O tic-tac do relógio na interarte
Na arte, tudo convive com tudo. É como se um elemento artístico não excluísse outro e as duas ou três matérias artísticas se configurassem no Fiat Criador. Nessa perspectiva, este ensaio aproxima duas manifestações artísticas de diferentes linguagens, sendo uma tela de Salvador Dalí e uma poesia de Carlos Drummond de Andrade, a fim de buscar sentidos profundos a partir de pontos de contato entre essas obras. Não se pretende, todavia, apresentar uma interpretação única e inquestionável sobre as obras, mas se objetiva percorrer uma possibilidade de leitura a partir da abertura significativa de algumas imagens que nos revolve e nos dá o alhures.
O quadro surrealista de Salvador Dalí “A persistência da memória” (Os relógios ou As horas derretidas) datado de 1931, configura a arte como representação dos sonhos, devaneios e desfigurativização da imagem, num dado período histórico-social, isto é, teria a arte, sedimentada nos manifestos de Breton, encontrado a imagem livre das intromissões do eu consciente? No fundo da tela a óleo, o céu azul-escuro revela tons de noite e escuridão que chegam até próximo do leitor observador, contrastando com a cor quente da tarde, num tom amarelo-claro que conota luz, dia, todavia essa claridade, na perspectiva da imagem, está um pouco mais à frente. É como se dia e noite coexistissem. Essa alusão ao tempo, no fundo do quadro, por mais insólita que possa parecer, ainda permite a surpresa ao perceber que mesmo através das águas claras, não há presença de vegetação natural, apenas areias e pedras desérticas constroem duvidosa harmonia.
Porém, as imagens que se posicionam mais à frente na tela provocam o leitor, pois há um objeto grande semelhante a uma caixa de madeira e esse objeto abriga um pequeno tronco de vegetação morta. Em um galho do tronco há um relógio (modelo de parede, mas não moderno, devido à moldura). O relógio está dobrado e escorre do tronco. À semelhança do primeiro relógio dobrado feito um pedaço de tecido de seda, que, embora insista em permanecer no galho, parece avisar que se pode escorrer a qualquer momento, existe um outro relógio escorrendo, todavia esse segundo está diretamente depositado sobre a enorme caixa de madeira avermelhada, constituindo imagem que tira o leitor de sua zona de conforto ao ver que as horas derretidas estão direcionadas para baixo – lugar escuro.
Outra intrigante imagem do quadro de Dalí se encontra próxima da caixa de madeira, num espaço vago, preenchido apenas por cores escuras que nos remetem ao nada e sob a escuridão. Trata-se de uma tinta clara derramada em grande espessura. E sobre a tinta que surge do espaço negro não se constitui forma aparente. Essa tinta derramada, às vezes confundida com um pedaço de tecido, se desconfigura. Sobre ela está o terceiro relógio gelatinoso. Caso o leitor atente para observar a pintura por outro prisma, o lateral, poderá, supostamente, enxergar parte de um rosto de pele alva com enormes cílios cerrando um enorme olho fechado. Seria um diálogo com a consciência humana? Ainda observando a tela sob a curvatura de 45 graus, o espaço onde se constituiriam a pálpebra do olho gigante também sugere estranheza por apresentar dois pequenos olhos.
A simultaneidade de imagens surreais no quadro de Dalí sugere um leve movimento, pois não são imagens estáticas, isto é, passa-se a sensação de que os três relógios, à medida que escorrem, perderão parte de sua matéria e se reconstituirão na mesma velocidade, pois a hora é invenção do homem e simboliza um instante de tornar tudo presente. Essa deflagração corrobora o inexplicável: a arte é pura aparência e o artista compreende o mundo, o tempo e as horas de outra maneira.
Outro artista, em outra linguagem – a poesia – revela algumas sensações provocadas pelo mundo em desenvolvimento e tecnológico: Carlos Drummond de Andrade, no poema “O Relógio” elucida a hora na vida cotidiana.
O ponto de contato entre as duas artes é temático, pois se no quadro de Dalí as imagens próximas e reincidentes são os desconfigurados relógios gelatinosos, na poesia drummondiana esse mesmo elemento, em forma de signo e significante – relógio – consiste na coluna dorsal da obra.
