Nascimento da literatura (brasileira) de cordel: uma (re)escritura da história literária

4.1 Nascimento da literatura (brasileira) de cordel: uma (re)escritura da história literária

(Esse ensaio foi retirado de meu livro "Literatura de cordel: uma questão da historiografia literária brasileira" que pode ser adquirido no site http://www.clubedeautores.com.br/book/126464--Literatura_de_cordel_uma_questao_da_historiografia_literaria_brasileira)

No primeiro capítulo deste livro, abordamos sistematicamente as concepções de três dos historiadores da literatura brasileira acerca do nascimento ou formação de uma literatura fundamentalmente nacional. Para os autores abordados , esta surgiu entre os séculos XVIII e XIX, embora os estudiosos não tenham chegado a um ponto comum acerca deste aspecto . De qualquer forma, foi na passagem do Arcadismo para o Romantismo que os escritores começaram a almejar certa independência literária entre Brasil e Portugal. Isso impulsionado, mais profundamente, com a independência política em 1822.

O Arcadismo foi uma arte revolucionária do ponto de vista ideológico. Essa característica foi tão forte que acabou “promovendo” a Revolução Francesa e impulsionando outros movimentos revolucionários em diversos países . Entretanto, não se pode dizer o mesmo da estética deste movimento literário. Os escritores árcades parece terem se limitado a eliminar os exageros do Barroco e, também, retomar diversas concepções clássicas do século XVI.

Parece ter ocorrido o contrário com o Romantismo. Este não proporcionou grandes revoluções no aspecto ideológico, embora na terceira geração , Castro Alves tenha realizado uma poesia social engajada com os ideais abolicionistas. Isso ocorreu porque o Romantismo se consolidou a partir de certas concepções estéticas. O Romantismo, portanto, buscou criar uma linguagem um pouco diferente ao identificar-se com os padrões de vida da classe média e da burguesia.

Assim, a arte romântica põe fim a uma tradição de três séculos e dá início a uma nova etapa na literatura, agora voltada aos assuntos de seu tempo – efervescência social e política, esperança e paixão, luta e revolução – e ao cotidiano do homem burguês do século XIX. A linguagem utilizada para atingir o seu público é mais direta e simples. Se o artista árcade centrava sua arte na razão, o artista romântico a centrava no coração. Por isso a fantasia, o sentimentalismo, a impulsividade e o exotismo romântico não têm limites e quebram os padrões da herança clássica. (CEREJA & MAGALHÃES, 1995. p. 99)

Com estas observações, podemos dizer que os três primeiros séculos do Brasil – a saber; séculos XVI, XVII e XVIII – foram marcados pela imposição da cultura portuguesa sobre os habitantes que aqui viviam. O primeiro século ou período é conhecido, pela historiografia literária, como Quinhentismo. Aqui, no século XVI, não se produzia uma literatura propriamente dita porque “não havia, ainda, nenhuma identificação com a terra, considerada uma espécie de “Portugal nos trópicos” (CEREJA & MAGALHÃES, 1995. p. 37).

Por isso, alguns historiadores da literatura preferem chamar a essa produção literária do Brasil-Colônia de “manifestações literárias” ou “ecos da literatura no Brasil”. Somente na segunda metade do século XVIII, com a fundação de cidades e de centros comerciais ligados à extração do ouro, em Minas Gerais, e com o surgimento de escritores comprometidos com as causas políticas de independência, é que se criaram algumas das condições necessárias para a formação da literatura brasileira. Entretanto, isso só se deu de forma efetiva no século XIX, após a independência política de 1822 e a dinamização da vida cultural do país. (CEREJA & MAGALHÃES, 1995. p. 37).

