A LITERATURA DE CORDEL NO SÉCULO XXI ----7.2 A era da internet e o resgate do cordel
(Esse ensaio foi retirado de meu livro "Literatura de cordel: uma questão da historiografia literária brasileira" que pode ser adquirido no site http://www.clubedeautores.com.br/book/126464--Literatura_de_cordel_uma_questao_da_historiografia_literaria_brasileira)
A partir da segunda metade do século XX, o mundo começou a experimentar novidades tecnológicas, para muitos, existentes apenas na ficção. O mundo passou a dispor de muitos meios de informações. É que começávamos a viver a era da internet. Desenvolveu-se aparelhos como rádio, televisão e computador. Este último causou uma revolução tecnológica ao criar-se a rede mundial de computadores já no final do século XX, aproximadamente na década de 1990. A partir de então, os poetas populares começaram a se conscientizar mais profundamente sobre o que se passava no Brasil e no mundo, sobretudo, pelos rádios e televisores, a princípio, muito pouco pela internet.
Foi dessa forma que os folhetos saíram das feiras, das zonas rurais, para alcançar novos lugares, conquistar novos espaços, em outras palavras, se urbanizar e se expandir no mundo da tecnologia. Perdeu por um lado e ganhou por outro. Perdeu no sentido de que os populares perderam um pouco do contato com ele (o cordel). Além disso, parece estar ocorrendo uma espécie de intelectualização do cordel. Por isso não é mais tão seguro dizermos que o cordel é uma literatura feita por pessoas sem muita instrução, pelo sujeito comum. Ainda é, em partes, mas já há certos intelectualizados se aventurando na arte de escrever cordel. Agora não mais se leem cordéis nas feiras, mas se posta muito na internet e essa é a expressão da moda “postar na internet”. Mas também não quero parecer ser conservador ao extremo, nem no mínimo, na verdade não quero me colocar ao lado dos conservadores. Todavia, é como eu disse no início deste parágrafo: o cordel ganhou por um lado, quer dizer, está sendo estudado mais por uma série de pesquisadores e está entrando nas universidades, mas perdeu por outro. Perdeu no sentido de que à medida que vai atingindo um público mais especializado vai se afastando um pouco dos sujeitos populares.
Torço para que eu esteja errado e que isso seja uma reflexão subjetiva, isto é, sem muita relevância. Se o leitor bem se atentar para o que foi até aqui discutido, perceberá que uma tese defendida aqui está no fato de que estamos insistindo para incluirmos esta literatura na historiografia literária brasileira, pois historicamente ela não era vista como literatura e por isso nunca esteve nos estudos que tratam da história da literatura brasileira. Por isso, nesse tópico não estou criticando o fato da literatura de cordel estar mais inserida nos meios de comunicação, sobretudo na internet. O que se dá é o contrário disso. É preciso que ela acompanhe o processo tecnológico, mas que não perca sua principal característica de ser de fácil entendimento, uma vez que deve ser destinada ao povo comum, sem especializações, mestrados e doutorados.
Nesse sentido, quero dizer que não há nada mais irritante do que um cordel escrito por um intelectual representando a linguagem e a cultura erudita. Isso está sendo feito. Espero que não passe das intenções destes aspirantes a poetas populares. Assim, reconheço que o intelectual é bom para fazer pesquisas acerca da literatura de cordel e isso é importantíssimo, mas não é bom para produzir esta literatura a não ser que se especialize sobre a língua, a cultura e tenha uma relação de vivência muito significativa com os sujeitos populares.
Mas vamos nos atentar para os meios de comunicação, sobretudo a internet. Deixemos um pouco de lado esta reflexão para não perdermos o foco precípuo de nossa investigação neste tópico. Quero chamar a atenção do leitor para um fato muito importante que creio estar servindo para resgatarmos o cordel. Saindo de uma crise, como já dissemos, a literatura de cordel está se reavivando e se fortalecendo.