A poesia intitulada “O Relógio” traz a voz poética, na primeira estrofe, apresentando os relógios como elementos distintos entre si. Pondera, nesse caso, é claro, a forma física, mas também o significado em cada instância da vida social e emocional. Na segunda estrofe, através de um processo metonímico, “relógio” recebe referência de “hora”:
“A hora no bolso do colete é furtiva
a hora na parede da sala é calma
a hora na incidência da luz é silenciosa”
Cada hora (ou relógio) representa um momento estético através da criação da imagem associada ao dia-a-dia do cidadão. Essas imagens possuem um desdobramento que engendram efeitos de sentido essencialmente relacionado ao tempo e este marcado pelo relógio como materialização daquele, culminando numa essência rítmica.
“A hora no bolso...” remete a um sujeito que toma conhecimento do horário e o faz de maneira discreta, visto que não se compartilha esse objeto com outros indivíduos. O relógio na parede sugere tranquilidade lânguida e a solidão que lhe é peculiar; já a hora determinada pela luz do dia é silenciosa, quase imperceptível. Todavia, mesmo com três “horas-relógios” tão diversas, elas se convergem no fato de serem presentes e incisivas na vida de qualquer cidadão de qualquer classe social.
Em seguida, a voz poética realça uma hora que entoará os demais versos da poesia: “...a hora no relógio da Matriz é grave”. Imponente, o relógio da Matriz é sempre dotado de confiabilidade para ajuste e destaca um som que não pode ser ignorado. Talvez seja esse um dos motivos de a hora da Matriz se comparada, pelo “eu lírico”, à consciência. Outra possibilidade é a de associar à posse do som da Matriz, pois, de maneira indiscriminada, essas batidas pertencem a todos os indivíduos, sendo eclesiásticos ou banqueiros, professores ou poetas.
Devido ao costume instaurado, na vida social urbana, passa ser impossível dormir e acordar sem as batidas das horas da Matriz. Não ouvir o som das horas significa, de acordo com o eu poético, não existir, pois o som tornou-se imanente àquele que vive e tem consciência do seu cotidiano, de seu tempo.
Na penúltima estrofe drummondiana, a hora agora é bem mais do que segundos e minutos marcados por um aparelho alardeador, trata-se da hora fixada no ar, na alma. Seriam os anos vividos? As experiências perpassando tempo a fim de demarcar a vida que se fora? O som da hora é para ser ouvido no “...longilonge/do tempo da vida” e isso sugere o passar dos anos e a chegada à velhice. O relógio realmente marca as horas? Os anos se foram e o relógio trafega no passado e o futuro, realçando um efeito de presentificação, de acordo com Octávio Paz. O tempo, é então, lembrança de anos e amores, desamores; lutas e derrotas “...no pulso/ este relógio vai comigo” e faz parte também do momento atual da voz poética. A hora, nesse verso, não se refere à hora no relógio do braço, alude, todavia, ao pulsar dos segundos nas veias, ao ritmo do tempo vivido bem como as marcas que ficaram como herança.
Nota-se, portanto, que a figura do relógio é um núcleo de convergência temática tanto no quadro de Dalí, quanto na poesia de Drummond. A partir dessa relação, percebe-se que o relógio simboliza, na tela, a transitoriedade, a brevidade da vida, o tempo como organizador, todavia tempo sem sentido ao desfigurativizar o aparelho, apresentando-o a ponto de se derreter. Na poesia, os ponteiros do relógio – tempo -, metaforicamente, possuem especificidade da hora (ritmo lento, fugacidade, capacidade de repetição), possibilidade de dar sentido e marcar a vida do eu lírico, constituindo efeito otimista.
Estruturalmente, consideram-se relevantes algumas coincidências nas duas obras, sendo que o signo, isto é, a palavra relógio, aparece três vezes na poesia drummondiana e corresponde à mesma quantidade de figura de relógio na tela de Dalí. Enquanto as imagens do quadro nos são apresentadas de maneira disforme, os versos também se apresentam destoantes no que se referem à rima e métrica.
Se Dalí evidencia a falta de significação da passagem linear do tempo e o mundo, como universo surreal, não precisa de interferência do tempo, em Drummond, de maneira contrastante, o relógio pode simbolizar a permanência da memória no decorrer da vida. Enquanto na pintura, o tempo revela sentimento de decomposição da vida e dissolução do mesmo, no poema o tempo é norteador das experiências vividas pela voz poética. A imagem do céu, na tela, recorda o distante e coincide com o último verso da segunda estrofe ao atribuir à luz do dia a passagem do tempo e das horas.
A concepção estética das duas obras apreciadas nos remete à convergência sinestésica, por fazer uso dos sentidos (sons, cores, imagens) e convida à introspecção que promove uma verdadeira katharsi, corroborando a ideia de que a arte dialoga com o mundo.