Uma mulher que ama
“(...) muitas doenças que as pessoas têm são poemas presos
pessoas às vezes adoecem de gostar de palavra presa
palavra boa é palavra líquida
escorrendo em estado de lágrima (...)
lágrima é dor derretida
dor endurecida é tumor
lágrima é alegria derretida
alegria endurecida é tumor
lágrima é raiva derretida
raiva endurecida é tumor
lágrima é pessoa derretida
pessoa endurecida é tumor
tempo endurecido é tumor
tempo derretido é poema
palavra suor é melhor do que palavra cravo
que é melhor do que palavra catarro
que é melhor do que palavra bílis
que é melhor do que palavra ferida
que é melhor do que palavra nódulo
que nem chega perto da palavra tumores internos
palavra lágrima é melhor
palavra é melhor
é melhor poema”
(Trechos de “Poema Preso” de Viviane Mosé)
 
     Quando Lúcia Valéria conheceu o poema acima, lembrou-se imediatamente de um dos instrumentos que utiliza em seu cotidiano como educadora popular em saúde e em outros contextos, a Terapia Comunitária. Ao coordenar essas rodas há cinco anos ela, como uma experiência de trabalho junto às equipes de Saúde da Família, percebe que é preciso que se abram espaços externos para que internamente, a partir de um olhar para dentro da sua experiência de vida, cada um “dizer a sua palavra”, como escreveu Paulo Freire.
     Lembra-se do criador da Terapia Comunitária sempre afirma que “cada um é doutor da sua própria experiência”. Na TC, a palavra de cada participante é muito valorizada por todos, pois é ouro generosamente compartilhado. É ouro porque vem de uma fonte única, de um vasto universo particular, - o outro.
     Não precisou ir muito longe para lembrar conceitos já incorporados ao senso comum, que avanços científicos já permitiram comprovar em campos como a psiconeuroimunologia e a somatização. A senso comum corroborando com teorias de somatização, resgata da cultura popular o segunte ditado: “o que guarda azeda e o que azeda estoura e o que estoura fede”.
     Nesses anos nas rodas de TC num complexo de favelas, Lúcia ouviu muitas histórias que a emocionaram, principalmente de mulheres que lhe parecem altamente resilientes. Aliás, a resiliência é um dos conceitos mais interessantes para ajudar a refletir acerca dessas mulheres, e vale para outras frentes de trabalho que atua aonde a noção comum de protagonismo de gênero é ampliada, quando além de sobreviverem com dignidade a despeito de todas as dificuldades, ainda conseguem se tornar fonte de cuidado, amorosidade, dádiva e inspiração para muitos.
Essas mulheres são verdadeiros poemas para os seus rudes ouvidos e, além de contar algo sobre a Terapia Comunitária, Lúcia conta uma dessas.
     A mulher chegou sem querer falar. Mesmo na hora de dizer que não queria falar, chorou. Procurou se sentar na melhor posição possível, numa carteira do tipo universitária que lhe imprensava a barriga. Negra, com uma mini-saia de malha marrom e uma blusa preta de uma malha tão fina que deixava à mostra a sua pele. Chegou junto com outra que também estava ali pela primeira vez. Ambas chegaram com uma hora de atraso, quando as terapeutas, já cansadas de esperar estavam quase indo embora, achando que não iria aparecer ninguém. A outra mulher, magrinha, ouvindo que ela não queria falar, já começou dizendo que a médica tinha lhe indicado para participar do grupo porque achou que ela estava com início de depressão...
Decidiram então encaminhar o trabalho desde o início e fazer rapidamente as etapas que dessem, pois as mulheres estavam esperando atendimento para a coleta de exames, naquela tarde ainda.
     Lucia Valéria proveitou a deixa da reclamação do desconforto da carteira e ficou um tempo contando alguns dos constrangimentos que passou na época da obesidade mórbida, antes da cirurgia que lhe reduziu o estômago e também o viço da vida.
Reclamaram do preconceito das outras mulheres, do tamanho dos móveis, das passagens, dos boxes, das roletas e de outros espaços que desfavorecem os mais cheinhos. Contaram histórias hilárias de obesos que ficaram presos e perceberam como cada pessoa reage de maneira diferente a episódios como esses, mas que que conseguir rir, sempre ajuda... A mulheres acabaram rindo. Ela por alguns minutos esqueceu que estava chorando e as terapeutas iniciaram as etapas formais do trabalho.
