Deitou-se, acomodou a cabeça, olhou para o teto e buscou por lembranças dos tempos de marista para afastar a inveja que sentia de Morgana pela amiga ter casado, e ela permanecer solteira. Enquanto pensava, ouvia no silêncio de sua imaginação  a voz do quarto animal que  clamava:  ‘Vem Talita!’ E viu surgir o cavalo esverdeado do apocalipse seis sete. Seu cavaleiro tinha  por nome Morte;e a região dos mortos a seguia com outro nome chamado pelos humanos de dengue hemorrágica. Só um mal daquela monta a impediria de ir ao casamento da Morga.  O pai gracejava: “ O mal de Talita é dengue. Está dengosa minha menina. Um dia a ciência vai mudar o nome da dengue para MAL DE TALITA CUMI”. Desta vez não riu. Sentia febre, dores musculares e vontade de ficar deitada...
— Amanhã, você receberá alta, disse o médico.
É pena, pensou ela: “faz dois dias que Morgana se casou! E ela, Talita  curti
a dengue em leito de hospital. Em seguida, fechou as asas como uma gaivota em voo vertical para  erguer-se das águas com um troféu  no bico. Relembrou o sarau no sítio de Alice: o garanhão sacudindo o pescoço, roncando  atrás de uma égua no cio... Leu Iracema e viu Alencar colocá-la nos braços de Martim: “trêmula e palpitante como tímida perdiz...” É hora da estrela. “Por que não disparar o arco de cupido no coração de um náufrago. Soltar um grito de gaivota, e derrubar as muralhas de Jericó?” Tomou os originais do livro e dirigiu-se à casa de Robert.
Logo que sentaram para examinar o material, surgiu o primeiro impasse: Pelo gosto de Talita, declinaria o nome de todos os colegas do Marista, até o gol de Nilmário que deu à sala o título de campeã em 1980, merecia registro. Haveria de conseguir algum papel para muitos colegas, mesmo que fosse uma ponta, uma passagem rápida, como figurantes em telenovelas. Robert examinou os rascunhos, leu alguns títulos e deu seu parecer: “A primeira coisa a ser definida é o público-alvo, depois, constroem-se as cenas, escolhem-se os personagens e traçam-se os perfis. É preciso introduzir cada capítulo, sem contudo, fazer um prefácio dele. Cuidar da arte como se cuida de um filho em tenra idade. Há que se
mesclar técnicas, colocar uma pitada de sal e outra de açúcar, levedar a massa e produzir um alimento de agradável sabor. O escritor deve construir cenas e cenários, de modo a permitir que os leitores entrem no livro.  Personagens precisam sair das páginas como Raquel e Alvarenga, para socorrerem Biba  acidentada na calçada. É a fantasia da realidade denunciando, fazendo o lado social da literatura. As histórias não podem ser estanques:  não se deve esvaziar o tinteiro, para que, com o resto da tinta, o leitor possa pintar novo quadro e recontar a história”.
Talita não gostou da preleção, fez um muxoxo seguido de desânimo. Não era seu feitio descartar uma oportunidade de negócio no primeiro obstáculo. E... mão por baixo, mão por cima, como morcego que lambe a presa antes de sugar-lhe o sangue, apontou, mirou bem e lançou um dardo flamejante:
—Essas coisas que me dizes, ouviste de Adilson, de Massaud Moisés ou do Carrero?  Soube que queimaste pestanas à cata de técnicas para escrever um livro. Dividiste o travesseiro com Clarice Lispector, andaste em longas caminhadas com Machado de Assis e ainda  debruçaste com Gilson Chagas em Música para Pensar. A crítica só  é importante quando se reveste de prévia análise.  Ninguém  consegue criticar uma obra, com isenção de ânimos, se não analisar primeiro os  fenômenos de linguagem e as técnicas utilizadas para construir imagens. Eu te propus um romance escrito a duas mãos... Mas, se queres analisar obras literárias, escreve tu mesmo o teu Ensaio e não conte comigo para isso.
