A LITERATURA DE CORDEL NO SÉCULO XXI ----- 7.1 A crise do cordel

(Esse ensaio foi retirado de meu livro "Literatura de cordel: uma questão da historiografia literária brasileira" que pode ser adquirido no site http://www.clubedeautores.com.br/book/126464--Literatura_de_cordel_uma_questao_da_historiografia_literaria_brasileira)

A literatura de cordel, como outras literaturas, viveu um período que podemos chamar de crise. Isto que chamamos de crise possui um enorme grau de supremacia de elementos externos a esta literatura na medida em que, não-obstante, presumimos um caráter distinguidor entre elementos constitutivos desta literatura e os que, por estar na contramão de seu desenvolvimento, inibe-a neste processo de produção e valoração. Não bastava isso, havia ainda um preconceito arraigado nas mentalidades mais notórias, da crítica literária oficial, que ao seu turno definia os cânones literários, isto é, distinguia a alta literatura de uma mais baixa ou, mais precisamente, uma não-literatura no sentido de que se a encarava tão-somente como manifestações literárias, para não dizermos elementos folclóricos.

Mas não foi só isso. Ainda havia elementos outros que não somente os literários. É que a partir da segunda metade do século XX o Brasil padeceu ao sofrer os altos preços dos produtos, inflação, baixos salários e desemprego, portanto na ordem econômica e não, somente, na intelectual ou literária. Assim, houve um período em que a literatura de cordel sofreu um abalo profundamente sentido por seus autores e leitores e isto não estava em suas raízes, tão menos em seus artífices, mas em elementos externos de duas grandezas: a crítica literária oficial e outra grandeza de ordem econômica. No período de crise, a literatura de cordel sofreu mais com esta última grandeza, pois sempre sobreviveu marginalmente sem a consideração da primeira.

Se formos definir uma data que iniciou a crise da literatura de cordel, podemos eleger a década de 1960. A partir desse período houve uma notória diminuição na produção de folhetos. Inúmeras foram as causas dessa diminuição e isso afetou a produção de todo o nordeste, inquestionável berço desta literatura. Para compreendermos as causas que levaram a literatura de cordel a este ponto devemos compreender melhor o contexto histórico, isto é, o que passava o Brasil e como se configurava uma realidade no cenário político e econômico deste período.

Num primeiro plano, o motivo mais significativo para o desencadeamento da crise do cordel se dá no campo econômico. Entre 1945 e 1964 a economia brasileira foi profundamente marcada pelo embate entre as empresas nacionais e as multinacionais. A primeira foi muito estimulada pelo governo Vargas e a segunda pelo governo de Juscelino Kubitschek. Este embate não beneficiou o Brasil e a população padeceu ao afundar-se cada vez mais na dificuldade de sobrevivência financeira. O processo de industrialização foi ainda mais profundo no governo de JK (1955-1961), pois, como este deu muitos incentivos para a instalação das multinacionais, o brasileiro não se viu incluído nesta aparente prosperidade do Brasil, pois quem mais ganhava com isso eram os estrangeiros. “A consequência da industrialização e da concentração da propriedade da terra foi o incremento das correntes migratórias, principalmente do Nordeste para o Sudeste e do campo para a cidade” (PILETTI, 1997. p. 279).

Com isto exposto, o primeiro ponto que podemos observar é que o público do cordel constituído imensamente por nordestinos se fragmentou, se dispersou e, dessa forma, diminuiu, consideravelmente. Isso já vinha ocorrendo desde o governo Vargas, mas se intensificou assustadoramente no governo JK. Com a concentração da renda nas mãos dos industriários, os pobres buscavam “melhorias de vida” e, para eles, isso estava nas grandes cidades, sobretudo do sudeste.

Pois bem. A migração da população nordestina para o sudeste já dá margens à justificativas de que começava a ocorrer uma crise do cordel, pois seu público consumidor se reduzira. Compreendemos que este é o ponto de partida, mas ainda não é o principal desencadeador deste processo. Isso ficará mais evidente entre as décadas de 1964 e 1985, para nos apegarmos apenas a uma cronologia política, uma vez que este período marca a entrada e saída do Brasil na ditadura militar.

