DEVANEIO DOCENTE
A criança, na idade de aprender o código escrito, precisa de estímulos neuro-sensoriais para desenvolver sua máquina cognitiva. Nessa idade a criança inicia o processo de decodificação de seu mundo. A cada descoberta um pouco do sujeito se individualiza e cresce no mundo. Nessa época, o suporte a criança deve ser imenso, pois, seu ser-sujeito vem ao mundo com o auxílio de seus mestres e colegas de classe.
Aprender a língua formal escrita e falada é um processo artificial no qual a criança é posta pela exigência social. Seu dialeto local não conta no jogo de interesses, pois, ele representa sua condição de excluído. A escrita da criança nessa época deixa muitos traços de seu psiquismo e de sua leitura de mundo. Não são poucas as vezes que encontramos desenhos do papai e da mamãe no caderno de nossos alunos. Isso comprova que o sujeito passa para a folha em branco suas impressões mentais – por isso, o educador deve ter sempre em mente que aprender a ler e escrever para a criança não é apenas uma experiência cognitiva, mas, é também uma experiência psíquica.
Se o processo for mal elaborado e mal desenvolvido, a criança sofrerá danos, tanto no seu sistema cognitivo quanto no seu sistema psíquico. Os novos estímulos que exercem ação sobre o infante visam instrumentalizá-lo para o domínio do código escrito e falado de acordo com as exigências do mercado de trabalho. Sem essas chaves as portas não se abrem para o sujeito, pois, a sujeição do sujeito ao modelo dominador do estado e seu ingresso nele como força de trabalho ocorrem por essa via.
Quem determina o que o sujeito deve aprender; como aprender, e o que aprender é o Estado. O Estado é o modelador e moderador da realidade social. A Educação parte do que o Estado entende por Educação e os caminhos para a Educação são traçados por ele. Assim, se há uma sociedade bárbara no ocidente, o responsável por ela é o Estado que a pariu. O Estado sábio é aquele que entende que é constituído pelo povo e que educar o povo é uma garantia de sua continuidade, então, os modelos devem ser repensados com muito cuidado. O Estado que educa unicamente para reprodução de mão de obra; dos sistemas em ação; dos modelos de homens, e não pensa em educar para a produção e renovação de si mesmo é um Estado vencido pelo tempo, derrotado por sua ganância de estar imóvel, de manter as mesmas regras funestas contra o pobre. Pois, o real é devir e onde o homem estiver a possibilidade de rupturas existirá.
A alfabetização da criança pode desencadear um processo de idiotização do sujeito por condicioná-lo a repetir fragmentos do código sem o estímulo à compreensão critica. Educar a criança com pedaços de palavras e fragmentos voltados para criar uma memória débil sem as relações e inter-relações entre os temas mentais é idiotizá-lo. A escrita que nos propomos a ensinar deve estar embrenhada na realidade sociolinguística do educando. Os processos filogênicos e ontogênicos continuam em ação na fase do aprender a ler. Por isso, o idiotizar o aluno é atrofiar sua máquina cognitiva condicionando-a ao não pensar, a responder comandos linguísticos de forma mecânica, ou a fugir de situações de conflito epistêmico – situações/problema. Isso é o mesmo que lhes apresentar um mundo ordenado, harmônico, categorizado onde todos estão felizes em seus devidos lugares. Esse sujeito, segundo Freire é o sujeito de racionalidade ingênua, ele não conquistou a razão epistêmica.
A Escola é uma instituição que representa os interesses do Estado. Quando a escola recebe um aluno, é o Estado fazendo um discípulo. A escola pública deseja formar proletários que acreditam que o acesso ao emprego lhes está garantido, e que por meio dele mudarão suas vidas. O fiel entenderá que as coisas são assim – que os homens crescem por meio do trabalho. A ideologia do trabalho e a crença nela é uma das mais perversas que o homem já criou. O máximo que o trabalho pode garantir ao trabalhador brasileiro é a xepa de senzala. O trabalho não muda a realidade de ninguém em uma sociedade que o usa para excluir seu irmão. O trabalho representa, de um lado, a reprodução da produção; por outro, a exploração do sujeito pelo outro. O trabalho só faz sentido se ele garantir, pelo menos, o suprimento das cinco necessidades básicas do homem – o que não ocorre em nossa realidade.
