Cartões – Quem paga pelos serviços que não aparecem na conta?
Depois que passei no concurso do BB adquiri o hábito de as vezes entrar no mercado e comprar algumas besteiras um pouco mais caras e muito mais gostosas, umas guloseimas meio chiques que eu não me permitiria comprar com tanta frequência caso eu usasse dinheiro real. Explico. Vou no mercado portando meu cartão alimentação. Um cartão cujo saldo só pode ser usado mercados. Eis que enfrento a fila do mercado que mais gosto (ele tem uma aparência descuidada, mas tem o que eu quero e – em geral – a um preço razoável), na hora de pagar o cartão não passa. Tento duas vezes alterando a senha e nada! Eis que me lembro. Na última vez em que estive lá a moça do caixa avisou que o mercado iria deixar de aceitar o cartão alimentação do BB. Mas por que?! Perguntei abalado. Tem algo que ver com a troca da administradora dos cartões, respondeu ela vagamente. Fiquei com a pulga atrás da orelha.
Talvez você já tenha parado para pensar a respeito, os cartões prestam vários serviços importantíssimos nas nossas vidas e nem pagamos por muitos deles. Se você, como eu, é bancário e esteve na área negocial sabe que no ano passado a Credicard teve uma das maiores valorizações na bolsa . A gente logo pensa que estes lucros vêm das pessoas que parcelam o pagamento de seus cartões àqueles juros que os jornais da televisão cansaram de mostrar como os mais altos do mundo. Entretanto muitas pessoas usam muito o cartão e não pagam pelos serviços: Um cliente que tem apenas conta poupança tem um cartão para saque e não paga tarifa alguma, um cliente que tem um cartão alimentação não paga tarifa por este uso, um cliente que gasta muito com o cartão de crédito consegue isenção das tarifas. Enfim... Minha intenção não é fazer uma lista exaustiva, é apenas chamar atenção para a existência de inúmeros serviços maravilhosos usados por milhares (quiça milhões) de brasileiros que não pagam por tais serviços. Então ninguém paga? Tendo em vista que as operadoras de cartões são empresas privadas é justo que elas recebam pelo serviço que prestam. A questão aqui não é investigar se elas recebem ou não pelos serviços. Elas recebem. Minha intenção é investigar quem paga por eles.
Meu raciocínio começa com uma pequena digressão que a primeira vista soará estranha, mas no final das contas se revelará bem esclarecedor: Quem paga os impostos? Intuitivamente percebemos que quem paga o imposto é a pessoa sobre quem incide o imposto. Por exemplo, se a Receita Federal me cobrar mil reais de imposto de renda ninguém mais além de mim os pagará. Mas as vezes um imposto incide sobre um produto, não sobre uma pessoa. O IPVA é um imposto que incide sobre veículos. Se eu tiver um carrão quem pagará o IPVA dele sou eu – ou algum amigo que tenha algum dinheiro para me emprestar ; ) E se vendo celulares e existe um imposto sobre ele? Bem, eu – que recolho imposto sobre ele – pagarei. Mas vou te dizer uma coisa, como estou inserido no sistema capitalista tentarei embutir no preço do celular o valor dos impostos (nada pessoal, ok?). Só que você – que não é bobo nem nada – até ia comprar o celular que estou vendendo. Só que pelo preço que eu ofereço você prefere economizar um pouquinho e usar o dinheiro para comprar notbook, ou usar o dinheiro para fazer uma viagem para Miami. Ou usar o dinheiro para comprar o celular em Miami! Enfim, o caso é que você queria comprar o celular que estou vendendo, mas não está disposto a comprar pela soma do preço que eu vendo originalmente mais o valor total dos impostos. Recapitulando, eu somei ao preço que eu vendia o valor dos impostos, só que você e mais alguns não quiseram comprar a este preço... o que faço então? O valor dos impostos continua lá, afinal o imposto é obrigatório, mas eu reduzo um pouco o meu lucro. No fim das contas o preço será maior do que o preço original (sem os impostos), mas será menor do que o preço original mais os impostos. Assim percebemos que mesmo que eu (o vendedor) recolha o imposto na verdade quem paga por ele é um pouco você (o consumidor) por conta do aumento do preço final e um pouco eu (vendedor) por conta da redução do lucro. E quanto cada um paga? Isto depende de alguns fatores. Se você acha muito importante o celular