Ensaio sobre as relações afetivo-sexuais contemporâneas


O que toda mulher deseja saber (e todo homem deveria).
É tema atual de conversas entre amigas a dificuldade geral que encontramos de nos relacionar com o homem, tal qual ele tem se apresentado. As queixas são várias: eles dizem que ligarão e não o fazem; não retornam e-mails e/ou mensagens de texto; na ‘balada’ seguinte, depois de terem transado, chegam à indiferença de não cumprimentá-las!
Ouço também queixas do lado masculino em relação às mulheres: “hoje em dia são todas peguetes”; “está difícil encontrar uma garota que queira namorar”. Surpreendentemente esta é a queixa básica de ambos os sexos. Então, o que está acontecendo? Ambos querem encontrar a mesma coisa, se é que querem mesmo e não conseguem se oferecer ao outro naquilo que mais desejam ser e ter.
Já escrevi augures que vivemos um momento de mudanças profundas na forma de nos relacionar e é dificultado àqueles que se encontram no centro das mudanças – no olho do furacão – analisar e compreender o que está vigorando assim como é impossível identificar os ingredientes sendo triturados num liquidificador ligado. É-nos difícil saber até exatamente a cor da mistura resultante. Esta inquietação, entretanto, não foi suficiente para me impedir de pensar a respeito. Muito pelo contrário.
Creio que o fio de Ariadne que me conduziu à saída do labirinto foi a aparentemente ingênua pergunta: o que está acontecendo seria tão diferente? Poderíamos estar vivendo apenas a continuidade de algo há muito já identificado e compreendido por alguém e nada inédito como pensamos?
Um flash então capturou o meu olhar e fui a Freud, em seu trabalho A escolha do objeto amoroso que usei na minha sinopse Rapunzel era ruiva e o príncipe não era encantado. Nesse trabalho, inicia dizendo sobre duas condições que devem existir para que a mulher seja eleita pelo homem como aquela que receberá a dádiva dos seus interesses afetivos e sexuais. A primeira condição é que ela não seja disponível e esta condição já adentra na segunda – uma terceira pessoa (marido, namorado) deva ser prejudicada. Estas duas condições caracterizarão a mulher de modo a remeter o homem à primeira mulher da sua vida – a mãe.
Estes e outros aspectos foram identificados e compreendidos por ele a partir da análise de homens neuróticos, mas que podem ser, ressalta, igualmente encontrados em homens normais. São eles: a divisão entre amor e desejo sexual, vividos separadamente com objetos diferentes, o desejo sexual com a prostituta e o amor ‘puro’, idealizado, com a esposa, mãe dos seus filhos. A mulher também será atraente ao homem tanto mais ela correr perigos e suscitar nele a necessidade de salvá-la e a experiência do ciúme, sentir que está sendo roubado de algo que é seu por direito, esta, uma emoção muito poderosa.
Lembrei-me da fala de um amigo a respeito de como o homem está assustado com esta mulher liberada, que lutou por direitos iguais e parecem ter se esquecido de coisas que lhe eram características e próprias. As conquistas de trabalhar fora; a liberação sexual com o uso da pílula e, eu acrescento, com o número crescente de mulheres vivendo sozinhas e bem, refletindo o seu fortalecimento e o número galopante de divórcios, na sua maioria pedido pela mulher. Tudo isso sinaliza ao homem que a mulher precisa cada vez menos dele. (Ou não precisa mais nos mesmos moldes que antes).
Com a liberação sexual, a mulher se apropriando de seu corpo, do seu desejo, favoreceu que os polos afetivo e sexual se aproximassem. A mulher pode viver sua liberdade sexual e escolher ser mãe sozinha. Muitas mulheres são as maiores responsáveis pela renda doméstica – às vezes o maior salário e outras vezes o único da casa. Estes aspectos estariam favorecendo-a viver e ser vista na integridade de suas possibilidades. A mulher-mãe que era (ainda é) amada de maneira respeitosa e idealizada e que tolerava a sensaboria de uma vida sexual monótona existe cada vez menos e isso contribui para que sejam identificadas com o reverso da medalha – a prostituta.