O aluno precisa entender que o alfabeto e o léxico de nossa língua se constituem instituições que dominam o social e o real. A existência de um código aponta para a existência de uma estrutura que organiza o social. Essa estrutura é estruturante. As estruturas humanas são plásticas, portanto, a estrutura social e a estrutura linguística possuem plasticidade e se modificam no eixo diacrônico. Assim como as estruturas sociais modificam o sentido do signo as estruturas linguísticas modificam o social. A alfabetização que impõe um léxico sem contextualizá-lo – uma palavra sem história – é uma Educação de poucas oportunidades para o sujeito – posso então dizer: “É exclusão”.
Pensar fora de sua realidade é forçar uma imaginação ‘cover’ do que poderia ser se a criança tivesse na escola mais de seu povo, sua cultura, seus conflitos e amores. A criança, por via do código, entra em contato com um mundo alienígena. Sua imaginação sempre tentará colocá-lo de volta ao seu real. Esse mundo alienígena do real provoca na criança o medo de dizer, de escrever e falar. Sequestrar a criança é o que os educadores fazem, muitas vezes, sem saber. O sequestro ocorre bem cedo, nos primeiros anos de escola. A alfabetização pode ser em muitos casos uma guilhotina cognitiva, um sequestro de sonhos, e fantasias que poderiam contribuir muito com a aprendizagem.
A criança presa às silabações e ao completar restos de palavras ou enunciados cria um ser preguiçoso para pensar. A dificuldade de pensar e o medo de errar são as duas grandes armas do Estado hostil para manter-se na realidade sustentada por ele. Nesse caso, o professor trabalha com comandos e grande parte da tarefa é feita por ele – sobra para o aluno o ato de completar o enunciado do mestre ou palavra proposta na prática docente. Uma resposta ao comando1. A dúvida, essa amiga dos sábios, não se instala naqueles pequenos do sertão.
É duvidando das palavras e conhecendo cada vez mais sobre elas que nos deparamos com mais palavras. Percebemos então, que está na palavra a matriz de toda e qualquer ideologia. No encadeamento dos signos temos as construções mentais – nos relacionamos com o mundo externo e interno. O não ter acesso a essa teia é estar fora do jogo. Não desvelar sua estrutura interna é estar perdido no real e produzindo imagens fantasiosas da realidade. Recentemente, um rapaz foi baleado e depois levado às pressas para Tobias. O hospital não tem condições de tratar esse tipo de ferimento. A criança faleceu uma hora depois ou mais. De Tobias para Lagarto são menos quarenta minutos. A vida poderia ter sido poupada, contudo, um encéfalo adulto não desenvolvido e preparado para raciocínios mais apurados não poderia fazer esse julgamento que custou uma vida – ele, simplesmente repetiu o comportamento padrão, sem pensar, sem criar, sem analisar os fatos. É um cidadão que foi criança, passou pela escola, sofreu a ação pedagógica, contudo, é acéfalo, não deve ter dúvidas para se ocupar: “É para o hospital que todos vão quando se machucam”. Deve ele ter pensado. Deveria ele ter pensado assim: “Aqui tem hospital lavanderia”. A massa humana desfalece diante das mais desumanas expressões de exclusão em nossa sociedade de analfabetos funcionais. De pessoas que decodificam, mas, não interpretam o decodificado. Faltam conexões, falta Educação, cá, no sertão de Campos do Rio Real, em Sergipe del Rei.
REFERÊNCIAS:
FREIRE, Paulo. A Importância do Ato de Ler - em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez.
VYGOTSKY, Lev. A formação Social da Mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984.
Fairclough, Norman. Discurso e mudança social. p.31-59. Editora UnB. Brasília, 2001.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, 17a. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de estado: Nota sobre os aparelhos ideológicos de estado. 3a ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985.