A poesia de Adriano Espínola: espaço do Gozo e da Dor
Por Lucio Valentim
“O prazer de estar na multidão é uma expressão misteriosa do gozo da multiplicação
do número”.
(Baudelaire)
Adriano Espínola é um poeta da geração 60 que em sua “faixa geracional de vigência” produziu os textos que configuram o que aqui denominamos trilogia do desejo : Minha gravata colorida... , Taxi e Metro .
Em sua trajetória, antes de revelar a agonia existencial da urbe cotidiana, ainda nos idos dos 80, o poeta deixaria registrada certa dicção “engajada”, dentro mesmo das perspectivas de combate, afirmativas do componente estético-político de sua geração.
Em Fala Favela ( 1981), a voz poética fala em nome do outro , do homem do campo que migra para a metrópole, impulsionado pelo perverso sonho burguês da ascensão social, mas que não sobrevive, esmagado pelo choque. Ainda que traga resquícios do auto cabralino, bem como de certa tradição modernista, o lastro mais imediato deste texto é a poesia dita revolucionária dos anos 60/70 – que remetem à luta no campo.
É em O lote clandestino (1982) - já na opção pelo quotidiano da cidade, reivindicada explicitamente na epígrafe andradina
com o vário alaúde que construí, me parto por essa selva selvagem da cidade -,
que o componente lírico surpreende o meramente heróico e o poeta parte em busca da substância poética no agora – não mais no futuro.
A cidade é o espaço onde, desde a primeira modernidade, o poeta descobriu o irremediável do mundo; é nela que está o teatro do absurdo, sobre o qual - desde Baudelaire - a modernidade ensaia, representando o nosso tempo. É nela, na cidade, também, que o indivíduo se despersonaliza no contato com o outro. Ao assumir a complexidade efêmera da experiência humana, o Eu lírico percebe-se solitário, sobretudo neste instante histórico em que todas as utopias legitimadoras da subjetividade ensaiam seu fim.
A evolução da lírica moderna não deve desconsiderar a estadia na cidade, porque é nela que o poeta experimenta a consciência dramática do mundo, herói que é - agora - da própria decadência. Foi precisamente, o último poema de O lote clandestino , cujo título completo é Minha gravata colorida, as chapinhas de cerveja, o carnaval na Barão de Sapucaí, etc ... que nos despertara a atenção para a caminhada épica de Adriano Espínola, aprofundada nos livros-poema posteriores: Táxi ( 1986) e Metrô (1993).
Conforme dissemos, ao eleger a cidade o espaço para o gozo e a dor, o poeta retoma a melhor linhagem da poesia modernista que passando por Drummond, Mário de Andrade ou Bandeira, tem no autor de As flores do mal seu paradigma mais longínquo - isto se consideramos tudo que Baudelaire trouxe-nos de prosaico no embate urbano: o humorismo poético-patético do quotidiano, a epicidade lírica e transitória do passante.
Considerando, também, fundamental, a aventura na cidade, o trânsito, o transe , a passagem, o poeta restabelece o ato heróico; porém, não mais o heroísmo da era do fog, do jazz band ou da bomba , mas do chip e do clip . O herói revela-se um ser saturado pelo quotidiano da informação, estupefacto com a hiperbolização do real, esvaziado de qualquer idealismo, senão a aquisição da “consciência histórica”.
Com efeito, é com Minha gravata colorida... que assistimos ao início desta consciência lírica que, por necessidade do grito, narra seu percurso. Narrador, Eu-lírico ou Herói de si mesmo, o poeta encontra-se num tempo plural e mítico, no qual não é mais viável a simples redenção do outro, mas a constatação comum das sucessivas falências advindas do fatum existencial humano:
Solitário aos esbarrões, comovido na multidão, me disperso
além, na contemplação indiferente
Desta cidade que não é minha sendo minha neste instante!
O eu-lírico, assim, dissolve-se no logos , por paradoxal necessidade de tornar menos instável seu ser fragmentado. Com dificuldades de sentir e representar-se num mundo outro, construído e fabricado pela tecnociência, o herói pós-moderno é o eu impessoalizado em busca de sua identificação histórica.
Este poema, precedido pela epígrafe de Torquato Neto ( “um poeta não se faz com versos. É o risco(...) é inventar o perigo”) revela o tom épico da aventura existencial do homem urbano. Viver é um ato heróico, mas de uma heroicidade lírica, expressão da experiencia subjetiva do Eu que vivencia seu caos:
Ó grande marurbano se masturbando
na tarde imensa,
Os edifícios empinados, eretos,
em tesão de cimento e aço,
contra o céu não-mais-azul
de teus olhos!
(...)
Sim, uma cidade é uma cidade é uma
cidade!
Não há nada que se compare a isto
nesse momento
em que a vida se densifica
E explode (...)
Nesta trilogia, é na blague, no cinismo e no humour que o poeta Adriano Espínola resolve o drama da opção por uma poética lírico-discursiva, engajada naquilo que Otávio Paz chamou agoridade , onde a estética é reveladora de uma história plural, de um entre-lugar instável, em que todos os caminhos se bifurcam e desembocam na instabilidade.