(1) Entenda-se que esta divisão existia e existe dentro do homem e esta verdade psíquica é continuamente vivida desde épocas muito antigas. O desejo sexual sempre foi equacionado ao pecado e esta divisão é mais antiga do que se possa imaginar. Para ficarmos na era cristã, Maria Madalena era a prostituta que o filho homem de deus protegeu de ser apedrejada. Esta figura, a prostituta, se tornou mais popular com a forma humana, masculina, de deus. Antes dele, Maria, foi mãe virgem, o que comunica a necessidade de uma limpeza radical de emanações corpóreas na procriação.
 
(2) Na versão original Freud usou a palavra cortesã. Na tradução foi adotado prostituta, pois aquela estava em desuso.
 
A questão é muito ampla. Se dentro do casamento a mulher só podia ser dependente e submissa, pois a independência não combinava com o papel estabelecido por uma cultura há muito repetida e alimentada e que aparentemente dava segurança à mulher, essa dependência era mais necessária ao homem que assim parecia forte até para ele mesmo. Antes era o homem quem sustentava a família e fornecia as bases econômicas e sociais. A mulher contribuía na área social e desempenhava um papel fundamental na área afetiva. O papel do pai que castra, que impõe limites ao filho homem que ‘chega’ no núcleo familiar é de fundamental importância. No final do século XIX e na quase totalidade do XX, o pai exercia a sua função de castrador em excesso, ao contrário de hoje quando se sente falta deste freio dentro do núcleo familiar. O homem está descobrindo as delícias da relação afetiva com os filhos, alimenta-os, banha, troca fraldas, mas está se esquecendo de seu papel edificador.
Volto ao amigo que disse: As mulheres que querem ter os mesmos direitos...estão assustando o homem. Quando a mulher iniciou sua busca pela unificação de sua figura, não imaginava que a reforma provocaria uma confusão tão alargada e num âmbito tão profundo, mexendo em imagens arquetípicas.
Então, o que acontece hoje?
A tal ‘balada’ parece ser o programa padrão. Não ouço os jovens dizerem que foram ao cinema ou ao teatro. Ouço jovens mulheres dizerem: fui à balada, mas não saí à caça. Entendo que gostariam de serem elas as caçadas. E as mulheres nas duas posições, tanto no caçar como no se oferecer para serem abatidas, assustam o homem. E eles que dizem que as mulheres que vão à balada são peguetes e que querem uma namorada continuam a ir às tais baladas atraindo para lá as mulheres que tentam encontrar o seu namorado lá.  Está difícil mesmo de se entenderem.
Só poderemos atingir um esclarecimento maior se olharmos a questão na sua profundidade. A quais direitos o meu amigo, o homem, se refere? E quais são os direitos que a mulher deseja verdadeiramente ter igual a ele?
Viver com liberdade e apropriação seus desejos sexuais. Ter esta liberdade internalizada sem conflitos e viver a sua faceta, sua natureza sexual, de fêmea, com liberdade, aceitação, sem falsos moralismos tal qual culturalmente se equaciona há muito tempo à figura da prostituta – a mulher de vida fácil como diziam os antigos sem considerar o quão difícil deva ser aquela vida. Todas as outras requisições: salários iguais, ser aceita em cargos antes destinados com exclusividade ao homem, apesar de importantes são secundários. Foram fundamentais nas décadas de 60, 70, 80. A desvalorização e as injustiças eram muitas. A mulher precisava incrementar a sua autoestima. Superar pré-conceitos que existiam (ainda existem – até hoje ouço uma mulher comentar diante de qualquer barbeiragem de outra motorista: só podia ser mulher!). Resgatar, ou melhor, conquistar a liberdade de viver de forma ampla a sua natureza reprimida e escondida sob a burca do medo. E se, no início destas conquistas, ela precisava se vestir de forma o mais parecida possível com o homem, ela está encontrando cada vez mais espaço para a sua feminilidade no seu dia a dia de chefe de família e dona de empresa.
