Marcas do tempo
MARCAS DO TEMPO
Na história pessoal de cada artista freqüentemente existe um momento em que o acaso, esse grande inconstante, joga dados com a sorte, esta vence e o mundo o reconhece, porém tantos e tantos outros escorrem entre seus dedos, nas águas escuras do tempo. Setenta e cinco anos atrás essa oportunidade surgiu para o artista Fritz Alt, com a execução de uma escultura em bronze homenageando Dona Francisca, busto que seria colocado no Jardim Lauro Müller e posteriormente transferido para sua atual localização na alameda Brüstlein. Era 9 de março de 1926, aniversário da cidade e aquela que seria uma de suas obras mais perfeitas sequer foi citada nos jornais da época, passando desapercebida seja pelo ostracismo então relegado aos “neudeutsche” (alemães recém-imigrados), seja pela modernidade de sua concepção, distante da grandiosidade então expressa nos bustos acadêmicos. Por se tratar de escultura historicista, Fritz Alt deve ter recorrido à iconografia disponível, a pintura de Dona Francisca empunhando um leque, obra provável de Joseph Karl Stieler (1781-1858), um dos mais importantes retratistas do século XIX, ou uma gravura de meio corpo, possivelmente obra de seu sobrinho Friedrich Dürck (1809-1884), pintor e litógrafo, que retratou a maior parte da Casa de Bragança. Fritz Alt obedecendo a cânones clássicos da Renascença respira o sutil humanismo de Francesco da Laurana (1430-1500) na síntese estilística, em que os planos estendem-se continuamente, introduzindo um ritmo plástico, com as linhas apenas contornando a figura. Afasta-se do realismo como Laurana o fez, demarcando a cabeleira dividida e o cabelo preso em trança formando o coque bem demarcado, na lateral aproximando-se da síntese do Art Dèco. Na realidade esse aspecto limpo das superfícies é uma herança germânica do início da escultura moderna, derivada de Adolf Von Hildebrand onde os rasgos particulares da personalidade são sacrificados ao equilíbrio da linha e mas ainda, diretamente de Ignatius Taschner (1871-1913) que em oposição a uma tendência acadêmica do mestre, imprime em suas esculturas um caráter racial popular, em que a expressão “maneira artística da fisionomia” tem seu máximo sentido. Taschner aproxima a superfície da estrutura anatômica subjacente, e a meu ver Fritz Alt de forma consciente ou não, persegue esse objetivo. A escultura de Dona Francisca remete em linhas gerais à imagem consagrada, nariz longo e afilado, olhos amendoados, lábios finos, rosto e pescoço alongados, e se no retrato com o leque o semblante é mais arredondado, intui-se um adoçamento do pintor, que o repete em personagens diversos. A versão deste busto nos relembra o “American Gothic”, excepcional pintura de Grant Wood, que sintetiza a austeridade do colono americano, da mesma maneira que o rosto de Dona Francisca relembra, na sua simplicidade, o imigrante que colonizou a cidade. Com sua exigência íntima de maestria técnica, Fritz Alt não poderia ter deixado o bronze em seu estado original, para o acabamento perfeito sendo necessários o preenchimento das canaletas da cera pedida, o trabalho de lima e buril nas superfícies, e o envelhecimento inicial do bronze. Tratando-se de escultura para o ar livre, o bronze formado pela liga de latão e estanho sofre corrosão natural da atmosfera pela passagem do tempo, conhecido como pátina.
O passado é por definição um dado que ninguém pode modificar, e deixa sobre os artefatos um registro indelével, a marca de ação do tempo pelo fluir da própria história. Para os historiadores e peritos em arte não existe maior sinal de autenticidade de uma obra que essa marca do tempo, a pátina. No bronze, em que a cor varia de acordo com a quantidade de estanho, os produtos da oxidação formam sais de cobre instáveis num primeiro momento, constituídos por cuprita, malaquita e azurita, formadoras da pátina nobre do bronze. Uma vez estabilizada essa camada oxidada, o bronze está protegido por séculos, criou-se uma pele sobre a escultura. Fritz Alt teve essa preocupação no acabamento, dando-lhe aquilo que ele chamava uma “bonita pátina verde”, da qual deixou inclusive fórmula, testada com êxito pela Escola Técnica Tupy.
Esculturas expostas ao ar livre recebem habitualmente esse acabamento final com colorações variadas que as preparam para a ação atmosférica, ao mesmo tempo possibilitando a leitura da superfície, os jogos sutis entre as formas, e o movimento de luz e sombra no modelado. Deixar o bronze polido no estado em que é finalizado é algo impensável, exceto em casos extraordinários como o “Pássaro no espaço” de Constantin Brancusi, fantástica síntese abstrata na qual o corpo do pássaro transforma-se em forma pura, alçando-se em vôo vertical aos céus. Esse também é o caso do “Disco ao Sol”, de Arnaldo Pomodoro, cujo interior de sulcos polidos criam uma segunda estrutura de luz, reverberando no metal espelhado.
A despeito do que expusemos o histórico bronze de Dona Francisca, com sua pátina original concebida por Fritz Alt e a estratificação de camadas naturais resultantes do amaciamento da poeira e oxidação do tempo passado, sofreu um processo de “limpeza”, polido com palha de aço, removendo a pátina original e deixando-o reluzente tal como um objeto kitsch, bem a gosto de uma sociedade emergente que valoriza o brilho falso dos dourados. Ação impensada de funcionários da Prefeitura, que no seu zelo pensaram embelezar um ponto turístico como a Alameda Brüstlein, falta de orientação adequada pela Fundação Cultural a quem deveria caber a última palavra sobre patrimônio artístico, incompetência de uma assessoria adequada mais preocupada com o ouropel dos festivais, o fato é que aquela marca da passagem do tempo sobre uma obra mestra ficou reduzida ao brilho passageiro de um bibelô. Como Horácio em sua Ars Poética digo, se queres que eu chore, começa tu também a chorar.
Walter de Queiroz Guerreiro
Crítico de Arte (ABCA/AICA)