que eu estou vendendo, se ele tem algo único que só o meu celular tem que tem muito valor para você então eu poderei empurrar muito o imposto para você, consumidor. Por exemplo, se o meu celular tem uma maçã mordida desenhada nele você sabe que se tornará irresistível para os homens (algo que você valoriza muito). Neste caso a demanda é inelástica e eu poderei embutir muito do preço no meu produto (o celular com o desenho da maçã mordida). Ok, admito, a maçã mordida já está fora de moda e você não pagará tanto a mais apenas por conta deste desenhozinho (obs1). Mas o que importa para o argumento é ter em mente que o imposto é pago de acordo com a sua demanda, consumidor. Se a sua demanda é intransigente, você quer este produto de qualquer jeito, dizemos que a demanda é inelástica. Se você acha que o produto é substituível, se acha que tem outras coisas boas por aí com as quais você pode torrar seu dinheiro dizemos que a demanda é elástica. Curiosamente a oferta também tem sua elasticidade. Se eu tenho uma fábrica que só pode produzir celular e investi milhões nela não terei muita alternativa além de vendê-los (oferta inelástica), se eu com pequenas alterações em minha fábrica posso produzir outras coisas além de celular (vendendo tablets, por exemplo) digo que minha oferta é elástica. Os impostos têm algumas características: 1. são de pagamento obritórios; 2. são fruto da coerção do Estado 3. têm como finalidade a manutenção do Estado ou de alguma ação por ele orientada. Destas características elencadas acima é a primeira, a obrigatoriedade do pagamento, que traz como consequência o encarecimento do produto final e a redução do lucro do vendedor (obs 2).
Muito bem, agora chega aquela parte da história em que te peço, generosa leitora ou leitor, uma concessão para que o meu raciocínio se desenrole. Pedirei que imagine um mundo hipotético semelhante ao nosso. À uma diferença: Todas as lojas aceitam cartões e todas as pessoas têm cartões! E ninguém, nenhuma pessoa física ou jurídica paga qualquer tarifa (obs3) pelos serviços maravilhosos que as operadoras prestam! Fantástico, não é? Todo mundo desfrutando de dos benefícios incríveis de ter um cartão! E melhor ainda, o benefício é maior ainda pois TODAS as lojas, tando grandes quanto as biroscas aceitam cartões! Se você acha que estou sendo irônico pense em quantas vezes você, leitora ou leitor de classe média alta, usou cartões esta semana. O acesso ao cartão é um grande benefício e me escusarei a entrar em detalhes visto que não é o assunto do texto. E neste mundo só existe um meio de fazer pagamentos, através do cartão. Então o nosso mundo hipotético tem três grandes vantagens: 1 . primeiro todos têm cartão; 2 .segundo todas as lojas aceitam cartão; 3 terceiro ninguém paga tarifas pelos cartões. O nosso mundo tem algo em comum com o mundo real, nele a operadora cobra uma taxa sobre as compras (no nosso mundo hipotético a taxa é cinco por cento). O nosso mundo hipotético só tem uma desvantagem em relação ao mundo real, todas as compras só podem ser feitas através do cartão. Esta desvantagem nem parece tão ruim, aposto que muitas de vocês usam mais o cartão do que dinheiro vivo no dia a dia. Que diferença faz?
Bem... Lembra do caso da taxação do celular? O imposto pode ter o destino mais nobre (financiar escolas) e pode ter o destino mais espúrio (parar nos bolsos de um político corrupto). Independentemente da finalidade ou de qualquer outra característica do imposto ele tem uma característica fundamental ao objeto do texto que vos escrevo: ele é de recolhimento obrigatório. É esta característica que faz com que o preço final do produto seja maior e o lucro do vendedor seja menor. No nosso mundo hipotético a taxação de cinco por cento não é um imposto, visto que a finalidade não se relaciona ao Estado, mas à manutenção da operadora de cartões. Mas, uma vez que – por hipótese – no nosso mundo todas as compras são feitas através do cartão (e pagam a taxa de cinco por cento) os efeitos sobre a oferta e demanda são exatamente os mesmos que a imposição de um imposto. Ok, gente? Então é isto: Todo mundo usar cartão é exatamente como pagar imposto, você não recolha a taxa você a paga do mesmo modo (através do valor embutido no preço final).