O que Robert queria era excluir episódios e personagens que em nada contrib
uíam para o enredo. E por mais que insistisse deixar fora o gol de Nilmário, Talita distraiu o goleiro adversário para que a bola entrasse livremente.
—Podemos fazer um ensaio e depois transformá-lo em romance, disse ele.
— Vamos transformar os setenta capítulos em vinte e  um ou vinte e dois... Temos  células-dramáticas demais.
— Eu não quis dizer que devêssemos enxugar tanto. O enxugamento muito rigoroso traz o risco de descartar precioso tesouro.
“Transformar em romance...” Talita fez-se desentendida. Sabia muito bem  quando sair do aquário.
No dia seguinte, ela  não compareceu. Robert trabalhou sozinho! Consultou o dicionário de termos literários e procurou na  Internet por  Tipologia dos Personagens. Repetia em voz alta como se quisesse  decorar:
 
A personagem Plana é mais simples... Já a personagem   Redonda é complexa
s. Tem boas e más qualidades. Evolui durante a narrativa...
 
Robert, estudava conceitos e já os tinha praticamente de cor quando lhe bateu uma fome de cachorro sem dono. Seguiu a Mariz e Barros até o supermercado e com seu sotaque meio nordestino, meio carioca e quase mineiro, dirigiu-se a um velho que atendia no balcão de carnes.
—Quero comprar músculo de boi para fazer um cozido de panela. Vocês conhecem aqui esse músculo como paulista ou lagarto?
— Tanto faz!...Paulista e lagarto é a mesma coisa. Tu queres plano ou redondo?
Afastou-se pensativo: “Que sabe um açougueiro sobre perfil dos personagens?
 Numa esquina da Mariz e Barros, bebeu uma pinga 51 e pagou outra para Anacleto que exibia o retrato antigo de um menino.
— Este é meu filho Nilmário quando tinha onze anos. Hoje, ele é  o melhor jogador do rubro-negro.
Bebeu outra cachaça, e pagou mais uma ao outro. Mastigou um chiclete para dissim
ular o bafo da pinga e andou devagar, enquanto questionava se realmente, existiram muitas evas. Talvez sete, do contrário os descendentes da primeira mulher teriam sido resultado de incesto. Talvez um só Adão e muitas evas, pelo menos assim, irmãos se casavam com meio-irmãos, como as raças de  cavalos cruzadas no sítio de Alice. Deixou de lado as raças equinas e examinou etimologicamente o nome Holofernes, tentando formar algum conceito que designasse luz e inferno, claridade e trevas. Então o inferno é aqui e tapou o nariz para não sentir o cheiro da creolina que os cariocas derramam debaixo das marquises para afastar os moradores de rua. Sem pressa, fumou um cigarro. Deu outro a um mendigo e quando chegou a casa, Talita há muito já o esperava.
 — É necessário excluir algumas personagens, e eliminar outras, logo nos capítulos iniciais — disse Robert — e tomou como exemplo o trabalho de uma aranha. A aranha desenvolve uma armadilha para capturar sua presa. Ora, se a presa é grande, maior e mais resistente deverá ser a teia para envolvê-la, do contrário, facilmente escapará. O mesmo o
corre com as palavras de um texto: quanto maior for o rebanho de letras, maior será o trabalho do pastor para conduzi-las ao aprisco. Também com as personagens de um romance a situação é semelhante: se forem em número excessivamente grande, uma ou outra, acaba escapando, desgarrando-se do fio condutor. Não viste o que aconteceu com o amado Jorge? Ele tinha só 19 anos quando, resolveu tocar um rebanho muito grande e acabou perdendo algumas ovelhas no caminho. É preciso juntar as pontas, alinhavar o texto como a costureira faz com o pano, arrematar e aparar arestas.
— Concordo — disse Talita — o narrador  deve ser fiel a quem lhe emprestou a pena para escrever. Eu penso e tu escreves.
Dito isso, abaixou orelha e com todo sacrifício do raciocínio, entregou novos rascun
hos para Robert, submissa, como Helena se entregava a seus maridos. Nada obstante, no canto do olho, escondia uma réstia de autoridade e, ironicamente arrematou: “Se vires algum erro na tradução do latim ou do grego, não te acanhes em consultar São Jerônimo, o dicionário de Renzo, e confessar com Santo Agostinho”.