Quero pedir desculpas ao leitor por eu estar repetindo este ponto, uma vez ter sido abordado no começo de nossa reflexão (primeiro capítulo). Acontece que para compreendermos o nascimento da literatura de cordel é sempre necessário começarmos deste ponto, pois, muito se tem dito que o cordel tem suas raízes lusitanas, posto que os colonizadores a trousse para o Brasil, ainda no século XVI. Assim como a literatura oficial durante os três primeiros séculos de Brasil foi reflexo da portuguesa, a literatura de cordel, também, traduzia os anseios dos colonizadores e a força cultural da metrópole lusitana, sendo necessário, portanto, incluí-la igualmente nesta contextualização.

Com isso, sabemos que as produções literárias do Brasil, nos três primeiros séculos, teve uma relação de dependência ao que era produzido em Portugal. Este argumento é aceitável pela maioria dos estudiosos do assunto. Obviamente que o Brasil, nestes séculos, não tinha um posicionamento definido acerca da temática e da produção literária, nem buscava-se romper com o ideário português de literatura. Isso, só começou a ser pensado, a partir do final do século XVIII representado pela Inconfidência Mineira e início do XIX com a independência do Brasil.

As posturas assumidas em relação ao aparecimento do cordel no Brasil tomam, portanto, diferentes vias que, no entanto, se congregam em torno de uma questão medular: as ideias de origem e influência – seja para negá-las ou afirmá-las. Nesse caso, a crítica melhor não faz mais do que substituir uma polaridade pela outra. De uma ou de outra forma, o que se deixa ver é a ideia de que só se considerando como cópia do original ou negação do original a literatura de cordel brasileira conseguiria se definir. (PINTO, 2009. p. 118)

Como já observamos, isso não se aplica apenas à literatura de cordel. Isso é característico, sobretudo, na literatura tida como oficial. Qualquer coisa que se tenha produzido no Brasil entre os séculos XVI e XVIII foi influenciado pelo que os escritores portugueses definiam. O Brasil não era simplesmente reflexo de Portugal, entretanto, não tinha escritores engajados com um projeto literário nacional que desse conta do contexto histórico, do sentimento de pertencer a terra e do desejo de se firmar como nação intelectualmente independente.

Este problema é inevitavelmente um problema da “identidade nacional” diretamente ligado ao fator “originalidade”. Não podemos levar estas características em consideração e afirmar que a literatura de cordel surgiu de uma forma isolada e independente da literatura portuguesa. “Acreditar que possamos ter um pensamento autóctone auto-suficiente, desprovido de qualquer contato 'alienígena', é devaneio verde-amarelo” (SANTIAGO, 1982, p. 20). Não quero colocar aqui a questão da visão equivocada de que “o estrangeiro figura como superior à cultura nacional”. Porém, o cordel não surge no Brasil como algo totalmente desligado da literatura portuguesa. Nem parece ser correto afirmarmos, também, que tenha surgido conforme os movimentos e as tendências literárias estabelecidas pela historiografia literária.

Vamos com calma. O cordel não está tão arrumado como os movimentos literários. Isso ocorre porque não parece que conseguiremos definir a literatura de cordel produzida no Brasil através de suas classificações temáticas. Isso é praticamente uma tradição nos estudos literários. Primeiro defini-se os temas mais corriqueiros entre um e outro escritor. Segundo, definida esta classificação temática, os historiadores da literatura lançam-se sobre um período na história com o objetivo de formar um grupo de escritores que abordam, por um critério de verossimilhança, o mesmo tema em suas obras, isto é, temas mais ou menos afins. Num terceiro momento, busca-se definir e conceituar este grupo de escritores.

Se recorrermos aos livros sobre história literária nos deparamos a uma cronologia, a uma séria de classificações temáticas e, finalmente, a um grupo de escritores, por sua vez, formadores do movimento literário. Aqui não quero desqualificar esta prática da historiografia literária uma vez que é importante para acompanharmos o desenvolvimento histórico da literatura. Só quero deixar estabelecido que por esse critério, talvez, não conseguiremos incluir a literatura de cordel neste campo de estudo, pois literatura de cordel, como dissemos, não pode ser classificada a partir de uma visão de conteúdo cronologicamente organizado.

