DEBATES VIVOS DA ARTE POÉTICA
I – POESIA SEM ALGEMAS
A um Poeta/Escritor dos nossos dias que «agrilhoado às formas estéticas tradicionais», procura esgrimir seus argumentos com chavões esclerosados e despidos de medula sustentada.
Questão 1 – Refere convictamente o nosso ilustre “comentador” que a METRICIDADE/METRIFICAÇÃO, dando exemplos, é sagrada.
Resposta:
“Ó meu ilustre amigo, eu dar-lhe-ia uma resposta imediata. Todavia só lhe quero lembrar uma coisa: Na Poesia MODERNISTA E CONTEMPORÂNEA – Seculo XX e passagem para o Seculo XXI – há uma linha tremenda que separa o Classicismo do Século XVI do movimento literário referido.
Teria que lhe lembrar as posições sábias e de madura clarividência que um Fernando Pessoa, um Jorge de Sena, um Teixeira de Pascoaes e, mais recentemente, Miguel Torga e Eugénio de Andrade, além de muitos outros (dispense-me de um rol fastidioso para quem lê...) que acerca desta "delicada" questão apenas sintetizam a ideia neste princípio: A ARTE POÉTICA JAMAIS SE DEVERÁ SEPARAR DO CARISMA NATURAL DA LINGUAGEM… (*)/01 – Saiba que, hoje em dia, a musicalidade da fala impera sobre as pretensas REGRAS da arte poética. Todas as infra-estruturas convencionais tendem a diluir-se na espontânea expressão da metalinguagem. Sugiro-lhe que leia, sobre este mesmo tema, o parecer insuspeito de Eduardo Lourenço. Depois desse exercício, após consulta pragmática, diga-me algo que lhe pareça elucidativo. (*)/02
Não querendo incendiar uma polémica que desde há muito está ultrapassada, apenas lhe recordo o que dizem certos LIVROS SAGRADOS (chineses e não só…) : «se não quiseres sentir uma trave sobre o teu olhar, não repares nos argueiros que vês em frente a ti».
Desculpe, se for caso disso, a minha franqueza, ok?
Questão 2 – “Que o amigo é uma pessoa muito erudita, eu já sabia. Que o ostenta (sustenta?), também sabia. Mas eu fico-me pelas regras que aprendi. Nem Miguel Torga, citado por si, se atreveria a fazer uso dessas misturas. Abraço”.
Ora aí está, caríssimo amigo e confrade poeta, respondeu-me que “fico-me pelas regras que aprendi”.
Ai dos discípulos que se ficam apenas pela velha cartilha magistral.
Devido àquele evento personalizado que a estória consagrou como o «drama prometaico» da cultura e da arte ocidentais, eis a tragédia poética hodierna que inferna a literatura vulgar.
Não, amigo, nos tempos que decorrem (não sei se tem estado atento?) a Poesia sobrevive ainda – e sobrevirá acreditamos todos – pelas suas mais diversas relações interlinguísticas, quiçá metalinguísticas (*)/03, tendo em vista as prerrogativas mais singelas e comuns: a liberdade de expressão, a naturalidade, a musicalidade, o ritmo e, acima de tudo, a genuinidade.
Todas as prerrogativas que referi, além de outras variantes assumidas por uns e outros escritores, constituem de momento as derivas insondáveis de que a Poesia Contemporânea faz alarde e testemunho.
Chame-se-lhe de vanguardista, pioneira ou simplesmente pós-modernista – como soe dizer-se nos Fóruns Poéticos mais correntes, a Poesia é isso mesmo. Se assim não for ela continuará, num famigerado e interminável marasmo, cujo objectivo se limitará apenas, e só, a um mero condimento de escaparates sensaboristas – passe o neologismo – para consumidor ver. É por esta razão e, sem nenhum preconceito, que ela tem de ser, com honestidade, uma poética desmistificada.
Como rezam as estatísticas de hoje a Poesia é, de facto, o estilo literário que menos se lê. Portanto, há que a despir dos entraves que alguns “palavreiros especialistas” continuam a fomentar.