No início da década de 1960 a inflação muito elevada acrescida de baixíssimos salários fez com que houvesse pouca comercialização dos folhetos e isso gerou o fechamento de importantes editoras especializadas na publicação destes folhetos. A primeira foi a Luzeiro do Norte (1954-1964) do poeta João José da Silva que era, sem dúvidas, o mais importante editor de Recife depois de João Martins de Athayde. Outra grande editora que teve de ser fechada foi a Estrela da Poesia (1957-1965) do poeta Manoel Camilo dos Santos, principal editor de cordel de campina Grande (PB) por mais de uma década.

Sobre a crise da literatura de cordel, neste período, o poeta Rodolfo Coelho Cavalcanti (1919-1986) já tinha chamado a atenção ao publicar, em 1956 no jornal Folha da Manhã, um artigo intitulado (Silêncio dos vates populares).

João Martins de Ataíde, que é a própria alma do povo falando na linguagem poética do povo, calou a sua voz. E, do mesmo modo, está silencioso o seu substituto, João José da Silva. As pequenas tipografias, as impressoras manuais, a humilde maquinaria, que favorecia ao homem das ruas com os livros de versos, lidos e cantados nas feiras, nos mercados, no cais, nas barcaças e saveiros, desde as terras escaldantes do Ceará às plantações de cacau da Bahia, estão fechadas. Poetas, tipográficos, impressores e distribuidores, cantadores de feiras que vendiam os folhetos e até leitores – todos ganhavam algum dinheiro na indústria do verso popular. Mas as exigências fiscais eram tão grandes que o folheto deixou de ser impresso e o preço ia excedendo as possibilidades dos leitores costumeiros. (CAVALCANTI apud QUINTELA, 2005. p. 115)

Agora no início da década de 1960 estas observações do poeta se intensificam e a literatura de cordel vivia seus dias mais difíceis. No final desta década, a antiga editora São Francisco, do poeta José Bernardo (1910-1972), sobreviveu com muitas dificuldades e isso se intensificou com a sua morte. Com a morte do poeta seus herdeiros mudam o nome da editora e colocam o nome do pai “José Bernardo da Silva” e assumem a publicação dos folhetos que são produzidos em números muito baixos. No final dos anos de 1970 a editora passa a se chamar Lira Nordestina e continua publicando poucos números, cerca de 100 exemplares. Mais tarde esta editora foi vendida ao Governo do Estado do Ceará.

Pensando neste período, o poeta Severino Marques Sousa Júnior (em 1971) escreveu os seguintes versos:

O nosso Brasil de hoje

O meu bom pai sempre dizia:

O futuro está bem perto

Com sua democracia

A nação se evoluindo

E acabando a poesia.

É interessante observarmos que esta glosa foi publicada em uma importante revista de circulação nacional, a Veja, em 1971, no período da ditadura militar. Palavras como “democracia” e “nação” são usadas de forma irônica numa época em que havia uma intensa repressão aos meios de comunicação.

Por volta de 1974, começou uma crise econômica mundial e esta crise aumentou muito o preço do petróleo, do trigo, de fertilizantes, etc. Com isso o déficit da balança comercial brasileira fui muito sintomático chegando a aproximadamente, entre 1974 e 9177, a dez bilhões de dólares. Isso bastou para o Brasil entrar, também, em uma grave crise econômica. “De 1970 a 1980 houve uma crescente concentração da renda do Brasil: os ricos ficaram mais ricos e os pobres, ainda mais pobres” (PILETTI, 1997. p. 308). Ainda de acordo com esse autor, a partir dessa crise,

a situação do povo tornou-se “dramática”, principalmente a partir de 1980: a produção diminuiu, o desemprego chegou a taxas nunca antes alcançadas, os salários reais baixaram, o consumo reduziu-se drasticamente e a fome atingiu proporções alarmantes. Em 1984 dois em cada três brasileiros passavam fome e cerca de mil crianças de até um ano morriam diariamente por inanição, isto é, por falta de alimento. (Idem. p. 308)