Agora imagine um segundo mundo fictício semelhante ao anterior com apenas uma diferença, apenas metade dos consumidores têm cartão. Todo o mais continua igual(isenção de tarifas, taxa de cinco por cento sobre transações e aceitação universal dos cartões)Agora esta metade das pessoas só pode comprar com dinheiro. Neste mundo fictício metade do que é vendido de cada produto é vendido através dos cartões (e paga uma taxa de cinco por cento por isto). Outra metade compra com dinheiro (e não paga a famigerada taxa). Enquanto isto as forças de mercado (da oferta e demanda) continuam agindo. Como o vendedor (que quer auferir o maior lucro) estabelecerá os preços a partir de agora? Ou seja, agora que metade das vendas sofre a taxação de cinco por cento (devido ao uso dos cartões) e metade das vendas não sofre esta taxação. O vendedor alocará os preços como se estivesse sendo tributado em dois e meio por cento (já que para metade dos clientes há uma taxa de cinco por cento, para metade dos clientes não há taxa alguma). Como você pode perceber metade dos consumidores (que não pagam taxa pois não usam cartão) consomem produtos como se ele pagasse 2,5% de taxa. A outra metade dos consumidores paga preço dos produtos como se eles fossem taxados a 2,5%, só que na verdade eles (que usam cartão) são taxados a cinco por cento. A conclusão é que neste mundo hipotético metade das pessoas (que não usam cartão) paga – através dos preços embutidos – por um benefício que apenas os detentores de cartões utilizam. Mas este é um mundo hipotético, no mundo real nunca alguém paga por um serviço que não usa (risos).
Bem, imagine agora um terceiro mundo hipotético exatamente igual ao segundo, com uma diferença, agora os mercados podem escolher se aceitam ou se não aceitam o uso de cartões. Os logistas sabem que metade dos consumidores só compra com cartões, por outro lado não gostam de pagar a tarifa. Naturalmente um logista ou outro deixará de aceitar o cartão – assim ele não terá acesso a metade dos clientes, por outro lado ele conseguirá baixar um pouco os preços dos produtos. Os preços mais baixos atrairão clientes a mais. Para alguns estabelecimentos a margem de lucro é tão alta que a taxa do cartão vale a pena visto a quantidade de clientes que ele possibilita. Percebe o que está acontecendo, leitora ou leitor? Os clientes que não têm cartão acabarão preferindo o mercado mais barato (que não embute a taxa dos cartões nos preços). Deste modo o mercado que aceita cartões terá poucos clientes que pagam em dinheiro (eles preferirão os mercados que não aceitam cartões e que – por isto – são mais baratos). Neste nosso mundo metade dos clientes só paga com cartão, eles não terão alternativa senão usar os mercados que aceitam cartões (e que são mais caros pois pagam as taxas devidas ao uso do cartão. Ou seja, todos as pessoas que usam apenas cartão comprarão nos mercados que aceitam cartão. A maioria dos que não usam cartão comprarão nos mercados que não aceitam cartão. Estes que não aceitam cartão não pagam taxas sobre as vendas e – por isto – são mais baratos. E os que aceitam cartão, em quanto eles elevarão os preços dos produtos? Digamos que eles vendam noventa por cento para quem usa cartão (sobre tais vendas incide taxa de cinco por cento) e dez por cento de suas vendas é para quem não usa cartão (sobre estes dez por cento não incide taxa). Deste modo os mercados vão embutir os preços como se estivessem sendo taxados em 90 por cento da taxa (a taxa por cada transação é 5%). Ou seja, eles elevarão os preços como se estivessem sendo tributados em quatro e meio por cento.