Olhe que, eu próprio, confesso por vezes me perco um pouco neste contra-senso e neste labirinto da arte contemporânea, fazendo suspeitar que a Poesia é uma arte menor. Ademais o que se passa com a Poesia também acontece de igual modo noutras manifestações do estro humano.
Na pragmática aqui enunciada não quero deixar de, frontalmente, protestar o meu desacordo quando diz, sub-repticiamente, que farei uso de “certas misturas”, o que nem Torga ousaria. Cá está, desculpe, mais um contra-senso às escâncaras. Visite este autor pacientemente e reflicta na imprecisão que utilizou. Eu habituei-me, frequentemente, a perguntar aos meus interlocutores: “em que filme estaria António Damásio quando ousou afirmar que Descartes errou?”. Sabe o que está a acontecer? De proscrito e cientificamente marginal, no terceiro quartel da centúria anterior, é no virar do nosso século reconhecido e incensado como herói de todos os Fóruns culturais.
Questão 3 – “O amigo é uma pessoa muito erudita, eu já sabia. Que o ostenta (sustenta?), também sabia” (o parentese é da minha responsabilidade).
Como não há duas sem três, tal como reza a tradição, não posso deixar passar esta constatação por si sublinhada. Olhe, meu amigo, por um lado fico-lhe reconhecido pela distinção em que me tem.
Tenho pautado o meu percurso académico por uma atitude humilde de valorização pessoal (não sonhando alto!) e sempre orientei o meu ministério pedagógico nesse sentido. E garanto-lhe que tenho tido o prazer de uma realização no mínimo satisfatória. Claro que não vergo nas minhas convicções, pois que, como sempre diz um conhecido pensador das lides intelectuais “nós humanos podemos chegar muito mais além do que a nossa imaginação alcança”. E eu, como deve calcular, também acredito nesta crença indestrutível fazendo dela uma autêntica profissão de fé.
Por outro lado, tenho a lamentar a sua afirmação de que eu uso de ostentação (se é isso o que queria dizer) para fazer crer na veracidade dos meus talentos… Creia-me que nunca, mas nunca, tive essa endémica tentação. Mas que há pessoas que usam e abusam deste vício, isso há! E se, por vezes, gosto de divulgar as minhas opiniões/criações trata-se tão só e apenas de paixão em partilhar e testemunhar um património que, longe de uma postura egoísta balofa, pode e deve contribuir para a valorização da Cultura comum. Acha que isto é ostentação? Por mim não o sinto nem o creio.
Concluindo, acho que se deve ter a coragem afirmativa de tentar, de acordo com as tendências circunstancialistas – não é neologismo (*)/04 – literárias deixar que a Poesia voe com as suas próprias asas, assumindo-se como perenes as prerrogativas aqui destacadas que por demais estão em curso na actualidade.
Convém entretanto recordar que, sendo nós herdeiros sem peias da cultura romanizada, não devemos menosprezar a lídima sentença que sempre tem servido de guião às mentes iluminadas e criativas: virtus in médium est!
Creia-me seu cordial e honesto amigo, o poeta
Frassino Machado
(*) NOTAS
ELUCIDATIVA ACTUAL DA POÉTICA LUSA
ACERCA DA METRIFICAÇÃO
01 – «Regra geral para metrificar»
“Para fazer a contagem silábica, recite os versos em VOZ ALTA, com naturali-dade, sem escandir. A escansão, ou seja, a pronúncia sílaba a sílaba das palavras de uma frase é artificial dentro da fala e, portanto, mascara sua conta-gem silábica fónica. Lembre-se: A escansão é inimiga da metrificação”.
(Dr. Prof. Adelino Pereira, mestre de Literatura Portuguesa)
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02 – Eduardo Lourenço, Tempo e Poesia, 1974
Eduardo Lourenço, Poesia e Metafísica, 200
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03 – METALINGUÍSTICA (técnica de comunicação)
É a função que ocorre quando o destaque é dado a uma expressão codificada. Numa situação em que um linguista/escritor define a linguagem corrente, observa-se que, para explicitar um termo de código, ele usou o próprio código, ou seja, definiu 'língua' usando a própria língua.
