O Cavaleiro da Esperança
Foi em 1945. Rafael Corrêa, que era meu chefe na sucursal carioca de O Estado de São Paulo, me perguntou:
- Você quer mesmo encontrar-se com o Prestes?
- Quero, gostaria de conhecê-lo pessoalmente. Afinal, trata-se de um mito, desde menino que ouço falar no “Cavaleiro da Esperança”.
- Vou telefonar para o Trifino (o capitão Trifino Corrêa), que é quem cuida da agenda dele. Mas vou logo avisá-lo de uma coisa.
- O quê?
- Duvido que o Prestes deixe você falar. Agora é assim: só ele fala, o interlocutor, qualquer que seja ele, tem de se limitar a ouvir.
Eu tinha outro motivo para conversar com Luiz Carlos Prestes. Explico. Quando a guerra acabou, em maio de 1945, ainda permaneci algum tempo na Itália. Queria continuar testemunhando o gradativo renascer da liberdade num país que durante mais de trinta anos tinha vivido a sufocante noite do fascismo. Um dos meus prazeres, naqueles dias tão eufóricos do imediato pós-guerra, era ir todo final da tarde para a Piazza del Popolo, em Roma, ouvir os inflamados discursos dos líderes políticos. Alguns deles eram gente nova, a maioria vinda da luta partigiana nos Apeninos e no Norte do país. Outros, como Palmiro Togliatti, o lendário “Camarada Ercole”, que havia vivido na União Soviética o tempo quase todo em que Mussolini imperou no Palazzo Venezia, ou o socialista Giuppe Saragat, já eram famosos e então as duas vozes mais poderosas e mais ouvidas na Itália. Seus discursos atraíam para a piazza verdadeiras multidões, duzentas, trezentas mil pessoas, um oceano fervente de gritos de guerra e de bandeiras.
Os discursos de Togliatti e Saragat me empolgavam, e eu me perguntava: lá no Brasil, em que partido me filiarei, no Comunista ou no socialista? Decidi que logo retornasse iria procurar falar com gente em quem confiava e a quem admirava. Prestes abria a lista, em seguida vinha João Mangabeira, que havia se desligado da União Democrática Nacional e fundara a Esquerda Democrática.
Confesso que eu estava aflito para conhecer de perto a figura lendária de Prestes. Herói e mártir, o acesso à sua pessoa não era fácil, mas privilégio de alguns poucos. Mas Rafael Corrêa de Oliveira afinal me conseguiu a tão esperada entrevista. Disse:
- Já falei como Trifino. Aqui está o telefone dele. O homem vai recebê-lo. Boa sorte.
Guardei para sempre a visão da figura miúda que parecia ainda menor na poltrona. Ali estava Luiz Carlos Prestes; ali estava, bem perto de mim, o Cavaleiro da Esperança. O macerado das faces escovadas, as olheiras profundas e os gestos parcos e sem ênfase talvez ainda fosse marcas que nele haviam deixado os quase dez anos de prisão numa exígua cela da Casa de Detenção do Rio, e da qual havia saído há pouco mais de dois meses, como um dos favorecidos pela Lei da Anistia que Vargas fora obrigado a promulgar.
Sentou-se, mandou que eu me sentasse, perguntou:
- Então o senhor está voltando da Itália? E a FEB, como se comportou lá?
Eu ia responder, mas não tive vez. Numa voz de tom monocórdio, Prestes deu início a um longo monólogo sem pontuação a respeito do que ele indicava como tendo sido os erros e acertos da atuação da Força Expedicionária Brasileira no front italiano, dissertando longamente sobre o que os nossos soldados deveriam e não deveriam ter feito na guerra de 11 meses da qual haviam acabado de participar.
Falava, eu escutava. Vez por outra eu tentava um aparte, mas o monólogo sem pausa não oferecia qualquer brecha. Aliás, não tive que responder a nenhuma pergunta, porque além daquela inicial – “E a FEB, como se comportou lá?” - , ele não me fez mais nenhuma. Parecia que era ele e não eu que estava voltando da guerra. A peroração demorou mais de meia hora e demoraria muito mais, talvez entrasse pela noite, não fora a interrupção de Trifino Corrêa, que entrou inopidamente na sala e disse:
- Prestes, estamos atrasados.
Apertei-lhe a mão e me mandei. A isso se resumiu o meu primeiro, que também seria o último, encontro com o Cavaleiro da Esperança, naquele junho de 1945. Uma semana depois eu entrava para a Esquerda Democrática de João Mangabeira, levado por Hermes Lima e Domingos Velasco.
De volta do frustrante encontro, na sucursal do Estadão, Rafael Corrêa de Oliveira, já rindo, me perguntou:
- Então, conversaram muito?
- Muito, mais de meia hora. Só que eu não disse nada.
Joel Silveira