com a chegada do inverno as duas teimam de gastar desbragadamente. Não há dinheiro que chegue. Vês no que dá estar disponível para o mundo? Nem rufião de última classe consigo ser. Seria bom explorá-las, entregá-las a terceiros. Talvez se enjoassem de mim e me largassem. Mas nem hipoteticamente aceitam propostas. A minha esperança é a chegada do verão. Elas são recatadas. Mas, por certo irão à praia. Vão circular por aí de vento em popa e nem sempre eu estarei com elas, lépido e faceiro. Fico um pouco constrangido porque imagino que os meus amigos e conhecidos ficarão fazendo fofoca. Olha o descarado! Olha, vê se pode? O coronel sessentão nem esconde que tem duas mulheres! E aquele colega de literatura, maldoso, vai confidenciar ao outro fofoqueiro: o Moncks deve ter lido muito Jorge Amado. Está copiando a Dona Flor e seus dois maridos... E não é que ele tem razão? Nem o Jorge Amado, se estivesse vivo, me aguentaria! Mal sabem eles que a mais antiga é a tal de Literatura. Esta sim é a escondida, a falsa, a fingidora, a outra capetinha da minha vida! Joaquim Moncks.

– Do livro O HÁLITO DAS PALAVRAS, 2012/13.

http://www.recantodasletras.com.br/cronicas/537838”

Amigo Moncks. Como sempre teus textos são surpreendentes e nos levam a uma reflexão interpretativa do cotidiano. Achei fantástico o carinho que tens pela Asminha e pela Diabetes, que convivem harmonicamente entre si e se fundem em um só sentimento de posse e domínio. Nota-se com muita evidência, que dos teus três amores, a Literatura é a mais sensual de todas, exatamente por não se revelar por inteiro, pela magia e mistério que envolve o pensar. Lindo quando escreves: “Vês no que dá estar disponível para o mundo?” Me fez pensar que a vida nos surpreende e ao mesmo tempo nos encanta. Estamos à mercê do casual e do inusitado. Porém acredito que a maior parte desta caminhada já está escrita por nós, pelas escolhas e muitas vezes pelas nossas omissões. Quando somos muito jovens, temos tudo sobrando, mas não sabendo usar nada do que temos, falta-nos tudo! Acreditamos ser donos do mundo, mas inevitavelmente o mundo se adona e se apodera de nós, e tal como a Asminha, nos sufoca e nos assusta, ou como a Diabetes, que nos envolve em sua doçura, mas no final, precisa ser contida. Em verdade o mundo é uma grande floresta, onde os chapeuzinhos vermelhos (os sonhos) perambulam em busca da vovó (a felicidade) e onde os caçadores (a moral) continuam perseguindo os Lobos Maus, (os descaminhos e os labirintos) que se proliferam sem limites. No entanto, sempre haverá a certeza de que em algum lugar um sapo irá virar príncipe e um príncipe poderá virar sapo, pois o sapatinho de cristal só poderá ajustar-se no pé daquele que lhe faz por merecer. Marilú.

– Do livro O IMORTAL ALÉM DE SI PRÓPRIO. Joaquim Moncks / Marilú Duarte, 2013.

http://www.recantodasletras.com.br/ensaios/4318384