Talita não hesitou em usar a autoridade quando Valdivino emitiu uma nota fiscal de mercadoria comprada na clandestinidade. Demitiu-o da loja, sem pagar os direitos sobre os beijos atrasados. Faria o mesmo com Robert, se ele balançasse na falsa baiana, durante a travessia de obstáculos.
— Joguei um capítulo na lixeira, disse ela.
— Não deveria — um livro não chega pronto e acabado como o ovo que a galinha s
olta na esteira de produção. Parágrafos e capítulos inteiros costumam vir desordenados;  recebe-se a matéria-prima que vem não sei de onde, mas é preciso por a casa em ordem ou ordem na casa. Seria bom se  pudéssemos escrever tudo sem pontuação e depois disséssemos: “Ordinário, marche” e todos os pontos, vírgulas e interrogações tomassem seus postos. É preciso que depois do lampejo, venhamos  com mãos de aleijadinho e transformemos a pedra sabão em arte e no final, sobra pouco do que se tinha antes.
Apanhou os rascunhos atirados por Talita no lixo e  leu devagar.
— Mimosa! Isto aqui, isto aqui é um capítulo do livro! Por que não  fundi-lo com outros contos e ter,  finalmente, um romance?Sem Mimosa não teríamos Apinajé, e sem Cláudio, não teríamos Campo Grande nem as lembranças que Corina guarda da cidade e das serras. Posso começar um Romance a partir de uma palavra-chave, da letra de uma música, ou de trechos de um poema. Se eu tiver uma fonte, as palavras surgirão borbulhantes, alimentarão as torrentes  de um rio que desaguará  em um  mar de ideias.
— É verdade! O leitor espera, por algo que seja um caldeirão fervente de cenas, cenários e
ação, porque as digressões são cansativas. É certo que muitos leitores reconhecem essa técnica e saltam as páginas que discorrem sobre um regato louro ou uma pedra...
— Nisso tens razão. Leem-se romances por causa dos personagens. O povo quer saber até o que se passa nos bastidores de seus ídolos.
A estas palavras de Robert, Talita ouvia o eco da voz de Umberto refletindo sobre o que pensa uma pedra e se sentiu no dever de explicar a pedra que foi para ela, falar de percalina verde que arrancara da boca do Boitempo e, embora tenha dito que muita coisa de seu livro era de autoria do pai, ela  se esquecera de mencionar o avô. Ora, se Corina vendeu a coleção encadernada em percalina verde sem ler, Chanana  que à época só tinha doze anos também não deve ter lido. E muito menos Dul
cineia que  saiu de Montes Claros, enrolada em cueiros de três  meses. Só havia duas possibilidades:  A primeira é que nada impedia que o avô Cláudio tivesse  lido a coleção e produzido aquela escrita; a segunda e a mais provável é que seu Jeremias tenha estabelecido um diálogo com “Boitempo” para homenagear o poeta mineiro. De qualquer modo, a homenagem parece dirigida não apenas a Drummond, mas se estende a todos os poetas que esperam tanto a ressurreição dos mortos, quanto a consagração da poesia. Ela sabia que o pai participava de antologias e mantinha os livros escondidos em um quarto nos fundos. Sabia também que sua mãe era uma pedra-pomes, um pomo de discórdia saído das lavas de um vulcão em atividade. Pensava  a mãe como uma pedra? Será que as pedras guardam o registro de tudo que aconteceu durante sua vida pétrea? Se uma pedra nunca foi esmagada  e sendo uma pedra dura de roer, por quanto tempo durará a existência de uma pedra? Pode uma dinamite que explode uma pedreira, por fim a vida de uma pedra, ou transformá-la em dezenas e centenas de pedras menores que continuarão individualmente sendo uma pedra? Pode uma bola de fogo destruir uma pedra sem deixar cinzas de pedra? A Terra é uma bola de fogo que precisa de calor para subsistir, e,  em esfriando totalmente, morrerá congelada e não haverá mais vida. Não haverá mais pedra sobre pedra. Então, por que temer o aquecimento global, se o perigo está no resfriamento da Terra?