Publicado no ano de 1982 — data - início de um longo epílogo do regime de 64 —, o poema soa como a cancão de um exílio poético-existencial e passagem para uma nova consciência histórica. Há, entretanto, certa herança, ainda que diluída no Cinismo, tanto da tradição modernista - conforme dissemos -, bem como da performance histórica recente de sua geração:
Traição tradução
Eu, o real fundador do Cinismo na
poesia brasileira
(e se não for, melhor ainda)
Eu, o incorruptível, o traidor de
todas as causas;
Eu, o sedutor de poetas menores e
abandonados;
Eu, demissionário das convicções
mais elementares,
Não me interesso em saber de vida
(...)
(porque direi que passo fome,
ou que como de marmita -e-colher
numa calçada?
Para que seja, hoje, mais popular
e amanhã mais gloriosa
a minha blague?
Dentro das especificidades da “epopéia lírica”, onde a partir da dimensão espacial da realidade ( as cidades por onde o eu-lírico “viaja”) estrutura-se uma proposição da realidade histórica, os três poemas aludidos operam, pós-modernamente, a transição de uma poética que, ora não mais se enquadrando no componente estético geracional ( vanguardismos, revolucionarismos), ora fingindo negar - através do pastiche - a lírica modernista, configura, na blague poética, sua perplexidade espelhada no outro da cidade. Instante em que o tempo histórico, ao confundir-se com o mítico da experiencia existencial, inicia o percurso agônico da epicidade lírica:
Fora os naturalistas
comedores de batata-com-casca
e besteiras à meia-luz!
Fora os macrobióticos
de olhos deslocados como
uma ameixa velha!
Fora todos os iogues, acrobatas de
si mesmos!
Os membros da sociedade alternativa,
hippies desconsolados!
E os românticos poetas retardados (... )
Que se mandem para o campo,
país dos acomodados e fracassados
! (...)
Ou ide, então, conscientizar os lavra-
dores, só porque o bisavô era latifundiário diário.
e a avó racista
e se sentem culpados
por haverem perdido tudo!
Fora, Fuuu, todas as patrulhas
e todos os pulhas ideológicos!
1. O Desejo Viajante
Éros, invencível eros...
(Sófocles)
A pluridimensionalizacão do que se convencionou chamar progresso , ao contrário da redenção do ser social, atrofiou sua capacidade de reflexão. O próprio progresso material, piece -de-resistence da modernidade, tem-se revelado restrito a poucos privilegiados da espécie. O que se percebe é que nada mais choca; a selvageria da cidade mostra-se eclética e dissensual, uma vez que a cotidianização do que fora antes repulsivo - e do subversivo, por conseqüência - esvaziara, em plena modernidade, seu poder de estupefação.
Nesta realidade, o poeta vislumbra o novo veículo da hegemonia do grande capital em sua fase pós-industrial: a metrópole - e seu passageiro mais ilustre é a própria decadência.
Para não sucumbir na via pública, o Ulisses pós-moderno não disfarça sua neurose. Despersonalizado, percebe que o outro de si mesmo é a cidade, espaço metonímico do Caos enquanto evento de iniciação.
Ao compreender que o desejo apara as arestas da loucura, na multidão de esquizofrênicos urbanos, o ser lírico aproveita para liberar os fluxos energéticos obstruídos pelo capitalismo, transformando-se, assim, na “pura máquina desejante”, da qual falaram, com propriedade, Deleuze e Gatarri. O ritual dionisíaco é, também, uma resposta aos novos rituais que o homem cumpre, quotidianamente, na sociedade da massificação, totalmente impositora de novas identidades:
Confira o lance:
toda sabedoria passa pela carne;
toda Iluminação atravessa os sentidos;
toda visão viaja pelo corpo,
- ponte de sangue sensitivo entre o céu
e a terra,
vertigem da consciência esbarrando nas
paredes das costelas,
pequeno cais nervoso de todas as
sensações
à beira do Nada
)) oceano calado te espreitando,
as amarras do corpo
partindo-se a cada minuto
do porto de si mesmo (( ...
Como o tempo da pós-modernidade é o agora , a narrativa lírica, ao operar neste contexto, fragmenta a ordem temporal do relato, fazendo com que a dimensão unitária seja a do presente da expressão. Não há, portanto, a configuração evolutiva de um percurso. O relato não evolui no tempo, mas no espaço, fundindo experiencia subjetiva e situação de realidade histórica; todas as situações aglomeram-se no espaço, enquanto o tempo permanece estagnado.
O poema Taxi, publicado em 1986, apresenta-nos o mundo dentro da perspectiva épica, através da ação vivencial do Eu que busca sua condição histórica; uma subjetividade rarefeita e refratária que visa não à transcendência da utopia moderna, mas à imanência potencial do corpo num tempo arbitrariamente preso ao presente.
