Órfã de Deus

Os momentos de dor sempre foram também os de maior falta que tive de uma religião, um Deus verdadeiramente sentido e seguido, a quem pudesse recorrer, que me acalentasse o sofrimento e me prometesse justiça e dias melhores.

Fui criada para crer, sobretudo, para crer no Cristianismo. Mas desde criança que ficava inquieta com essa coisa de acreditar sem ver, descobri muito cedo que não existia Papai Noel e Deus também não. Nunca me compadeci do sofrimento de Cristo. Menina, eu dizia: “no lugar Dele, teria negado tudo, me casado e ido criar meus filhos”. Pena sempre tive de Judas, pois, se estava tudo escrito, minha liberdade de criança justa fazia-me concluir que ele tinha sido a grande vítima dessa história. Escolhido para traidor: coitado! O grande traidor da História e rejeitado por todos os pais e mães que nunca batizam seus filhos com este nome: Judas! Um nome que ganhou pela história um ponto de exclamação.

As certezas vazias das religiões não me preenchiam, principalmente, na adolescência, quando me apaixonei por uma linda mulher, ousada, instigante, chamada: Filosofia. Ela tomou o lugar que, por herança, pertencia a Deus. Nessa fase rebelde, passei a achar Cristo um cara bacana, idealista, corajoso, viajado... assim como Gandhi, Buda, Dalai Lama, entre tantos outros líderes religiosos que desconhecia. Maria, para mim, nessa época, era uma das mulheres mais espertas da História, afinal, uma adolescente noiva, grávida de outro homem, naquela época, era imperdoável e, no mínimo, seria morta. “Grávida do Espírito Santo, daria à luz ao filho de Deus”: ideia genial. Maria era sim a grande inventora do Cristianismo. Ela criou Cristo como o filho de Deus e Ele acreditou, e tornou-se o filho do Pai. Aquelas ideias me fascinavam, era como se eu tivesse um segredo histórico guardado comigo. Empolgação de adolescente.

Depois de adulta, senti falta de uma religião, sobretudo, quando a morte bateu à minha porta e levou-me duas pessoas amadas no mesmo inverno. Aí eu precisei tanto de um Deus qualquer que me confortasse, que me dissesse que tudo não acabaria ali, que um dia eu as reencontraria, que elas estavam bem... Mas era só o Silêncio e seu punhal de prata enfiado na minha dor. Ou realmente não existia Deus, ou Ele tinha enchido a paciência com o meu desdém.

Desde então, resolvi não mexer mais com religião e viver sozinha. Recentemente, vivenciei uma experiência que trouxe à tona todos esses conflitos que estavam adormecidos e eu julgava, mortos. Fui ao enterro do filho de uma amiga muito querida. Um jovem de 25 anos, adoeceu, 15 dias na UTI, morreu. Ao chegar ao cemitério, já tão triste pela perda e preocupada com o sofrimento da mãe, amiga, fiquei admirada com o que vi. Aquela mulher que estava diante do caixão do seu único filho, amigo, companheiro, estava com uma serenidade que não vinha de calmantes químicos, mas sim, religiosos. Ela homenageava seu rebento com belas e sábias palavras, confortava algumas pessoas que choravam desesperadamente, sem sentir a metade da dor que ela sentia. Ela tinha certeza de que o seu filho tinha cumprido sua missão na Terra, de que agora, ela–mãe deveria se conformar, pois ele estaria com o grande Pai e ao lado de Maria, sua nova mãe. Ela estava coberta com o manto da fé, do conforto espiritual que eu sempre quis. Talvez seja feio reconhecer isso em público, mas de certo modo, cheguei a invejar minha amiga, desejar ter esse Deus dela pra mim. Ainda bem que essas coisas não se roubam, pois, ficaria muito tentada.

Tive uma vontade louca de fazer uma regressão para descobrir em que árvore, beco, rua, casa, rio, mar, sono, cemitério, hospital, teatro, cinema, motel, escola, encruzilhada, festa – perdi minha fé. Fazer um retrato falado dela e colar pelos postes da cidade. Oferecer recompensa a quem encontrá-la e devolver-me. Investigar se perdi, se fui roubada, ou se nasci com esse defeito.

As lágrimas daquela mãe escorriam pelos meus olhos, eu chorava pela perda daquele jovem cheio de sonhos, pela dor daquela mulher calejada e por reconhecer o túmulo do meu Deus entre aqueles que ali dormiam, eu era órfã de Deus. Talvez eu tenha o matado de fome, sem o alimento da fé.

Nessa introspecção que aumentava minha angústia, fui interrompida pelo toque do meu celular. Era de casa, meus dois filhos ligando para reclamar da saudade que sentiam da mãe. Nesse momento, um véu cobriu meus ombros. Era como se, por misericórdia, algum Deus tivesse dizendo-me que, por maior que tenha sido e seja a minha cegueira, ele nunca desistiu de mim.