Alguns escritores como Ariano Suassuna e Antônio Arantes tentaram definir a literatura de cordel por ciclos temáticos. Certamente não foi tarefa das mais fáceis. Vamos ver a tentativa de Suassuna ao busca desenvolver uma classificação do cordel por ciclos temáticos, no mínimo imprecisa. Afirma o seguinte:

Reformulo a tentativa de classificação dos folhetos nordestinos da seguinte maneira: 1) Ciclo heróico, trágico e épico; 2) Ciclo do fantástico e do maravilhoso; 3) Ciclo religioso e de moralidades; 4) Ciclo cômico, satírico e picaresco; 5) Ciclo histórico e circunstancial; 6) Ciclo de amor e de fidelidade; 7) Ciclo erótico e obsceno; 8) Ciclo político e social; 9) Ciclo de pelejas e desafios. (SUASSUNA: apud MENEZES, 1994. p. 03)

Suassuna, ao falar por intermédio do personagem João Melchíades de seu romance “A pedra do Reino”, cita outras classificações temáticas do cordel.

O velho João Melchíades ensinou-nos, ainda, que, entre os romances versados, havia sete tipos principais: os romances de amor; os de safadeza e putaria; os cangaceiros e cavalarianos; os de exemplo; os de espertezas, estradeirices e quengadas; os jornaleiros; e os da profecia e assombração. (...) Um dos tipos que eu mais apreciava eram os de safadeza, subdivididos em dois grupos, os de putaria e os de quengadas e estradeirices. (SUASSUNA: apud MENEZES, 1994. p. 03)

O autor não diferencia muito bem as classificações temáticas das tipologias textuais. Entretanto, proporciona um olhar bastante abrangente, mas não criterioso, sobre a relação entre literatura popular e sua temática. Tem coragem o suficiente para ir além das definições da crítica literária corriqueira ao propor este movimento de aproximação da literatura popular com a história literária.

Com isso, ficamos diante de um impasse. Este impasse está na ordem dos conceitos e do método para estudarmos a literatura de cordel. Isso ocorre, por exemplo, quando perguntamos; em que ponto, quer dizer, em que momento surge a literatura de cordel? Como podemos definir o que é essa literatura?

É comum observarmos que quando alguns estudiosos, entre eles Suassuna e Arantes, buscam definir o que é a literatura de cordel, partem do pressuposto de que é possível proceder essa definição a partir de uma classificação por temas ou assuntos para, em seguida estabelecer o seu corpus. Vale reforçar que esta é uma tarefa muito difícil. Por um lado, definir o nascimento da literatura de cordel pelo tema ou assunto, uma vez que estes não são constitutivos de uma unidade elementar, mas uma complexa relação entre os autores e suas temáticas, significa caminharmos por um terreno íngreme e escuro. Isso equivale dizer que ainda não dispomos de elementos rigorosos para percebermos a relação entre distintas obras, no que ser refere aos conteúdos temáticos destas. Por outro lado, a classificação temática do cordel, que diversos autores pretendem, são bastante opulentas uma vez que estas iniciativas parecem utilizar como critério não o corpus inteiro dessa literatura, mas o acervo que cada autor dispõe acrescidos de sua biografia.

Também não queremos aqui desqualificar e inferiorizar estas iniciativas dos autores que buscam estabelecer uma classificação temática do cordel. É um passo bastante relevante para realizarmos um estudo mais detalhado acerca dessa literatura. Não vamos propor, entretanto, uma maneira diferente de classificarmos o cordel porque isso precisaria de um espaço maior, além de uma maior aquisição de materiais, quer dizer, de obras deste gênero.