Hoje, muitos são os pesquisadores que se debruçam sobre essa literatura. Já há trabalhos importantíssimos que buscam inserir esta literatura nas discussões relevantes da literatura, de uma forma geral. Há, igualmente, bastantes iniciativas que buscam valorizar o cordel e, também, incluí-lo no universo educacional urbano, quanto ao universo educacional rural ainda há muito que se fazer.
Isso está mais visível a partir da última década do século XX e primeira do século XXI quando a literatura de cordel ganhou terreno fértil no meio televisivo. O cinema também contribuiu significativamente para isso. Diversas obras de Suassuna baseadas no Romanceiro Popular Nordestino, em outras palavras, na literatura de cordel viraram filmes que foram bem aceitos pelos telespectadores cinematográficos. “O auto da compadecida (2000)” foi o principal deles, talvez a mola propulsora, embora Glauber Rocha já tivesse inserido o cordel e a cultura popular em seus filmes. Em 2007 o filme “O homem que desafiou o diabo” foi profundamente influenciado pela literatura de cordel. O cordel entrou com o pé direito, também, na Rede Globo ao reeditarem, numa minissérie, “A pedra do Reino” de Suassuna e, também, a recente novela, agora mesmo em 2011, “Cordel encantado” retratando o universo nordestino e exibindo, em vários capítulos, recitais de cordel.
De qualquer forma, o principal espaço conquistado pela literatura de cordel é sem dúvidas a internet. Diversas instituições são responsáveis pela divulgação e, até mesmo, vendas de cordéis nesses novos moldes, quer dizer, pela rede mundial de computadores. Um exemplo disso é a Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC) situada no Rio de Janeiro.
Fora do nordeste, talvez o empreendimento de maior visibilidade seja a ABLC (Academia Brasileira de Literatura de Cordel), fundada no Rio de Janeiro, em 1987, e presidida pelo cearense Gonçalo Ferreira da Silva (1937). Um indicativo do momento promissor por que passa a literatura de cordel brasileira atualmente é o aparecimento de diversos espaços na internet produzidos por poetas ou pessoas ligadas à causa da divulgação do cordel. (QUINTELA, 2005. p. 150)
A Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC) foi fundada precisamente na data de 7 de setembro de 1988. No início desta academia, apenas três cordelistas formavam a diretoria: o presidente, Gonçalo Ferreira da Silva, o vice, Apolônio Alves dos Santos e o diretor cultural, Hélio Dutra. Apesar da constituição da ABLC, ela não tinha uma sede e os membros, por um ano, se reuniam em lugares improvisados. Parece que em 1990 a academia já tinha se consolidado e os poetas começado suas atividades de representantes de diversos estados (brasileiros).
Penosamente, algumas das reuniões foram realizadas em bares, lanchonetes e restaurantes, até que um dia, em visita da diretoria da Academia Internacional de Letras, a figura de Abelardo Nunes se agigantou, abrindo-nos caminho em direção à Federação das Academias de Letras do Brasil, onde passamos a fazer nossas reuniões. Era o ano seguinte àquele em que foi fundada nossa academia. Aí, sim, tivemos como elaborar um calendário acadêmico, criamos um quadro de beneméritos e iniciamos uma sólida ponte de informações culturais, unindo nossa entidade aos principais centros de difusão da literatura de cordel no Brasil e no mundo. Com a comunidade acadêmica nos olhando de soslaio entre perplexa e zombeteira, partimos para a consolidação do nosso quadro acadêmico. Era o ano de 1990. (Membros da ABLC )
Assim nasce a academia. Têm 40 cadeiras que são ocupadas por pessoas de diferentes estados do Brasil. A academia foi constituída no final da década de 80 do século XX e através de seu site disponibiliza um email para a comercialização de uma coleção em dois volumes contendo os 100 cordéis mais raros da literatura de cordel. Estes volumes contém um total de mais de 500 páginas em papel off set com um preço bastante acessível ao público. Além disso, disponibiliza gratuitamente uma série de cordéis digitalizados de diversos autores, biografias, projetos, enfim as mais diversas informações imprescindíveis para o público que se interessa por esta literatura. Em três estrofes, a primeira uma sextilha seguida de duas décimas, o presidente Gonçalo Ferreira da Silva (cearense) estabelece o lema e enaltece a ABLC:
Da inspiração mais pura,
No mais luminoso dia,
Porque Cordel é cultura
Nasceu nossa Academia
O céu da literatura
A casa da poesia.
