A dor dos anos de chumbo.
Este fim de semana eu tive duas experiências de leitura diferentes. Leituras que se faz com o corpo e se sente com a alma. Leituras que nos transbordam para momentos que sequer vivemos e dos quais queremos distância. Assim eu percebi que aquilo que nos afasta nesta história a ser contada neste ensaio é a nossa incapacidade de acompanhar a dor e o medo daqueles dias. Eu não consigo nem imaginar o quão de dor e de desespero ficou estacionada nestes dois momentos. Mas eu quero dividir aqui com vocês as minhas experiências.
Li atentamente As Teses sobre o Conceito de História de Walter Benjamim. Pouco sabia sobre as inspirações deste autor e o que eu sabia remetia apenas a seu incurso religioso pelo misticismo judaico imiscuindo a sua vocação para um marxismo racional e rico. Mas lendo estas Teses e um texto sobre elas pude ver em que contexto foram escritas. Em 1939 o ditador sanguinário Adolf Hitler assinou com, o não menos ditador, Josef Stalin, um acordo. Este acordo indignou o judeu alemão e pensador Benjamin. A sordidez das relações humanas e das relações políticas entre países, teoricamente, não associáveis, fez com que o pensador incorresse na ideia de não mais se permitir a hegemonia da história do vencedor. No ocidente só o vencedor conta a história e os perdedores ou os vencidos não têm direito à voz. Somente precisamos olhar pela exclusão da história do Brasil de qualquer menção às revoltas negras e suas inspiração. O negro perdeu no Brasil. E como perdedor não tinha direito a se colocar na história e o progresso dessa ficção determinava o ostracismo e a submissão às suas fileiras.
Assim, a tese benjaminiana é simples: é preciso ouvir e reproduzir a história, ou as histórias, dos vencidos. O tempo extremamente rarefeito e qualitativo que fez com que as pessoas tivessem experiências derrotistas e de escravização deveria deixar de ser omitido pelos livros de história e pelo ensino no colégio e na universidade. Aí a dor de se ver este relato. Não é simples nem é fácil. Falar do derrotado é remexer naquilo que faz sofrer pessoas e extrair daí o conhecimento de uma época é desmascarar o heroísmo e bom mocismo de toda uma nação ou conjunto de nações. Com a história dos negros vencidos sendo contada, o Brasil passaria a ver as leis abolicionistas como elas realmente são: cemitérios de ideais e de vencidos mortos e esquecidos por tudo e todos. Por um acaso não é assim que se conta a história das coisas? É sim. E partir de outro prisma é sair do lugar comum de se achar fulano bandido e ciclano herói e benfeitor de tantos.
Partindo da lógica benjaminiana, eu posso atingir o outro chifre de minha decepção e mergulho na realidade do vencido: aqueles que sofreram durante o período militar no Brasil. Apesar de se dizer que a ditadura matou pessoas, é de praxe presenciar ponderações que dizem respeito a que "do outro lado também houve repressão e também houve crimes". Este maniqueísmo construído facilita a demonização de tudo e, de certa forma, inocenta tantos desmandos e sofrimentos causados pelo golpe militar. Partindo desta lógica a maior culpa de uma política social é a de desconhecer quem realmente desapareceu e quem realmente morreu por ideias e ideais e que não recebem qualquer tipo de menção histórica. É fácil lembrar de nomes isolados, mas o difícil é não olvidar tantas pessoas que estiveram envolvidas e foram vítimas destes anos de chumbo.
Ao folhear o Dossiê de mortos e desaparecidos políticos a partir de 1964, eu me deparei com um livro que cheira a sangue e a dor. E este livro me trouxe uma pergunta: ninguém ouvirá estes vencidos pelo regime ditatorial? Os relatórios falsificados e o silêncio mortuário dos torturadores reinará absoluto para sempre? Será? Eu me espantei com o tamanho do absurdo dos relatos. Jovens, crianças, pessoas bondosas e engajadas socialmente, todos mortos, detidos, exilados e desaparecidos. As páginas revelam um sem número de dor e de sentimento que me levaram às lágrimas. É impossível não se compadecer e sentir "compaixão" - sofrer junto - daquelas vítimas. A cada página lida e a cada história resumida eu tive certeza da veracidade e da agonia das Teses de Benjamin. Eu simplesmente abandonei a minha visão acadêmica e inculcada de história dos vencedores em prol de uma história drástica e sofrida dos vencidos.