O poeta Raimundo Santa Helena no seu cordel “Cartilha do povo” retrata muito bem este momento histórico ao falar com ódio após refletir sobre o fato de que a riqueza estava concentrada nas mãos de alguns, ao passo que o pobre padecia e passava necessidades. O poema foi produzido pouco tempo depois do regime ditatorial. De uma forma muito direta e com septilhas muito bem elaboradas em todo o folheto, o poeta faz uma reflexão em tom de protesto, como podemos ver nestes versos:

Ninguém nasceu neste mundo

Pra sofrer e virar Santo

Deus nos fez pra gozar

Mais do que pra derramar pranto

Mas na panela do povo

Só tem farofa de ovo

Quando almoço não janto.

E todo trabalhador

Ao teto vai ter direito

Um salário compatível

Pelo que faz ou foi feito

Quem lavrar terra é dono

Não haverá abandono

Pra quem tiver defeito.

Nestes versos, o poeta trata da realidade muito difícil pela qual passava o brasileiro. Fala do trabalhador sem teto, com alimentação precária “só tem farofa de ovo”, do direito de receber salários compatíveis, da concentração da terra nas mãos de poucos, “quem lavrar terra é dono”. Sobre a questão da democracia e reprovação da ditadura militar, o poeta afirma o seguinte:

Contestação não é crime

Onde há Democracia

Só ao cidadão pertence

A sua soberania.

No poder coercitivo

Jesus foi subversivo

Na versão da tirania.

Eu sou dono do meu passe

Faço arte sem patrão

Só quem tem capacidade

Deve ser Oposição

Porque lutar pelos fracos

É tatear nos buracos

Na densa escuridão.

Sobre a questão dos estrangeiros (das multinacionais), isto é, da concentração da riqueza do Brasil nas mãos dos grandes empresários estrangeiros o poeta fala o seguinte:

(...)

Do progresso brasileiro

O povão não usufrui

Embora com seu suor

É o que mais contribui

Mas num regime que suga

O honesto que madruga

Nada que presta possui.

Ninguém aguenta mais

Abrangentes privações

Estrangeiros controlando

No Brasil nossas ações

Vamos revirar as normas

Decretar nossas reformas

A partir das eleições.

(...)

O modelo econômico

Continua muito mal

Pequena média empresa

Viram lama no canal

Queremos mudar a fase

Que elas se tornem base

Da renda nacional.

Que haja maior respeito

Pelos grupos raciais

Também pelas minorias

Porque somos todos iguais

Um ensino democrático

Humano, moderno, prático

Justiça nos tribunais.

As multinacionais

Carregam nosso dinheiro

O desemprego empurra

O pobre pro cativeiro.

Na dimensão coletiva

Povo na locomotiva

É apenas passageiro.

Tem gatunos de gravata

É só cutucar a toca

O Governo dá dinheiro

Pra plantarem mandioca...

Não plantam nem o farelo

E ladrão rico donzelo

Vai pra Boston tomar coca.

O poeta Raimundo Santa Helena faz uma reflexão muito crítica acerca da realidade do Brasil. Talvez até com certa medida de ódio por todo esse processo. Desigualdades sociais, baixos salários, extensas jornadas de trabalho, concentração da renda nas mãos de empresários estrangeiros, fome, miséria, desemprego, etc. Era a realidade de um país ainda quase na ditadura, portanto no final do século XX. Com relação às multinacionais o poeta fala com conhecimento de causa, pois estas empresas se desenvolviam muito a partir de incentivos fiscais, ou melhor, “com o dinheiro do povo brasileiro” como bem disse Nelson Piletti no seu grande livro “História do Brasil” (1997), aqui reportado várias vezes.

Em 1985, Tancredo Neves é eleito o primeiro presidente civil, após 21 anos de governos militares, mas morre antes mesmo de assumir a presidência. José Sarney, que era vice, assumiu o cargo provisoriamente e logo passou a titular da presidência. No governo Sarney foram implantados diversos programas econômicos, mas todos fracassaram e a situação econômica do país ficava cada dia mais difícil. Apesar de muitas iniciativas para melhorar esta situação a inflação subiu assustadoramente e o Brasil entrou mais intensamente na crise econômica.

