Da Depressão Egoísta
Gente como eu gasta muitos cartuchos atirando em sombras. Perde-se em lutas para dentro e se esquece de viver para fora. Gente como eu se apega ao sofrimento para se sentir melhor que os outros. Julga ter uma visão privilegiada das coisas, como se por um complexo de Cassandra, em que imagina enxergar a dor pungente de tudo o que vive, e a fatal efemeridade das coisas. Algo acontece por baixo da pele enquanto não espreitamos, e quem tem a ver com essa luta contra nada. Pegamo-nos entristecidos quando em meio a gente sorridente, porque não, não aceitamos a resposta simples das gargalhadas, e também porque sabemos que depois de tanta alegria, é preciso que haja desgraças.
Nossa tristeza não é nobre. Nossa dor não comove. A solidariedade que nos advém é filha única das semelhanças entre nós, os deprimidos. Nosso inconsciente de há muito se tornou a latrina retórica da nossa vontade de ser miserável. O tratamento para uma dor tão finamente inventada só pode ser de uma sofisticação igualmente bem manufaturada, cria dos mais arrematados métodos de análise e terapia. Não por acaso eram os pacientes de Freud filhos de classes abastadas. Então gente como eu paga caro para se entender. E trocamos a conversa entre amigos pelo papo com o especialista. Especialista em ouvir. Ninguém ouve, e o deprimido é um compulsivo por ser ouvido. Se bem que nesse particular somos todos iguais. A morte e o sofrimento sem testemunhas nem chegaram a acontecer.
Uma grande desgraça para o desesperado é ter esperado algo. Quando pouco ou nada se espera, é mais difícil sofrer decepções. Daí a importância de certa dormência da inteligência. Uma pitada de ignorância, para temperar a vida. Quem sabe demais, ou ao menos julga que sabe, sofre e sofre. Gente como eu faz isso. Esperamos tanto que já durante vislumbramos o depois terrível e vamos cavando em antes, que era sempre melhor. Vivemos em sonho, de pescoços retorcidos para o passado, da super-análise de fatos mortos e não esquecidos. Até mesmo as coisas boas pedem algum abandono.
Gente como eu não esquece. E eis aqui um dom realmente letal. Esquecer faz parte de aprender a ser gente. Quem nada esquece, não seleciona memórias e não domina sua rede mnemônica, é refém da atmosfera primordial de suas rememorações, presa do circo de uma tirana, que lança sempre de volta ao caldeirão do pensamento as tralhas apodrecidas de historietas póstumas. Nossa sensibilidade traz para cada impressão do passado uma cicatriz na alma, menos alegre que opressora.
Gente como eu é vitimado pela própria prepotência, pela própria grandeza de julgamento, e acaba esmagado pelo martelo titânico do juiz que traz em si. Termina por não perdoar a ninguém já que começa por não perdoar a si mesmo.
Gente como eu quer é ser amado, total e incondicionalmente. Desabridamente admirado e bajulado feito criança. Gente como eu é criança para sempre. Não saiu do berço, talvez nem do útero, não aceitou o mundo como lhe foi oferecido. Quer um mundo maior, melhor, diferente, mais digno de sua participação no espetáculo. Rejeita a vida que tem como uma criança caprichosa lança ao chão o brinquedo dado com carinho e detestado pela singeleza.
Pessoas como eu padecem não menos de uma profunda e espessa misericórdia. Filha menos da nobreza de espírito que do complexo de superioridade. Essa mistura produz um efeito bizarro: complexo de inferioridade. De tanto imaginar tudo tão pequeno, por analogia, imaginamo-nos imensos, e sentimos pena, a começar de nós mesmos. A impotência advinda daí traz a certeza de nossa diminuta dimensão diante de algo sempre maior. E por não podermos ser maiores, somos minúsculos. Por não poder ter o mundo que queremos, as pessoas que idealizamos e a perfeição que imaginamos, sentimo-nos miseráveis, plenos de auto-misericórdia, pequeninos, perdidos, sós, e não queremos nada desse mundo, nem dessas pessoas.