Individualismo brasileiro
Embora a construção do individualismo seja considerada condição necessária para o aparecimento da democracia, não é condição suficiente. Em determinadas sociedades como na americana, canadense ou na australiana, o movimento do individualismo aconteceu de forma a possibilitar a crença no contrato social como valor. A noção de que o poder político é consequência e expressão da relação entre indivíduos-cidadãos constitui a base destas sociedades. No caso brasileiro, o modelo de sociedade não se constituiu voltada para representar os interesses coletivos, mas de determinados indivíduos ou famílias. A coisa pública torna-se um negócio privado e não se desenvolve a valorização dos interesses públicos. Logo, os ideais de cidadania ficam atrofiados e surge um modelo de individualismo que percebe o outro como um ser que não merece respeito, a menos que faça parte da família ou da rede de relações pessoais.
Esse modelo de individualismo, embora não seja homogêneo, guardando as devidas particularidades e variações locais, é um traço muito presente em todo o tecido social, sendo, ao mesmo tempo, causa e consequência de uma dinâmica perversa, quando o outro é tratado como se fosse um ser inferior ou um inimigo. Assim, temos um contexto social marcado pela desigualdade extrema, sendo que, poucos gozam de inúmeros privilégios e vantagens e a grande maioria da população sofre com o abandono e a exploração.
No cenário político, essa cultura produziu a desvalorização das questões sociais, gerando um contexto dramático de corrupção e de péssimos serviços públicos. Na esfera privada a lógica não é muito diferente. O imperativo do lucro se sobrepõe qualquer preocupação social, constituído um cenário selvagem de trapaças e de mentiras, que lesam o cidadão gerando além de perdas materiais, muitas perdas humanas. Um exemplo particularmente dramático desta lógica foi incêndio na boate Kiss em Santa Maria/RS, em 2013, que ceivou a vida de 242 jovens, devido negligências com questões básicas de segurança.
No cotidiano das pessoas a dinâmica é a mesma. Uma situação típica, que expressa bem esta forma de pensar, acontece no trânsito de automóveis pelas vias públicas. Da Matta lembra que para o trânsito funcionar bem, assim como qualquer espaço público, precisa existir uma lógica republicana, ou seja, todos devem obedecer igualmente às regras e as Leis existentes. O que no Brasil é infinitamente problemático, posto que, no geral, o cidadão acha que tem o direito de adaptar as regras coletivas aos seus interesses pessoais: o famoso “jeitinho”. Assim, se estou atrasado, acelero; se preciso estacionar e não existem vagas, paro em local proibido; caso o trânsito esteja muito lento, dou uma “roubadinha”, sem maiores preocupações com os danos que essas práticas possam causar no outro.
O motorista tem dificuldade de entender o trânsito como um todo, onde o outro é um parceiro e as partes se beneficiam quando o conjunto funciona bem. Segundo Da Matta, no Brasil é comum o indivíduo se sentir inferiorizado quando é colocado na condição de igual, já que o respeito às Leis é percebido como um constrangimento, que apenas os mais pobres e subalternos precisam se submeter. Isto explicaria o nervosismo e as constantes agressões que acontecem no trânsito, onde frequentemente o sujeito fica impedido de fazer valer a lei da “vantagem”, posto que os outros veículos atrapalham literalmente sua mobilidade. Neste momento acontece uma transformação, quando o outro não pode ser mais ignorado, então é percebido como um inimigo, um intruso, que precisa ser eliminado. Esta percepção aristocrática reedita uma forma de compreender e navegar pelos espaços públicos, contribuindo para nosso trânsito se transformar em um dos mais perigosos do mundo. Consta no Mapa das Violências (2012) que foram mortas 40.989 pessoas no ano de 2010, colocando o Brasil em 6º lugar no ranking internacional.
Na margem oposta da sociedade temos os “outros” os ladrões, assaltantes, homicidas, traficantes, estupradores, que reproduzem, embora de forma mais radical, a mesma lógica dominante nos contextos brasileiros: a negação do outro. A diferença é que esses personagens são criminalizados, perseguidos e frequentemente mortos pela polícia com amplo apoio popular.
No relatório de Philip Alston (2008), sobre execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias no Brasil, figura que os policiais militares no Brasil executam suspeitos sob o argumento de resistência à prisão e, ao registrar essas mortes, a própria polícia deixa de investigá-las. O autor disse ainda que o salário muito baixo pago aos policiais faz com que eles se corrompam e participem até de milícias e grupos de extermínio. Acrescenta ainda que, embora já há algum tempo sejam cometidos entre 45 e 50 mil homicídios todos os anos no Brasil, e esses assassinatos tenham semeado o medo e a insegurança entre a população, pouco é feito na grande maioria dos casos para investigar, julgar e condenar os culpados.
As violências no Brasil, portanto, não devem ser pensadas como mera reação a uma ordem estabelecida ou como “desvio” do sistema, mas como um componente da cultura, amplamente disseminado pelo tecido social. Esta dinâmica se relaciona com múltiplos fatores, mas destaco aqui o nosso modelo de individualismo, que possui como característica central a negação da alteridade, reduzindo o outro à condição de mero objeto a ser manipulado ou destruído.