Parou. Pensou...
Há coisas mais importantes do que refletir sobre uma pedra. Por exemp
lo, o que pensam as pessoas sobre os personagens dos livros que leem?  Uns torcem para que Conhcita morra, outros que ela se case com Leonardo e viva feliz para sempre. Machado sugere que se comesse uma peça pelo fim. Entre logo no ápice, atingindo a culminância nos primeiros momentos. Seria seduzir o leitor, contar tudo no primeiro ato e dali em diante, desfiar os pormenores da trama, até chegar aos fatos que desencadearam o que já fora dito antes.  Talvez por isso, Jeremias ou quem quer que seja que escreveu “Percalina verde-drummond”, reduziu  de 24 para 12 os volumes da coleção em percalina verde, para depois apresentar mais seis volumes e depois mais seis, abrindo a torneira aos poucos e fechando na hora certa para que uma formiga  não seja arrastada pela correnteza.
—Não, não convém retomar os volumes da Biblioteca Verde nem  enrolar demais o leitor— disse Robert — Por que dizer tão pouco com tantas letras, se pode-se dizer muito, com pouca tinta? A linguagem cria seu próprio jeito de adequar-se e, já não se pode mais ser tão prolixo como outrora, mesmo porque, o tempo não para, anda  à velocidade da luz. O leitor n
ão aceita ou não se debruça mais para ler longos textos; prefere os nanocontos. Sejamos, pois, concisos em tudo que dissermos, porque já o somos naquilo que fazemos. Ninguém tem tempo para nada: ninguém para diante de uma formiga que arrasta uma carga sete vezes mais pesada do que ela. Ninguém cuida de um pardal que caiu do ninho antes de estar pronto para voar.
 Robert  sabia que no voo literário, o percurso mais longo é a porta do avião e, antes que a Dama do Metrô reabrisse uma polêmica sobre assunto encerrado e voltasse a afagá-lo com piparotes, bocejou, acomodou-se melhor na cadeira e com as mãos metidas em luvas de seda declarou:
— Evitaremos as garças negras penduradas como morcegos no travessão de Jo
ão Cabral e de outros tantos pensamentos alheios que utilizamos para explicar, para confundir ou ganhar tempo.
Referia-se às aspas, imagem buscada em morcegos grudados nas palavras como brincos em orelha de madama. Ele, Robert, preferia outros recursos, realçar em “itálico”,  ou mencionar o nome do autor de forma indireta, como: “não entrar em guerra nesses matos com Gregório, para citar Gregório de Matos Guerra.Talita não quis polemizar o discurso. Engoliu a seco muitas aspas. Ela sabia que não precisava voltar ao primeiro século antes de Cristo para encontrar Lucrécio ajoelhado aos pés de Mecenas. Encontraria em qualquer esquina um escritor vendendo o cérebro para comprar leite e pão. Pior ainda, muitos pagam pela edição de seus primeiros títulos. Raquel pagou, Queirós também,
e Coralina gastou todos os seus Vinténs de Cobre. Robert não queria pagar para ser lido. Também ela  nada pagaria a ele pela pareceria e revisão dos textos, a não ser que uma editora de renome abraçasse a causa, publicando a obra e lhe recompensasse  em dinheiro os justos e merecidos direitos autorais. Não cobraria nada dele, se resolvesse fazer uma edição independente. Mas não haveria produção independente. Pagar para ser divulgada estava fora de seus propósitos, pelo menos em alguns pontos seus anseios respiravam o mesmo ar que o parceiro. Ela também tinha ojeriza às aspas, verdadeiras caspas poluindo os textos que lia ou escrevia.
Abriu um sorriso sardônico e deu seu grito de gaivota:
—Mãos à obra!

— Amanhã, em minha casa— disse ele.
Dava para perceber que Robert estava cansado e nervoso. Mais nervoso do que cansado de tanto lutar para transformar o negro em branco e a brancura em negrume, retirar muitas as aspas e caspas do livro da vida.