Com infinita alegria,
com sentimento fraterno
dedicaremos eterno
amor à Academia,
ela será nosso guia
na alegria e na dor,
pois não há maior doutor
nem mais nobre formatura
que eleve a criatura
como a formada em amor.
Decreto celestial
há milênios redigido
é finalmente cumprido
quando a posição astral
oferece visual
de pura e rara beleza
em que vemos com clareza
unidos nossos destinos
nos estatutos divinos
no livro da natureza.
Para aqueles que não podem ir ao Rio de Janeiro, a internet se torna o principal, ou talvez o único, meio para que se conheça a ABLC . Nessa mesma direção há outra instituição muito importante para conhecermos e nos aprofundarmos na literatura de cordel que é a Casa de Rui Barbosa que também disponibiliza cordéis digitalizados dos mais variados autores. Não vamos aqui falar do histórico desta instituição para este trabalho não ficar de um todo extenso, pois ainda precisamos tocar em outros pontos bastante significativos para nosso estudo. Aqui fazemos referência a estas duas instituições, pois são importantíssimas para aqueles que buscam se aprofundar ou conhecer a literatura de cordel, de uma forma geral.
Os poetas da nova geração do cordel, também utilizam muito a internet como resgate e divulgação do cordel. Com esta ferramenta os autores expõem tanto seus trabalhos, quanto de outros poetas, inclusive poetas consagrados da literatura de cordel como Leandro Gomes de Barros, João Martins de Athayde, Manoel d’Almeida Filho, entre outros.
O precursor dessa união mais precisa entre literatura de cordel e computadores parece ter sido José Honório da Silva da cidade de Timbaúba (PE) no princípio da década de 1990. O autor editava seus folhetos no computador e usava uma impressora para imprimi-los. Como sabemos, a literatura de cordel estava saindo de uma crise muito sentida e o advento do computador e da internet parece lhe ter auxiliado a se tornar mais atrativa e relevante, sobretudo com a internet. A partir da iniciativa de José Honório, outros autores lhe seguiu, entre eles o ex-proprietário da Folhetaria Luzeiro do Norte, João José da Silva. Este também começa a utilizar o computador para editar seus folhetos e até escreve um folheto “A peleja do poeta popular com o computador” para retratar esse processo. O poeta ressalta que: “no começo era difícil. Eu não sabia mexer em nada. Agora, até digitar eu já digito’’.
O público mais tradicional ou conservador não parece ter aceitado muito essa iniciativa e o cordel se depara, agora no século XXI com um novo desafio, o de amenizar esta visão mais tradicionalista. Entretanto, com as novas gerações mais acostumadas com o computador e com a internet esta visão parece estar mudando.
Esse papo, de dizer que a poesia feita no computador não é cordel, é furado. Só porque antes era manuscrita e depois passou a ser impressa deixou de ser literatura de cordel? Não! O fato de utilizar um recurso como a Internet para veicular este tipo de literatura não faz com que ela deixe de ser popular. Porque, hoje, a Internet está se tornando um veículo popular. É apenas mais um meio que não descaracteriza esta literatura. O que descaracteriza o cordel é escrever errado e não obedecer às regras da métrica, rima e oração. O cordel pode estar em CD, rádio, televisão e continuar cordel, assim como pode virar peça de teatro ou cinema (...). A literatura popular sempre utilizou esses meios, ou novos meios para se divulgar. Utilizar a modernidade para veiculá-la não significa amoldar-se aos novos meios, mas que os novos meios estão se utilizando dela, porque ela veio antes deles. (VIANA apud JAHN, 2011. p. 55)
De acordo com Klévisson Viana, a tecnologia deve estar a serviço dos escritores do cordel. Poesia de cordel bem escrita é aquela que passa por um processo de correção e a internet em nada descaracteriza esta literatura, o que ocorre é o contrário disso: “hoje, a Internet está se tornando um veículo popular” (Viana). Só devo acrescentar à visão de Klévisson Viana o fato de que nem todos têm acesso à internet. Nem todos possuem computadores. Não devemos ir muito além do aspecto social para compreendermos a relação da literatura popular com os sujeitos populares, público alvo da literatura de cordel. Parece acertado afirmarmos que os escritores cordelistas devem estar mais próximos às novas tecnologias, principalmente a internet, em contrapartida ainda não parece aceitável o fato de dizermos que a internet é algo popular. Acredito que ela será um dia, mas em nossa contemporaneidade ainda não é. Uma coisa não pode ser aceita como popular se não atingir todos ou a grande maioria dos sujeitos populares.
Diversos escritores são, portanto, a favor da aproximação dos cordelistas com a rede mundial de computadores. Em entrevista a Rubenio Marcelo, o cordelista Manoel Monteiro afirma o seguinte:
Estes meios de comunicação têm contribuído, e muito. O cordel, hoje, fala a linguagem do Século XXI. E a mídia, toda a imprensa que precisa de notícia, está vendo aí a importância e a influência do cordel, este expoente de arte que está sendo inclusive (como já afirmei) estudado e enfocado – com destaque – em teses e monografias de mestrado e doutorado. Então, quando as universidades estão interessadas em algo, a imprensa – que é inteligente – também está. E isto tem favorecido deveras a valorização merecida da nossa literatura de cordel. A poesia em geral, hoje, é para ser veiculada também pela Internet e por todos os meios mais modernos de comunicação. (Manoel Monteiro in entrevista à Rubenio Marcelo)
Vamos citar dois poetas relevantes para compreendermos melhor esta relação de proximidade do autor de cordel com os meios de comunicação: são os irmãos Arievaldo e Klévisson Viana. Os dois autores são cearenses e desde cedo tiveram muito contato com os meios de comunicação, sobretudo com jornais, pois escreviam quadrinhos que eram publicados em distintos jornais. Klévisson Viana usando esta experiência produziu cordéis que muito dialogam com os meios de comunicação, sobretudo, a televisão. Como exemplo, podemos citar os cordéis “Carta de um Jumento à Jô Soares”, “Descaminhos das Índias ou o indiano que casou com uma cachorra”, “O porco endiabrado no programa do Ratinho”, bem exemplificado pela pesquisadora Lívia Jahn (2011) em sua dissertação de mestrado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Além disso, os irmãos Viana são muito atuantes e elaboram diversos projetos para inserir a literatura de cordel em sala de aula. Os projetos “O cordel com a corda toda” e “Acordacordel” são muito significativos para este propósito. A melhor forma de conhecermos estes projetos é através da internet. Os autores utilizam muito esta ferramenta inclusive para vender seus próprios cordéis e de outros autores, além de fazer uma boa divulgação da cultura e da literatura nordestina.
Dessa forma, compreendemos que no século XXI a literatura de cordel não pode ficar à margem dessa ferramenta tão significativa para os sujeitos deste século. Hoje, ficar fora da internet é ficar isolada do mundo, pois o mundo caminha de mãos dadas com esta ferramenta. Isso é tão significativo que compreendemos o avanço da literatura de cordel, ou melhor dizendo, o resgate dessa literatura por este víeis tecnológico. Esta literatura saiu de uma crise muito profunda e alcançou um dos pontos mais altos, e cresce cada vez mais, com o advento e com a modernidade tecnológica. Mas é uma pena não a vermos mais nas feiras como antes.