Minha Bela Dama e Um Bororo Marginal.
Análise Comparativa Entre o Filme Minha Bela Dama e o Texto Um Bororo Marginal.
Para analisarmos a situação vivenciada por Elisa Doolitle no filme My Fair Lady (Minha Bela Dama),filme americano de 1964 dirigido por George Cukor, e a de Tiago Marques Aipobureu no texto Um Bororo marginal de Florestan Fernandes, devemos antes nos apropriar de dois conceitos : o de diáspora e o de habitus.
Diáspora é a retirada de um individuo do seu âmbito cultural e sua apresentação a outro,é a passagem de uma cultura pra outra. Habitus é um conceito elaborado por Pierre Bourdieu é representa todo o conjunto de manifestações na qual o homem está inserido,e elas são reveladas pelas escolhas,os gestos,o sotaque,o vocabulário, etc. Feito isso podemos tentar traçar um quadro comparativo entre Elisa e Tiago.
É difícil encontrar muitos comparativos entre os dois além da forte situação da diáspora,inclusive seus contextos culturais contribuem para isso,embora por outro lado não exclua a possibilidade.Elisa se encaixa no contexto de uma desigualdade social,no caso de Tiago percebemos uma forte desigualdade étnica.
O contexto social de Elisa é evidenciado principalmente pela questão do idioma,da linguagem,pois a língua inglesa em muitos casos,não só no do filme,pode ser geradora de classes e formadora da idéia de que essas classes são intransponíveis socialmente falando. Elisa fala o inglês da rua e vê na possibilidade de aprender o “inglês da rainha” a sua ascensão social.
Tiago é um índio, e na sua história vemos como a cultura branca se impôs sobre as outras culturas existentes no Brasil. A saída de seu âmbito cultural se deu única e exclusivamente como uma tentativa dos jesuítas em molda-lo como um instrumento de controle cultural,ele deveria ao fim do seu processo civilizatório,retornar a tribo e “civilizar” por assim dizer,seus companheiros.
Depois de iniciados os processos de assimilação de outras culturas, vemos como a questão do habitus é forte nas duas situações. Bourdieu nos diz que é quase impossível introduzir aos indivíduos um novo habitus, e que mesmo que isso venha acontecer, o verdadeiro,o primeiro habitus sempre se revela dentro do individuo.
Podemos ver isso, por exemplo, na cena do hipódromo,onde Elisa já inserida em seu novo contexto cultural,acaba por revelar sua origem no fim da corrida. O mesmo acontece com Tiago quando ele volta pra sua tribo, casa com uma bororo, e tenta readquirir seu habitus indígena.
É importante também observamos como Elisa e Tiago eram vistos pelos seus mestres,pois ambos eram enxergados praticamente como objetos. Ela era parte de uma aposta,ele parte de um plano de catequese. Claro que pra Tiago esse processo foi muito mais doloroso e devastador,pois ao perceberem que o objetivo não estava sendo alcançado,os jesuítas arrancaram,por assim dizer,sua “identidade” branca. No caso de Elisa,ela também é rejeitada pelo professor, mas aqui observamos o que se chama em psicologia de efeito pigmalião onde o individuo desenvolve um relação maior com um objeto criado,estudado ou idealizado,em outras palavras é o criador que se apaixona pela criatura.
Em determinado ponto,Elisa e Tiago concluem sua inclusão em outra cultura sendo logo em seguida excluídos. Tiago perdeu a identidade branca ao retornar com seu habitus anterior, e Elisa não era mais um simples florista, o conhecimento adquiridos por ambos impediam de retornarem totalmente pra sua primeira cultura.
No conceito de Florestan Fernandes eles eram agora marginais:
O marginal é um homem que se situa na divisa de duas raças, na margem de duas culturas, sem pertencer a nenhuma delas. É o “indivíduo que por meio de migração, educação, casamento ou outras influências deixa um grupo social ou cultura, sem realizar um ajustamento satisfatório a outro,encontrando-se à margem de ambos e não estando integrado em nenhum.’
(FERNANDES,1945,P.293)
Então,agora,Elisa era uma dama da alta sociedade por formação,mas não era por sua origem. Rejeitada por seu professor e não mais reconhecida,nem mesmo fisicamente pelas pessoas de sua antiga classe.
Tiago também era branco de formação,índio em sua origem,rejeitado pelos brancos e incapaz de se adaptar a vida do seu povo. Ambos estavam no limiar de duas culturas,dois habitus diferentes,ambos não se reconheciam nem como florista nem como uma dama ou ainda como índio ou como branco.
Com Tiago essa situação de marginalidade assume um caráter maior,pois mesmo ele tentando se integrar a cultura bororo,assimilando valores e habilidades,ele não se torna um bororo,pois sua educação branca o ensinou a negar esses valores, mesmo ele assumindo uma postura publica como bororo,não deixava de se comportar internamente como branco. Ele porém acabou esquecendo alguns valores brancos. Tiago pode ser considerado um caso grave de perda de identidade cultural, os outros brancos o viam como apenas um bororo,já que não apresentou os resultados esperados e os bororo o viam como um índio na pele porém branco na cabeça.
Tiago permaneceu nessa situação,hora integrando-se ao convívio bororo,hora rejeitando-o, e como índio letrado deixou alguns escritos onde percebemos através de citações no texto a sua visão dos atos humanos,ele porém não consegue uma saída integral dos dois grupos e permanece assim.
Elisa, em minha visão acaba se integrando a sua nova condição cultural. O fim do filme é bastante subjetivo e acaba nos permitindo tais conjecturas. A partir do momento em que Elisa procura a mãe do professor Higgins fica claro que ela optou por sua nova condição,isso se evidencia ainda mais quando ela se reconcilia com Higgins. Ela não poderia jamais voltar a ser florista nas ruas.
É claro que temos que levar em consideração o fato que a obra My fair lady é pura ficção e que na ficção sempre há uma pré disposição a finais felizes. O caso de Tiago é real,nele podemos ver a marginalidade cultural e a diáspora de uma forma mais crua,mais incisiva sem as nuances da ficção,nele percebemos que esse processo tente ao fracasso e a um esfacelamento da personalidade da pessoa que sofre esse processo : “É, pois, uma crise psíquica, que ocorre nas esferas da personalidade, na “consciência individual” (FERNANDES,1945,P.293).
No Tiago Marques Aipobureu a marginalidade muito mais destacada interna e individualmente do que em Elisa Doolitle,o que de certa forma confere ao texto um caráter muito mais realista que ao filme. Mas, como já disse temos que levar em conta o contexto em que cada um está inserido e por conseqüência a veracidade das histórias apresentadas. Ambos sofreram o processo de forma diferente e o desfecho das duas histórias,principalmente a de Tiago nos mostra que nenhuma cultura é melhor que outra,ou que nenhum povo deve ser “engolido” por outro,e que não existe superioridade em se tratando de cultura,infelizmente estamos muito longe da percepção apresentada.
REFERÊNCIAS:
TEXTO:
FERNANDES, Florestan; Tiago Marques Aipobureu: Um bororo marginal,1945
Publicado em : Revista do Arquivo Municipal,São Paulo, 1946, vol. CVII
Mudanças sociais no Brasil: aspectos do desenvolvimento da sociedade brasileira; São Paulo,Difusão Européia do Livro,1960,PP. 311-343,Col. Corpo e Alma do Brasil
FILME:
My Fair Lady (Minha Bela Dama),Estados Unidos,1964,Dir. CUKOR,George; Rot. LERNER,Alan Jay baseado na peça de Bernard Shaw; Prod. WARNER,Jack L
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