Neste contexto também ocorre metalinguagem quando o poeta, num texto qualquer, discursa sobre a criação poética.
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04 – “CIRCUNSTANCIALISMO” , doutrina universal, no mundo das Letras, mais em voga no nosso tempo.
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05 – Para que conste, anexo a este “Ensaio” dois poemas: um de Teixeira de Pascoaes e outro de Miguel Torga, muito elucidativos, esperando que obviamente os não critique.
www.frassinomachado.net
www.opcaopoetica.blogspot.com
http://facebook.com/atelierpoetico.frassino
https://facebook.com/pages/tertulia-poetica-ao-encontro-de-bocage/129017903900018
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II – CONTRIBUTO POÉTICO ANTOLÓGICO
01 – FERNANDO PESSOA
SINO DA MINHA ALDEIA
Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.
E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.
Por mais que me tanjas perto
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho,
Soas-me na alma distante.
A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.
Fernando Pessoa
In ANTOLOGIA PÓS-SIMBOLISTA
02 – JORGE DE SENA
NASCEU-TE UM FILHO
À Maria Isabel no nascimento
Do seu primeiro filho
Nasceu-te um filho. Não conhecerás,
Jamais, a extrema solidão da vida.
Se a não chegaste a conhecer, se a vida
Ta não mostrou – já não conhecerás
A dor terrível de a saber escondida
Até no puro amor. E esquecerás,
Se alguma vez adivinhaste a paz
Traiçoeira de estar só, a pressentida,
Leve e distante imagem que ilumina
Uma paisagem mais distante ainda.
Já nenhum astro te será fatal!
E quando a Sorte julgue que domina,
Ou mesmo a Morte, se a alegria finda –
Ri-te de ambas, que um filho é imortal.
Jorge de Sena
In VISÃO PERPÉTUA
03 – TEIXEIRA DE PASCOAES
À MINHA MUSA
Senhora da manhã vitoriosa
E também do crepúsculo vencido.
Ó senhora da noite misteriosa,
Por quem ando, nas trevas, confundido.
Perfil de luz! Imagem religiosa!
Ó dor e amor! Ó sol e luar dorido!
Corpo, que é alma escrava e dolorosa,
Alma, que é corpo livre e redimido.
Mulher perfeita em sonho e realidade.
Aparição Divina da Saudade...
Ó Eva, toda em flor e deslumbrada!
Casamento da lágrima e do riso;
O céu e a terra, o inferno e o paraíso,
Beijo rezado e oração beijada.
Teixeira de Pascoaes
In SENHORA DA NOITE
04 – MIGUEL TORGA
AR LIVRE
Ar livre que não respiro!
Ou são pela asfixia?
Miséria de cobardia
Que não arromba a janela
Da sala onde a fantasia
Estiola e fica amarela.
Ar livre, digo-vos eu!
Ou estamos nalgum museu
De manequins de cartão?
Abaixo! E ninguém se importe!
Antes o caos que a morte…
De par em par, pois então?!
Ar livre! Correntes de ar
Por toda a casa empestada!
(Vendavais na terra inteira,
A própria dor arejada,
- E nós nesta borralheira
De estufa calafetada!).
Ar livre! Que ninguém canta
Com a corda na garganta,
Tolhido da inspiração!
Ar livre, como se tem
Fora do ventre da mãe,
Desligado do cordão!
Ar livre, sem restrições!
Ou há pulmões,
Ou não há!
Fechem as outras riquezas,
Mas tenham fartas as mesas
Do AR que a vida nos dá!
Miguel Torga
In CÂNTICO DO HOMEM
05 – EUGÉNIO DE ANDRADE
DESPERTAR
É um pássaro é uma rosa,
É o mar que me acorda?
Pássaro ou rosa ou mar,
Tudo é ardor, tudo é amor.
Acordar é ser rosa na rosa,
Canto na ave, água no mar.
Eugénio de Andrade
In ANTOLOGIA BREVE
Nota: imensos são os testemunhos e os autores, mesmo clássicos, que podem justificar o articulado defendido neste Ensaio.
Frassino Machado