Já no subtítulo ( Poema do amor passageiro) está expressa, ainda uma vez, a compreensão da precariedade do corpo - sobre o qual se faz a poética -, passageiro que é do táxi do Tempo:
(Este táxi,
a rua rolando rente,
os telhados correndo, pensos, de
um lado a outro,
a lata de lixo solitária
as árvores caladas,
rostos e estrelas entrevistas
da janela, teu corpo passageiro,
tudo isso `a tua frente
ou dentro de ti,
que passa ou permanece no teu
olhar-vida,
é o pensamento infinito de Deus,
girando suas formas no espaço,
borbulhando mínimo e visível,
invisível e total,
surgindo e desaparecendo,
transformando-se e ressurgindo
nas neuras insondáveis do
2. Moema Mulher-viagem
Na epopéia pós-moderna, o Eu-lírico assume - dentro do espaço lírico - a experiencia de um eu projetado no mundo, fazendo do artefato a busca de sua identificação no tempo.
Se, conforme observara o professor Anazildo Vasconcelos, a epopéia pós-moderna tem na fragmentação das vanguardas modernas seu elo de expressão formal, aqui se confirma o que já fora dito sobre o tempo da pós-modernidade: a idéia do suplemento , do diálogo permanente com as fontes; a não ruptura, criadora da pluralidade:
Sim, passageiros somos,
turistas do instante.
Make it new, sei (...)
Metrô ( ou viagem até a última estação possível), publicado em 1993, é o veículo da aventura épico-existencial que, ao incorporar recursos expressionais de toda a tradição poética ocidental - dentro das exigências do momento pós-moderno -, reatualiza o make it new. Renovando com a força de Eros invencível o discurso da tradição, o poeta realiza a matéria épica, cuja dimensão mítica é a alucinante expressão da subjetividade no Instante:
Tenho que me picar.
Atravessar a rua Conde de Baependi e a realidade.
Cabeças, troncos e buzinas me
despertando aos esbarrões.
Para que tanta perna, meu Deus,
pergunta meu coração
ao homem sério atrás do bigode
e dos óculos
que nada responde.
Com efeito, é em Metrô, o poema com que encerramos nossa trilogia, que o corpo que viaja busca mais intensamente o prazer no outro de si mesmo: a mulher, assumindo , de vez, no gesto a condição precária da carne. Ao penetrar cada vez mais fundo o corpo do tempo, da mulher (Moema ) e da cidade, o poeta completa a aventura mítica de um eu ávido de presente - porque despertara alucinado para as necessidades orgiásticas da existência:
Orfeu mestiço, vou descendo as
escadarias do céu e do inferno
revivendo tudo que vejo e toco:
a espada de Enéias e a espaço-
nave da manhã
na entrada de teu corpo,
ó cidade,
plataforma das sensações mais
reais,
viajando no ano 2700
até o buraco mais próximo.
A mise-en-scène dos corpos em busca de sensações celebra o ritual do orgasmo, e a exploração da matéria (o corpo) implica a expedição no espaço (a cidade), a resignação com a transitoriedade e a conseqüente negligencia ao Tempo.
Neste contexto, Moema configuraria o arquétipo da mulher passante baudelairiana, incorporada agora ao ato (h)eró(t)ico da viagem. Penetrá-la é bifurcar-se nas cidades de si mesmo, revelando-se fátuo, porém plural:
(...)pelas retas e curvas desta
fala estirada e dupla,
penetrando cada vez mais no teu corpo, ó,
mulher
misteriosa como este Metro que
me inscreve por entre-linhas
que se cruzam paralelas entre
rebites e repentes de sentido
ao lado dessa gente correndo
comigo
))por dentro do túnel
e da memória((
que se estica
veloz repleta de vazios
e visões
nesta viagem a dois cercado de
milhões de eus,
deslizando lá fora aos esbarrões,
encontrando-se e desencontrando-se
sobre as calcadas
por entre vidraças e vitrinas,
- multiplicando-se (...)
3. Conclusão
Destacamos Minha gravata colorida..., Táxi e Metro, de Adriano Espínola, como textos representativos dos sintomas de uma geração que viveu o drama da lírica pós-64 e seus desdobramentos a longo prazo, a saber: a convivência com o estilo “tecnocrático -moderno” do Estado, a repressão, a cassação das vozes, a ridicularização pública, a instalação caótica da “indústria cultural” e do mass media.
Concomitante a isto, a referida trilogia sucede às vozes mais representativas da lírica modernista brasileira, consciente de sua condição poética intermediária num tempo também intermediário e indefinido.
Com estes três poemas, o poeta Espínola permite-se formular, assim, um componente estético-ideológico alternativo àquele postulado na gênese de sua geração para, na carnavalização, assumir o caos da presentidade. E, se concordamos com Bakhtin, para quem o carnaval é “a festa do tempo que tudo destrói e tudo renova”, teremos justificada - na vulnerabilidade espácio-temporal, na festa do corpo multiplicado, no make-it- new e na passagem - a proposta escatológica da poesia nesta Era que anuncia a vigência do “pós-tudo”.
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS