FÉ CEGA, FACA AMOLADA
 
A pior cegueira é cegueira ideológica, sobretudo aquela que promete paraísos artificiais; tais visões do paraíso, quando aplicados ao real cumpre apenas a lógica da dominação vã arrastando os crentes a um fundamentalismo, pois se não sei o caminho a seguir com clareza me prendo aos instintos, a irracionalidade preparando um chão propicio ao pouso de aves de rapina, raposas, hienas, que usam de todas as artimanhas e astúcias para manter o rebanho humano sob seu julgo. A cegueira ideológica por instinto de sobrevivência tende a ver no outro, o descrente, uma ameaça numa lógica rasteira, e maniqueísta da realidade para justificar seus métodos de convencimento. Veem-se a si como superiores, portadores dos altos ideais de justiça, igualdade, liberdade e fraternidade, são detentores iluminados da verdade que anunciam como a boa nova. O outro, os incrédulos, são a face do mau que deve ser convertido pela crença ou banido. Servem-se num determinado momento à libertação mais cedo ou mais tarde descambam quase sempre para o domínio físico ou psicológico, seus métodos são sutis ou não, vão da enganação até a violência pura, colonizam a alma dos seres mantendo-os sob garras afiadas sob o escopo de suas crenças, se necessários às devoram como num banquete que nada tem de nobre e de sublime, mas humano, frio e sanguinário. Sob a ótica da luta pela sobrevivência, quando descobrem que o que veem é mais amplo do que suas estreitas ideias podem enxergar, são tomados pelo ódio secreto que se transmuta em valores alheios ao seu sistema de crenças que tinha como objeto inicial alcançar o “bem da humanidade”. Muitos incautos ou ingênuos continuam cegos, outros se fazem de cegos, fazendo da luta inglória pelas promessas messiânicas uma profissão de fé. A revelação que permitiu a visão inicial passa a fazer parte de um passado distante e o sonho não alcançado, é redimida através do banquete farto, afinal a horda em sua profissão de fé, derrotou o inimigo e agora os iluminados, estão no altar, na glória, se não foram satisfeito em seus altos ideais imitam os que combatiam, lançam-se ao ter e ao possuir, a soberba; num regozijo de não mais cegos, mas de surdos que agora se fartam na satisfação apenas dos bofes; ao tornam-se glutões, buscam apenas pela satisfação das vontades mais mundanas, o paraíso perdido, entretanto essa mudança provoca-lhe um misto de vergonha e cinismo, vergonha por viver num mundo decaído, pois nem todos têm acesso ao banquete que tem os “eleitos”; assim a cegueira inicial das crenças produz cegos que pensam com o estômago. E passam a desenvolver uma lógica primária, a de justificar o seu pecado em nome da lógica de que toda ação é válida, é justa. Em seus banquetes totêmicos lembram a visão inicial, refestelando-se no vinho, na queima do vil capital, nos charutos feitos especialmente em paraísos terrenos. Quanto aos crentes excluídos do banquete restam-lhes os ressentimentos, que animam o ódio e desejo de vingança, já que agora só os escolhidos dos escolhidos terão acesso ao banquete salvacionista; essa lógica permite a raposa comer as galinhas, e os lobos os cordeiros. Nesse paraíso do fanatismo, da mentira, o não reconhecimento do erro por um capricho religioso ou político, acabam por lançar todos ao inferno das guerras e da dominação, da fome, da injustiça, da catástrofe, da barbárie. Não seria o caso da humanidade, toda a humanidade e seus sistemas de dominação político e religioso ir para o divã, antes que sejamos condenados à loucura.