Eu via uma lacuna tão grande entre essas duas formas de se narrar a história - e já comecei a abandonar a história repetida e repercutida e passei a querer ver a história como narrada e narrada sempre de formas diferentes por cada pessoa, tese, livro, corrente de pensamento e assim por diante. Esta lacuna é a mesma que me fez ler a "história dos malditos e dos perdedores" negros que foram espoliados de suas crenças, terras, convicções políticas e assim por diante. Os alemães enganados pela retórica infame de Hitler. Os judeus perseguidos e mortos nos campos de concentração. Enfim, os que eram considerados inimigos da pátria e do povo por defenderem o fim da censura e da tortura no país. Os "guerrilheiros" e "ameaças vivas" do país na verdade fazem parte da mais precisa e vergonhosa inversão históricas. Tornaram-se bandidos e com métodos terroristas simplesmente porque diziam "não" ao sistema do Brasil "Ame-o ou deixe-o". O homem revoltado - assim como o pintou Albert Camus - era o homem açoitado e punido. O homem que resolveu dizer "não" passou a dizer "ai", um "ai" abafado e um "ai" sentido e omitido. Assim o meu sofrimento passou a ter identificação com o sofrimento deles. Passei a indagar: como seria se eu nem pudesse escrever este texto? Como seria se eu não pudesse emitir minha simples opinião?
Confesso que eu fiquei extremamente melindrado. Um verdadeiro paranoico de falta de liberdade. Qualquer defesa desses anos de chumbo soam-me como uma afronta canalha e convite de volta a este ponto. Fico pensando e encarando a minha vida como perigosa a partir do momento que leio e me insiro num pensamento sobre o que era viver aqueles dias. É claro que já conversei com diversas pessoas que foram vítimas de todo o episódio e de toda a realidade daqueles tempos. Minhas conversas foram permeadas por sangue e soluços. Foram partidas pela lembrança que ensopava os olhos. A história doída contada pelo vencido me afastou do sentido único de história. Não. A história é plural. Cada pessoa pode narrá-la de um modo e este modo pode nos levar a lugares e situações que confirmem ou neguem aquilo que pensávamos. A narrativa, como dizia o próprio Benjamin acerca de Marcel Proust e sua "Busca do tempo Perdido", é rememoração, lembrança, novo tear de coisas. A ditadura é-me hedionda. Uma página maiúscula de sofrimento em nosso país. Este livro fez-me pela primeira vez contar para mim mesmo esta história, de posse daquele documento.
Assim eu pude perceber a dor dos anos de chumbo. Tanto os anos de perseguição e de terror de uma guerra mundial quanto os anos rebeldes e de tortura e repressão pelo regime militar de 64 em diante. Foram 20 anos de suprema dor e agonia. Foram 7 anos de guerra massiva e tenebrosa por lá nas terras da perseguição aos judeus. Como fonte de subsídios eu recomendo a mim e a todos os leitores o filme e o livro "O menino do pijama listrado". Trata-se de narrar de forma não tão pesada, porém sem deixar de ser densa, os dias e horrores da guerra e da perseguição nos tempos mórbidos de um tempo, vistos pela ótica ingênua e aguçada de uma criança. Essa visão é contar com a narrativa do vencido. É contar com a condição mais própria de se ver o que houve sem os louros dos vencedores e com as dores e angústias dos vencidos.
Seguindo à risca a máxima de Goya de que não há, numa guerra, vencedores, mas apenas vencidos, por que não contar a história destes? É simples. É algo esquecido e que só a mente aguçada de um pensador pode diagnosticar no caso dos campos de concentração e das sujeiras de uma guerra e prognosticar para os anos plúmbeos do regime militar do Brasil - e de tantos países na América Latina e outros lugares do mundo - em idos do fatídico ano de 1964.
Eu me inspirei, para este ensaio, nas minhas percepções no que concerne a estes dois textos, por uma sensação de que a história de quem vence não é a mesma de quem é vencido. A história de quem é vencido, submetido e pisado é sempre mais rica e mais parecida com o real. Apesar de tantas lágrimas e sofrimento, não ficamos ilesos e imunes a esta forma de história. Estou totalmente convencido de que é a mais rentável para quem não quer ouvir mentiras e despautérios. Seja como for, a leitura dessas duas fontes foi-me penosa e me fez endurecer alguns momentos quanto ao percentual de melhora desta nossa humanidade. Do jeito que distorce e que faz sofrer inúmeras espécies, inclusive a sua própria espécie, a humanidade condena-se a sempre pertencer a esta ideia de mudez e sordidez frente à história. Se nós não precisássemos tanto da história assim como nós a condenamos a ser nossa principal mentira, nós não estaríamos tão reféns de se realmente contar o que houve. Fiquem com esta reflexão e não deixem que os vencedores façam germinar em vossas cabeças o distorcido, o infame e o desleal. Há na história um elemento de dor e de derrota que não pode ser esquecido e que, quando narrado, faz com que a veracidade chegue mais próxima da verdade.
Com a ditadura vista pelos seus sofredores e vítimas e pela ótica de um perseguido frente à podridão da história como algoz, nós encerramos este texto com um lema benjaminiano: Não abandone a história dos derrotados.