Antes de chegarmos às conclusões e ao mundo real recapitulemos: 1. No nosso primeiro mundo fictício todos (clientes e comércio) usavam cartões e sobre cada venda incidia uma taxa de 5%. Deste modo os mercados elevavam as taxas do mesmo modo que elevariam se fossem tributados pelos governos em cinco por cento; 2. No segundo mundo fictício metade das pessoas usavam cartões e todo o comércio aceitava cartões.Sobre metade das vendas incidia a taxa de 5%, sobre a outra metade das vendas não incidia taxa alguma. De modo que os mercados embutiam os preços como se estivessem sendo tributados em 2,5%; 3. No terceiro mundo fictício metade das vendas é através de cartões, mas os mercados podem optar por usar ou não os cartões. Neste mundo os mercados que optarem por não usar cartões não terão que embutir taxas. Os que aceitarem embutirão as taxas proporcionalmente à porcentagem de vendas através do cartão. Se noventa por cento das vendas for através do cartão eles embutirão nos preços as tarifas como se estivessem sendo tributados em 4,5%. O resumo da ópera é que os mercados sempre vão repassar as taxas cobradas aos preços dos produtos. E as repassarão proporcionalmente ao percentual de vendas em que se usam os cartões.
É muito justo que se cobre pelos serviços. Um cabelereiro me cobra toda vez que corto o cabelo. Peraí, esta comparação não está soando estranha? Quais as diferenças fundamentais entre pagar o serviço do cabeleireiro e pagar o serviço de compra feita através do cartão? A primeira grande diferença é quem paga a conta. No caso do cabeleireiro quem paga a conta sou eu, o cliente que usa o serviço. No caso da compra com cartão a conta é dividida por três: 1. O primeiro a pagar é a loja, ela sabe que está pagando e sabe quanto está pagando, é sobre ela que incide a taxa. O mercado tem na taxa do cartão um custo e ele repassa o custo ao preço final. De modo que o segundo a pagar pelo serviço prestado pelo cartão é 2. o consumidor que usa o serviço de compra, o dono do cartão que o usa na compra. O terceiro a pagar pelo serviço do cartão é 3. o consumidor que compra com dinheiro. Ele não usa o serviço do cartão. Mas ele também compra com o preço em que a tarifa está parcialmente embutida.
A segunda grande diferença é a transparência. No caso do cabeleireiro eu sei quem está pagando (eu que quero ficar bonito) e sei quanto estou pagando (pago o preço que o cabeleireiro cobra). Como sei o que estou pagando e o que estou ganhando com isto posso escolher o serviço que tenha a melhor relação custo/benefício. Posso até cortar num cabeleireiro mais caro se eu achar que terei um resultado melhor. No caso do cartão eu não sei o quanto estou pagando pelo uso do cartão (uma vez que o preço embutido nos produtos varia de acordo com cada mercado e cada produto). Além disso no mesmo mercado eu pagarei o mesmo valor se eu desfrutar do serviço oferecido pela operadora ou se eu não comprar usando o cartão. Ou seja, para o indivíduo dono do cartão é sempre vantagem usar a comodidade do cartão, mas para o público em geral quanto mais se usa cartão mais os produtos ficam caros.
Concluindo: À primeira vista a pessoa que usa o cartão não paga nada. Uma vez que quem recolhe a taxa é o dono do estabelecimento parece que apenas o dono paga. Mas não é bem assim, o comprador divide a conta uma vez que o vendedor embute a taxa no preço final do produto. Eita! Mas se ele embute no preço final quem não tem nada a ver com a história (o comprador que não usa cartão) também paga a conta! Pois é, este é o terceiro a pagar a conta 3. O comprador que não usa o cartão. Gostou? Pois ainda tem muito mais! Lembra do pequeno parágrafo? O que me motivou a escrever este texto ainda é um assunto que nem foi tocado. Mas o texto já ficou maior do que eu esperava – e não quero ser muito cansativo. De modo que em breve escrevo outro texto criando mundo hipotéticos mais e mais próximos ao mundo cotidiano do qual desfrutamos!
Obs 1 – Insinuei que a marca Apple poderia ter tornado o bem inelástico, mas em geral bens de luxo são mais elásticos.
Obs 2 – As comparações que faço são em relação a impostos indiretos.
Obs 3 – A diferença entre uma taxa e uma tarifa é que a tarifa se cobra em um valor fixo (por exemplo, sessenta reais ao ano). Já a taxa se cobra por transação (por exemplo, cinco por cento sobre a compra de um carro).