O leitor mais criterioso pode perguntar-se porque então a provocação se não podemos, neste momento, resolver o impasse da classificação por temas acerca do cordel. Eu responderia afirmando, em contrapartida, que não podemos compreender o início da literatura de cordel sem atentarmos, embora parcialmente, sobre alguns temas abordados pelos poetas cordelistas. Isso também vale para a definição dos movimentos literários detalhados pela historiografia literária.

Os historiadores da literatura oficial fazem exatamente este movimento. A saber, de definir a literatura por temas e períodos históricos. Estes autores, porém, dispõe tanto de critérios mais precisos para realizarem tal tarefa, uma vez que esta literatura é largamente estudada, quanto de uma consistência maior sobre seu corpus total, isto é, unidades mais claras e mais numerosas entre uma e outra obra.

Proponho outro questionamento: se certos estudiosos da historiografia literária definem que a “literatura brasileira” nasce da ruptura literária e intelectual com a tradição portuguesa entre os séculos XVIII e XIX, qual o momento exata que nasce a literatura de cordel?

É tarefa dificílima estabelecermos quando, verdadeiramente, nasceu a literatura de cordel no Brasil. Se, genericamente, a questão se referir, apenas, a época que foi impresso o primeiro cordel, podemos dizer que ela surgiu ainda no final do século XIX com Leandro Gomes de Barros, talvez no mesmo ano que se inicia o Simbolismo no Brasil com as obras “Missal Broqueis” de Cruz e Sousa em 1893. Entretanto, se isso for aceito, o que devemos fazer com os materiais manuscritos e, igualmente, com os folhetos trazidos de Portugal?

Em nossa contemporaneidade, parece mais aceitável ficarmos com alguma desta definição genérica, por enquanto, até que outro estudo mais aprofundado venha à lume e melhor estabeleça o “verdadeiro” nascimento da literatura de cordel. Por hora, convém compreendermos que no seu princípio a literatura de cordel pode ser no mínimo e, superficialmente, definida sobre três aspectos, conforme sugerido por Menezes (1994): período de não aceitação da história, período de aceitação da história e período de circunstância.

(I) - O primeiro período apresenta-se com a aparência de uma recusa da história: boa parte dos textos dessa época concentram-se em torno da velha tradição medieval dos romances de cavalaria e, de modo mais específico, gravitam à volta da figura de Carlos Magno e de seus Pares. (...) É mister assinalar que os folhetos de então incluíam também outros temas da velha novelística e sobretudo algo inteiramente novo e nascido aqui como foi a legenda do boi indomável e misterioso, bem como de seu respectivo opositor, nesse combate, que foi o vaqueiro destemido, com seu valoroso cavalo.

(II) — O segundo período é o da clara aceitação da história, ou talvez, mais precisamente, o da incorporação nela do herói popular nordestino, tipicamente rural, embora já se inicie desde então um processo de urbanização de temas e personagens. Nesse período, predominam os textos em que vários grandes poetas populares - a partir de seu peculiar ângulo de visão e segundo o princípio da verossimilhança de que já falava Aristóteles em sua Poética - narram a história que se desenrola sob o seu olhar atento, mediante a gesta dos cangaceiros famosos, as histórias de «valentes» que enfrentam e derrotam simbolicamente os potentados rurais (os "coronéis"), ou o desempenho e as vicissitudes de líderes religiosos.

III) — Por fim, o período mais recente, que parece caracterizar-se pelo predomínio de folhetos que contam a história acontecimental do presente, revelando vários sintomas de ruptura da unidade e da identificação de suas velhas matrizes sociais criadoras, bem como de sua crescente "folclorização". (MENEZES, 1994. p. 07-09)

Embora o autor não queira, esta visão é inteiramente reducionista. O ponto positivo é que ele faz uma boa argumentação sobre os períodos. Mas ainda assim, não é possível definirmos a cronologia da literatura de cordel por esses termos. Entretanto, Menezes dá um passo importante para que este objetivo seja alcançado.

Leon Cardoso
Enviado por Leon Cardoso em 16/10/2012
Código do texto: T3935684
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