     Esse foi o primeiro “quebra-gelo” da tarde. Comemoram datas festivas como um evento que a organizou e foi bem sucedido e o aniversário dela que foi no mesmo dia do evento mencionado. Lúcia propôs um “parabéns” estalando dedos, uma ficou decepcionada e reclamou, por isso depois cantaram o tradicional “parabéns prá você”, e ela sorriu de novo.
     Brincaram de repetir gestos umas das outras com os olhos fechados e a terapeuta elogiou o fato de terem acertado os gestos proposto. Bateram palmas para elas e sentaram. A terapeuta perguntou se alguém queria falar do que estava lhe incomodando, gerando sofrimento e novamente ela começou a chorar dizendo que não conseguia falar do assunto, mesmo tendo se passado dois anos da “perca” que sofreu.
     Imediatamente Lúcia se virou para a magrinha e pediu para ela começar a falar. Ela apenas disse que se preocupava com o filho de 16 anos que não gostava de estudar. Apesar de favelado, não gostava de ficar na rua, mas passava todo o seu tempo livre assistindo televisão. Como ela pareceu muito tímida e intimidada pela novidade da situação, Lúcia foi fazendo perguntas para ela sobre a situação atual do filho na escola, a história dele com os estudos, sua relação com a família e coisas assim. Ela foi respondendo a tudo o que perguntava. Florentina, a co-terapeuta se animou e perguntou também sobre a relação do menino com os estudos.
     Mais um tempinho se passou no qual ela pareceu se esquecer da sua dor, mas não quis perguntar nada para a outra. Lúcia lançou uma pergunta então: “quem já ficou preocupada com o futuro de alguém e o que fez para lidar com isso?”
     Uma profissional de saúde falou da sua preocupação atual com o filho de 17 anos que não gosta do que estuda e ela como mãe tem medo de perguntar para o filho se ele quer trocar de curso e ele se sentir autorizado e ficar trocando, até desistir e não se formar em nada, pois conhece casos de filhos de amigas que largaram os estudos sem terminar o terceiro grau.
     Quase sem perceber ela começou a contar que trabalhava na associação de moradores da favela aonde mora e numa tarde chegou um senhor pedindo para ela dar uma olhadinha em três crianças, pois ele ia até São Paulo, tentar achar a mãe delas. Ela disse imediatamente, dar uma olhadinha dessas crianças no barraco, não. Eu vou levar essas crianças para a minha casa. E assim o fez.
     Nunca tinha visto aquele homem na vida. Conhecia essas crianças de vista e sempre que as via pensava no quanto elas pareciam jogadas. O homem antes de partir explicou que era caminhoneiro e tinha se apaixonado por uma garota de programa e a tinha levado para casa. Com ela teve um filho. Logo que a criança nasceu a mulher foi embora para a Bahia. Ele achou a mulher e foi viver com ela lá e tiveram uma filha. Novamente a mulher foi embora com as crianças, dessa vez para São Paulo. Lá foi o homem atrás da mulher e dos filhos e voltou a viver com ela, agora em São Paulo. Em São Paulo tiveram outra filha. Depois de um tempo vieram para o Rio. Quando as crianças tinham 10, 9 e 8 anos, a mulher foi embora e deixou-o com os três. Depois de perceber que essa mulher não ia voltar e que não dava conta de criar os três sozinhos, esse homem tomou a decisão de deixar as crianças com ela, que não sabe porque foi escolhida, já que tinha um filho adolescente na época e o trabalho na associação de moradores era praticamente voluntário.
     Essa mulher percebeu que o homem não iria voltar e que não conseguia alimentar todo mundo com o trabalho na associação de moradores. Montou então uma pensão na favela. Os que estudavam de manhã, ajudavam de tarde e os que estudavam de tarde trabalhavam na pensão de manhã. Na sua fala, pareceu ter ficado satisfeita com as condições que o fornecimento de comida proporcionou para que pudesse criar essas duas crianças.
     Lúcia não me conteve e perguntou sobre a motivação dela de ter ficado com as crianças, pois todo mundo lhe dizia na época para entregar essas crianças para o juizado, pois ela não tinha nada com isso.
     “A gente que foi criada na casa dos outros, sem pai, sem mãe, tem amor muito grande por quem também não tem. Eles não tinham mais ninguém, só a mim... ”.
     Um dia, percebeu um homem rondando uma das meninas, que já estava com 11 anos “com os peitinhos despontando”. Procurou ficar perto e ouviu esse cara conversar com o outro “essa já tá boa prá traçar”. Na mesma hora decidiu tirar a menina da favela, pois sabia que não tinha muito tempo antes do sujeito partir para cima dela. E nesses lugares, “o que pode uma mulher sozinha contra eles?”. “Fui estuprada aos 11 anos, sem ter ninguém por mim, por isso sei o quanto é ruim”.