Usarei o modelo da balada que é o programa em voga para refletir mais um pouco sobre o encontro entre os sexos.
Há alguns anos, eu diria décadas de 70 e 80 do século XX, dizia-se badalar para o “comparecer a reuniões sociais, a festas, de maneira aleatória, exibindo-se, mostrando-se”. (Aurélio) Está implícita, no badalar, a ideia de exibir-se tal qual um pavão a fim de conquistar um parceiro (a) para a cópula, casamento e procriação. O moralismo desta época ainda não diluído pelo movimento feminista em seu início (Sim, início. Algo de âmbito tão amplo e profundo leva demasiado tempo para se estabelecer nas bases da vida social) fazia com que o desejo de cópula permanecesse oculto e com a colaboração da repressão, inconsciente.
No final do século algumas modificações aconteceram principalmente com o surgimento dos DJs. A balada que vem de “canção para dançar, de estrutura variável” (Aurélio) passou a ser o programa padrão dos jovens e hoje em dia de adultos jovens ou nem tanto. Sempre, na natureza e entre os índios, o movimentar-se ritmicamente e a música acompanhou o momento da conquista. Tanto o badalar como o baladar foram e são programas instrumentais para a busca do parceiro (sexual). A dificuldade atual parece estar no contrair vínculos afetivos. Se envolver com o outro amorosamente, de forma a formar um par e que esta relação implique que outras se tornarão menos importantes ou importantes num outro nível, que haverá perdas a serem vividas e toleradas por ambos.
As pessoas ainda procuram os seus parceiros para dar certo. E se antes dar certo era até que a morte os separe, com muito custo tem se tornado que seja infinito enquanto dure. E ainda pode-se questionar se o dar certo não pode ser complementado por por um tempo. As pessoas mudam, crescem e dificilmente seguem juntas na mesma direção. Creio que isso, o até que a morte os separe, o conto de fadas, é o que a maioria das pessoas procura. Mas isso já é assunto para outro ensaio. O que acontece hoje é que as pessoas já desistem do encontro nas preliminares do conhecimento mútuo. Isto não significa que elas rapidamente reconheçam que não é aquela pessoa que gostariam de ter ao seu lado (mesmo porque eles não o sabem por que se estão se defendendo de sofrer não amadurecem no autoconhecimento). Eles, mais os homens, estão se defendendo de a mulher ganhar importância e provocar alguma decepção, algum sofrimento na relação, pois não existe envolvimento amoroso que não traga algum. Todo envolvimento gera sofrimento, mas vivermos uma frustração causada por aquele que amamos é, sem dúvida alguma, bem difícil de viver. E ainda não sabem como se relacionar com duas mulheres em uma só.
Neste novo modelo de par estarão incluídas a constituição de um grupo familiar e a vivência da sexualidade com liberdade e aceitação por parte do casal. Um se procurar constante em si mesmo para ficar com o outro por inteiro. Compreender que a humanidade está presente nos dois, maternidade ou paternidade não subtrairá os desejos nem as fantasias e nem tão pouco o envelhecer o fará.
Para encerrar temporariamente este trabalho farei uso das palavras de Daniel Piza para definir ensaio. Ele “tem o caráter de ser uma tentativa, a articulação de um entendimento que deve sempre rever a si mesmo, a aproximação ciente de que o movimento é vital e não final, a recusa ao dogma da perfeição e ao mesmo tempo a crença de que sempre há o que melhorar”.
Neste ensaio busquei ser imparcial, não defender uma parte e acusar a outra. Procurei apenas ordenar observações que faço na vida, pessoal e profissional. Devo reconhecer que o assunto é deveras delicado o que torna este ensaio corajoso, mas muito necessário.
Voltarei a ele com o compromisso de revê-lo, rever-me, e acrescentar as mudanças que a vida tece e certamente tecerá.
 


 
  
Rosana de Almeida
Enviado por Rosana de Almeida em 09/09/2012
Reeditado em 09/09/2012
Código do texto: T3873544
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