O jogo só termina quando acaba - Meu presente para mim mesmo

Chego aos quarenta e cinco do primeiro tempo. E acho que quero morrer aos noventa. Porque jogo bom e limpo não precisa de acréscimos e muito menos de disputa de pênaltis. Aos quarenta e dois, depois de muito jogo em campos alheios, resolvi voltar a jogar em casa. Minha terra tem gramados onde as aves gorjeiam de um jeito que me tranquilizam. O segundo tempo promete... O jogo está bonito.

Nos minutos iniciais, curioso, cuidei de conhecer o gramado. Aprendi a amar o paraíso verde. Antes de sete minutos eu já tinha certeza que o jogo seria bom. Respeitoso às regras, troquei passes e figurinhas. Esquentando, entrando no ritmo. Atento ao técnico, diligente.

Entre os sete e os vinte e um, aprendi sobre jogadas incríveis e ganhei coragem para tentá-las. Fiz alguns belos gols de bicicleta, metafóricos e de verdade também. Comecei a exercitar visão de jogo. Confesso feliz que abusei de firulas e embaixadinhas. Sempre de forma pensada, proposital. Em nome da beleza sem a qual mesmo vitórias ficam insossas. Agradei muitas torcidas e desagradei outras tantas. Desde sempre sou assim, “inunânime”, “pentapolêmico”, essencialmente “multiessencia”. Esquisita mescla de Romário e Zico, Pelé e Maradona, Dunga e Garrincha. Metamorfoseantemente apaixonado.

Estudei táticas e percebi esquemas. Aprendi sobre minhas preferências; sobre o quanto me engajo em arriscar tabelinhas bonitas, de difícil execução. Com parceiros dedicados e talentosos. Não suporto mediocridade. Nem grosseria. Melhorei a capacidade de distinguir os jogadores maldosos, por natureza ou inabilidade.

Ainda bem, porque nos minutos seguintes comecei a entender o significado de levar bola nas costas e dedo nos olhos. Até os vinte e oito levei muito mais pancadas do que dei. O jogo tinha apertado: correria, confusão, “bola p´ro mato”; e eu, de certa forma, ainda em cadência de amistoso, na ilusão do puro futebol-arte. Treino é treino, jogo é jogo.

Cheguei a fazer inesquecíveis, indispensáveis, previsíveis gols contra... Resiliente, me adaptei ao novo ritmo. Troquei muito de posição, e com isso aprendi novos truques. Para evitar goleada, até de goleiro me vesti. Tirei bolas de cima da linha e me aliviei com as que bateram na trave. O bom boleiro tem que ter sorte.

Sempre tive queda para jogar pela esquerda. Cacoete mesmo... Tanto no ataque, quanto pelo centro. “Visionando”, armando e finalizando. Contudo, aprendi que a direita tem suas vantagens também. Muitas e profundas. Há lances fundamentais que só se consegue na meia direita (sempre evitando a extrema...). O importante é aproveitar, e saber com quem colaborar, em cada espaço, ainda que pequeno. Passei um tempo sem saber como correr menos e fazer a bola correr por mim. Ainda bem que o preparo físico sobrava. “Deixa que eu deixo” não é comigo. Cabeceei algumas cabeças e pisei em alguns pés, sem maldade, por causa disso. Não sei se a interpretação foi essa, mas já não estou nem aí... O jogo segue.

Nunca cavei faltas, nunca simulei pênaltis. Posso ser acusado de fominha por alguns. De “cai-cai”, nunca. Vi pedirem cartões contra mim, até vermelhos. Provavelmente porque realmente comecei a revidar as caneladas mais doídas. Talvez em algumas o objetivo não fosse eu, e sim a bola... Às vezes é difícil distinguir. Na vida não há tira-teima. Não furtei, não matei. A mulher do próximo... Pera aí... Estou misturando as bolas... Voltemos ao futebol.

Não fugi mais de divididas. Aos trinta me deram faixa de capitão do time. Incentivei craques que começavam a mostrar seus talentos. Lá pelos trinta e cinco, eu explicitamente defendia as vantagens de priorizar os belos passes e lançamentos. Falar menos e correr mais. Duro mas na bola. Nem todos jogavam assim. Cheguei emular o Pelé e repetir a cotovelada que ele deu no Dagoberto Fontes. Quem recebeu, mereceu. Tanto que no meu caso, ao contrário de no do Pelé, o juiz não se enganou: viu e fez que não viu. E na jogada seguinte expulsou meu adversário. Porque na vida, ao contrário do esporte bretão, quem é juiz também joga. Que o diga o Lewandovski...

Mas isso é a exceção que justificou a regra deste primeiro tempo. Na maioria das vezes pratiquei o fair play, devolvendo a jogada aos adversários leais quando bolas voltaram a rolar após jogo interrompido. Ainda não xinguei o juiz. Só desprezei alguns bandeirinhas: os que se achavam presidente de federações; ou vice...

Detestei retrancas, mas reflito que devia tê-las usado mais, momentaneamente. Lição para o segundo tempo...

Depois dos quarenta, fiz quatro golaços: Dudu, Lua, me livrei do vício chocólotra e decidi nunca mais ter um carro. Começo o segundo tempo renovado, oxigenado, hidratado, com muito mais tranquilidade e menos necessidade de correr riscos. Conheci novos jogadores e estilos. Estabilizei o meu jeito de jogar. Equilibrei o jogo de cintura. Bem posicionado, jogando mais para o time, conectando, vendo o ponto futuro, aparecendo no espaço vazio. Meio assim... como o Seedorf. Exímio, exato, duro na medida necessária. E jogando na posição certa.

Que venham os “russos” e os “joões”. Ainda quero abrir e me divertir com muitas caixinhas de surpresa. E cuidarei também das de Pandora. Até os noventa (ok... talvez alguns minutinhos de acréscimos não façam mal a ninguém...), “the show must go on”.

Ruís Ferdinando Falsíssimo
Enviado por Ruís Ferdinando Falsíssimo em 27/11/2012
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