     Arranjou o contato de uma conhecida do pai da menina que aceitou ficar com ela. Hoje orgulha-se dessa menina ter 17 anos, estar estudando e ainda “ser virgem”! Ficou então com uma menina e os dois meninos. Para efeito da pergunta que Lúcia tinha feito, achou que a resposta pararia por aí, mas ela prosseguiu contando que há dois anos o seu filho foi assassinado. Aí começou outro relato...
     Respondeu de outra forma o que Lúcia tinha perguntado. Contou que além de ter o seu filho assassinado (não contou detalhes, o que é muito comum, quando uma mulher fala pela primeira vez sobre assassinatos ocorridos no interior de favelas, para pessoas desconhecidas), sofreu ameaças de pessoas que telefonavam dizendo que iam assassinar todo o resto da família. “Eu não pensei só em mim, mas em quem eu tinha por trás, meu neto pequeno e a mãe dele. Agüentei tudo calada. Não podia falar prá ninguém. Tive cara a cara com o assassino do meu filho várias vezes e não pude falar nada. Procuro não ter ódio, mas estou triste, magoada”.
     “E o que é pior, perdi o outro atropelado um mês depois. Ele trabalhava no Prezunic e morreu atropelado por um ônibus que passou por cima dele no aterro do Flamengo. Quando me chamaram no IML, eu reconheci que era ele por causa do uniforme que eu cuidava. Tinha resto da calça e da camisa do Prezunic...”
     “Morreram os dois em menos de um mês.”
     Hoje mora com o neto de 8 anos, a nora “que é um amor de criatura, tem boca mais não fala, é muito educada. A mulher argumenta: -“você é nova, tem 27 anos e precisa arranjar alguém”, mas ela não sai de casa, não tem olhos para ninguém. Sempre me fala ‘não rolou nenhuma química’. Eu digo para ela ‘parte prá outra, meu filho morreu, não volta mais’, mas ela por enquanto, nada.”
     Fala com carinho da outra menina “que se perdeu só com 16 anos”, vive com o rapaz e tem um filhinho de 6 anos. Lúcia erguntou: “onde eles moram, na sua casa?” Ela disse: “claro, comigo, todo mundo mora comigo”. Falou também muito bem da filha de criação e afirmou várias vezes: “não julgo ninguém, ninguém tem o direito de julgar ninguém”.
     A essa altura Lúcia mal respirava. Olhava para o lado e via Florentina lívida. Às vezes chorava um pouquinho, mas tentava se controlar. A magrinha que tinha colocado o seu problema, cada vez mais se encolhia na carteira, e de pequena, parecia-me menor ainda, diante da grandeza da outra mulher.
     Uma negra gorda, com as sombrancelhas feitas, olhos delineados com lápis preto e um batom marrom, que por vezes brilhava quando sorria. O cabelo estava alisado, demonstrando um tipo de cuidado muito comum hoje em dia. Associa-se freqüentemente autocuidado feminino com alisamento do cabelo e tentativa de adequação aos padrões da moda, o que gera entre as mulheres das classes populares um processo de ressignificação dos padrões vigentes, que as identifica, as marca como espécies de caricaturas das mulheres de outras classes.
     Um exemplo disso era aquela mulher com roupas de malha tão justas que ficaram transparentes. Por outro lado, a aparência que demonstrava tempo gasto com a própria produção, reforçava para Lúcia a sua força.
     Perplexa e tentando continuar o trabalho Lúcia iniciou uma síntese das “estratégias” compartilhadas pelas mulheres na tentativa de lidarem com suas preocupações com o futuro de outras pessoas.
     Lúcia antes de terminar sua síntese que versava sobre a capacidade dela de lidar com suas preocupações com o futuro das pessoas, estando junto com elas, até o último momento, quando elas definitivamente não têm mais futuro, foi interrompida pela mulher que falou aí do momento em que ia chegando em casa e viu a polícia maltratando o seu filho de criação e foi interpelar o policial. O policial lhe perguntou o que ela tinha com o rapaz, se era mãe ou parente dele. Ela explicou que “metade-metade”, se considerava, mas não era, e que ele não tinha mais ninguém a não ser ela. O policial lhe perguntou: “por acaso a senhora sabe que esse menino fuma maconha?”. “Eu arregalei os olhos e perguntei a ele: ‘você fuma maconha?’ e ele balançou a cabeça e respondeu que sim. Eu disse: sujeito homem, pelo menos falou a verdade quando eu perguntei. Conversei muito com aqueles policiais. Implorei para eles deixarem o menino em casa que eu me responsabilizava por ele. Eles deixaram, mas não esqueceram. Não adiantou muito, porque na semana seguinte eles voltaram e levaram o menino quando eu não estava.      