A inflação mais uma vez estava incontrolável, e o jeito foi tentar resistir a mais uma crise econômica no Brasil. O desânimo tomou conta de todas as classes da população. Quando houve o movimento das eleições diretas no país, muitos cordelistas se juntaram às multidões e reivindicaram: “Diretas Já”.

Reconquistada a democracia com a vitória de Tancredo Neves, a esperança do povo renasce e começa a brilhar, surgem então, alguns folhetos, que expressam a satisfação do povo. No entanto, com a morte do presidente, foi enterrada, também a esperança de melhores dias. Assume o governo o vice José Sarney, que não pode controlar a inflação e congelou os salários dos trabalhadores, provocando sentimentos de tristeza e insegurança nacional. Tudo isso, somado às perdas que calavam o coração dos brasileiros. Dentre elas, a morte de Luís Gonzaga em 1989, deixando muita saudade para o país e em especial ao povo do sertão nordestino, que ainda hoje lamenta e é motivo de inspiração para escrever inúmeros folhetos relacionados ao “Rei do Baião”. (SOUSA, p. 10)

No último mês do governo Sarney, início de 1990, a inflação estava no índice mais alto da história chegando a 84,32%. Com isso, os principais prejudicados foram os trabalhadores assalariados “de modo especial aqueles que recebiam seus salários mensalmente, cujo valor real chegava a ser cerca de 50% inferior ao nominal” (Piletti, 1997. p. 332). Com isso, podemos compreender dois pontos bastante significativos para explicarmos a situação difícil pela qual passava a literatura de cordel. O primeiro ponto está na altíssima inflação, isto é, no preço muito elevado dos produtos, neste caso, dos materiais para a publicação dos folhetos. O segundo ponto que devemos refletir está nos baixos salários que não permitia aos leitores comprar os folhetos reservando-o para suas sobrevivências. Isso já foi sentido pela literatura de cordel no princípio dos anos 1960. Agora esta situação se repete, talvez, de uma forma mais intensa.

Inflação alta acrescida de baixíssimos salários fez com que houvesse pouca comercialização dos folhetos e isso gerou o fechamento de mais editoras especializadas na publicação destes folhetos. A editora que menos sentiu o impacto parece ter sido a Editora Luzeiro Limitada (antiga Prelúdio), localizada em São Paulo, pois continuaram publicando com materiais de ótima qualidade e em números significativos desde meados do século XX.

No final da década de 1980 e início da de 1990 a literatura de cordel teve um avanço significativo. Avanço tanto no sentido de reconhecimento, quanto no sentido de produção e comercialização dos folhetos. Isso se intensificou ainda mais com diversos planos para estabilização da economia elaborados ainda no governo Itamar Franco (1992-1994) que era vice-presidente e assumiu após Fernando Collor ter seu mandato caçado. Já em 1994, Fernando Henrique Cardoso é eleito com a força de ter criado, juntamente com uma equipe de economistas, o Plano Real (ainda no governo Itamar, pois Fernando foi ministro da fazenda de Itamar) e por meio deste plano conseguiu se eleger e estabilizar a economia: “Durante seus dois primeiros anos, o governo Fernando Henrique Cardoso conseguiu manter a estabilidade econômica. Em 1996, a inflação ficou em torno de 10%, média alcançada no país pela primeira vez desde 1957” (Piletti, idem, p. 342).

Os poetas e editoras de cordel tiveram, com isso, uma situação mais favorável para a publicação e venda dos folhetos. Com a inflação mais baixa e a relativa diminuição do preço dos materiais para a publicação do cordel, houve uma maior produção dessa literatura e o aparecimento de novos autores. Com uma maior popularização de meios de comunicação como a televisão e o rádio e, mais adiante, com o aparecimento do computador e da internet o cordel passa a se firmar e se revitalizar. Além disso, esta literatura alcançou outros espaços como as universidades (algumas), posto que o cordel seja hoje (2011), e já há algum tempo, tema de teses, dissertações e monografias.

Leon Cardoso
Enviado por Leon Cardoso em 16/10/2012
Reeditado em 16/10/2012
Código do texto: T3935633
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