     Levaram ele para a 21ª e de lá ele foi para o Padre Severino e eu atrás. Não me conformava com aquilo e consegui falar com a assistente social. Contei toda a minha história e acho que aquela mulher ficou é com pena de mim. Acho que ela se comoveu e acreditou que eu ia cuidar bem dele em casa. Ele foi solto e graças a Deus ele nunca mais fez nada de errado. Começou a trabalhar e estudar até morrer.”
     Lúcia continuou tentando fazer a tal “síntese de estratégias” com o intuito de caminhar para o fim do trabalho. Lembrou das estratégias da co-terapeuta e disse que a dela parecia ser ficar do lado da pessoa, cuidar até o fim, oferecer sua amizade, seu amor “incondicional”, com toda a sua força.
     Lúcia travou aí e decidiu perguntar: “desculpe, mas eu queria lhe perguntar antes de fechar: de onde vem essa força toda?”.
     Ela sorriu e respondeu: “de mim mesma e de Deus. Eu acredito que Deus seja bom e esteja em todas essas situações junto com a gente. Não acredito que o mal venha de Deus, mas ele nos ajuda a vencer. Procuro sempre estar com Deus, conversar com ele e sei que ele fala comigo. A justiça vem de Deus, eu acredito nisso. O mal vem da gente e ele fará justiça no tempo certo, que a gente não sabe qual é.”
     Lúcia pediu que todas se levantassem, se abraçassem lateralmente e balançassem o corpo suavemente. Fez sua tradicional pergunta de encerramento: o que cada uma está levando desse trabalho de hoje?
     Lúcia não lembrava do cada uma disse direito e apenas conseguiu repetir que levava o carinho de mãe de todas elas, que também tem mãe que abandona, mas por outro lado, tem aquela que não é mãe, mas que se faz mãe por puro amor. Mãe de quem não conhecia, nos bons e nos maus momentos, na alegria e na dor.
     Ela por sua vez, virou-se para Florentina, a co-terapeuta e aconselhou: “se eu fosse você eu como mãe perguntaria ao filho se ele está infeliz e que trocar de curso. Vai com o seu coração, confia no seu coração que eu tenho certeza que vai dar certo e ele vai encontrar um rumo. Escuta o que eu estou falando”. Nesse momento a fisionomia dela se modificou, o tom de voz ficou mais grave (manifestação recorrente no meio pentecostal). Florentina começou a chorar e se lançou nos braços dela, no que foi imediatamente acolhida. Lúcia brincou: “ih, presta atenção, porque isso mais parece uma profecia”. Ela ainda abraçando a outra, de olhos fechados assentiu com a cabeça e sorriu.
     Todas se abraçaram e Lúcia percebeu que elas tinham gostado e inclusive deram a entender que voltariam na semana seguinte. Florentina perguntou se Lúcia Valéria queria avaliar o trabalho naquele momento, que achou melhor fazer logo. Florentina falou sobre a sua reação, pois nunca tinha conhecido ninguém assim tão solidário...
     Lúcia olhou para aquela mulher, funcionária da saúde pública há quase trinta anos, de classe média e teve o prazer de lhe dizer que ao trabalhar com essa gente ela veria muita gente solidária, tanto que se surpreenderia, pois esse era o seu primeiro dia numa roda de Terapia Comunitária. Ela concordou e recebeu os parabéns pelo “batismo de sangue”.
     Uma vez, numa oficina de diálogo inter-religioso num dos primeiros fóruns sociais mundiais, Lúcia ouviu de um participante sobre Jesus: “o Amor de Deus nos constrange” e eu parafraseando-o afirmou: “o amor dessa mulher me constrange”.
     Lúcia internamente se sentai grata por mais esse constrangimento, pois se deparar com essa mulher naquela tarde em que estava desanimada, amargurada, se sentindo injustiçada e penalizada.
     Foi como se um bálsamo tivesse sido derramado sobre suas novas feridas e se convenceu de que, se ela tinha seguido em frente, apesar de tudo, não tinha o direito de ficar sofrendo tanto pelo que, perto dela, parecia uma besteirinha... Lúcia saiu dali muito constrangida, mas feliz pela oportunidade desse constrangimento.