ECCE HOMO

Nota: Ecce Homo é uma das obras mais controversas do filósofo alemão Nietzsche, que a elaborou quase no fim da sua vida, já em meio da doença que o levaria ao túmulo.

A intenção de Nietzsche ao escrever Ecce Homo, segundo ele mesmo confessou no preâmbulo da primeira edição era de não ser confundido ou mal compreendido em relação às suas obras. Ele não queria "seguidores", ou seja, temia fazer discípulos, servir de modelos para outros filósofos ou escritores. Dizia-se aprendiz do filósofo Dionísio, e que fazia mais gosto que sua obra fosse tomada mais como sátira do que como doutrina. Infelizmente não foi isso que aconteceu. Os nazistas fizeram dele um dos seus principais inspiradores.


A BÍBLIA COMO EXEMPLO
 
Diz a Bíblia que o povo de Israel, após ter saído do Egito, onde viveu escravo por cerca de quatrocentos anos, vagou quarenta anos no deserto. E depois, liderados por Josué, invadiu as terras conhecidas como Canaã, atual Palestina, onde ocupou diversas localidades, nas quais assentou suas doze tribos, conquistando várias cidades e fundando outras.
A história da conquista das terras palestinas pelos israelitas é uma saga que retrata tanto as melhores quanto as piores qualidades que os seres humanos já desenvolveram no seu longo processo de desenvolvimento de uma personalidade. Nessa saga encontraremos relatos do mais puro barbarismo, como aquele em que os vencidos são privados de parte de seus membros, ou então os costumeiros genocídios, em que todos os habitantes de uma cidade, inclusive mulheres e crianças são passados a fio de espada.Isso é coisa comum na história, inclusive a moderna, e não causa espécie encontrar essa espécie de relato na Bíblia. O que estranha é que muita gente acredite que tais ações tenham sido inspiradas pelo próprio Deus.   
Nessas e em outras práticas, os israelitas não se mostraram mais civilizados do que os povos idólatras que Jeová mandou exterminar. Aliás, parece que a única justificativa para esses genocídios era a questão da adoração: os israelitas deviam eliminar da Palestina todos aqueles que não adorassem o seu Deus. Os cristãos também já fizeram isso e alguns muçulmanos não ficaram atrás. Até hoje estão lutando numa "guerra santa".  
A Bíblia, em suas crônicas da história de Israel, é uma construção literária com claros propósitos ideológicos. Dificilmente se poderia aceitá-la hoje como registros de fatos históricos, ocorridos tal qual se encontra ali. Sabe-se hoje que a maioria dos textos contidos na Torá, os cinco livros supostamente escritos por Moisés ( Gênesis, Êxodo, Levítico,Números e Deuteronômio), são, na verdade composições literárias que só foram escritas muito tempo depois da época de Moisés, provavelmente no século VII, época do rei Josias, certamente o rei mais poderoso que os israelitas tiveram.
Na sua época Israel chegou ao auge como estado, reunindo em sua corte, em Jerusalém, uma plêiade de sacerdotes e rabinos, os quais deram forma definitiva à religião de Jeová e desenvolveram uma vasta literatura heróica, com o propósito de criar uma história que desse a Israel uma justificativa para suas reivindicações territoriais.(1)
Isso não quer dizer que os patriarcas que deram origem ao povo de Israel não tenham existido, como sugerem alguns historiadores, e que os grandes heróis bíblicos como Moisés, Josué, Gedeão, Sansão etc, são figuras mitológicas criadas pelos imaginativos cronistas bíblicos da corte do Rei Josias para emular as virtudes do povo israelita, como também é sugerido por esses historiadores. 
É bem possível que tenham existido sim, embora suas figuras tenham sido romanceadas pelos cronistas para fornecer ao povo de Israel a sua base espiritual, como de resto é feito em todas as literaturas de cunho heróico, em todas as partes do mundo. Afinal de contas é decepcionante descobrir por trás do maior herói espanhol, o romântico e mítico El Cid, por exemplo, um soldado mercenário que alugava sua espada pelo melhor preço, ou por trás da figura de Tiradentes um pobre coitado idealista que acabou sendo condenado à forca porque era o mais insignificante dos conspiradores da Inconfidência Mineira. Precisamos de heróis, quer sejam eles figuras de carne e osso ou meras ficções literárias, arquitetadas pela imaginação fértil de um cronista.

 
OS JUÍZES DE ISRAEL   
 
Sobre o mesmo prisma simbólico podemos colocar os chamados Juízes de Israel. Esses Juízes foram aqueles que, antes de Israel torna-se uma nação unificada sobre o governo de uma casa real ( a de Saul primeiro e depois a de Davi), se tornaram os líderes do povo israelita, principalmente nos momentos em que os povos vizinhos atacavam Israel. Eram homens escolhidos nas tribos, supostamente pelo próprio Jeová, para livrar Israel dos perigos e reconduzi-los ao bom caminho, como tal considerada a adoração ao único e verdadeiro Deus.
Mas se formos fazer um estudo mais profundo veremos que tais personagens, na verdade, constitui um arsenal arquetípico das virtudes que os líderes de Israel queriam incutir no espírito do povo. Não é difícil reconhecer em Otoniel a coragem. Este foi o Juíz que livrou os israelitas do jugo de um povo mesopotâmeo, provavelmente os babilônios, antecessores dos assírios. Logo após temos o Juíz Aod, no qual reconhecemos a grande astúcia com que atuou, matando ardilosamente o rei dos moabitas, o gordo Eglon, e libertando Israel dos seu domínio. Também temos a profetiza Débora e Barac, símbolos da fidelidade a Deus, qualidade essa que lhes deu a força e a competência necessária para derrotar Jabin, o tirânico rei de Canaã. Logo depois temos Jefté, curioso personagem que aliou a valentia à coragem, para derrotar os amonitas e libertar Israel do seu jugo. Mas esse Jefté, a exemplo do próprio povo de Israel, também tinha seus vícios de personalidade e acabou cometendo um terrível erro, pelo qual sofreu o mais horrendo castigo que um homem pode sofrer: o ter que imolar a própria filha por conta de uma promessa imprudente que fez. Aliás, nas crônicas bíblicas há uma fartura imensa de exemplos de castigos sofridos por Israel por conta de suas imprudências e recaídas na idolatria, bem como pela infidelidade que geralmente os israelitas cometiam na complicada relação que eles mantinham com seu austero e iracundo Deus. Da mesma forma o personagem Sansão, arquétipo da força e da fé, era também o símbolo da paixão e do desejo. Sua paixão por uma mulher foi mais forte do que a sua fidelidade á própria raça, e isso o perdeu, como amiúde acontecia ao próprio povo de Israel, acusado pelos cronistas bíblicos várias vezes de abandonar as crenças e os costumes dos ancestrais em proveito de costumes alienígenas e prazeres sensuais.
Assim, muito mais que figuras históricas, os Juízes de Istrael, tais como os heróis da Ilíada e da Odisséia, ou os personagens dos grandes poemas épicos dos povos da Índia( O Ramayana, o Mahabarata e a Baghavad Guita) talvez sejam, na verdade, arquétipos criados por uma literatura cujo objetivo era a criação de um espírito nacional.
Isso não quer dizer que não tenham existido. Afinal, em sã consciência, não passa pela cabeça de ninguém negar a realidade da existência de um Tiradentes, um Daniel Boone, um Rodrigo de Bivar, um William Wallace, um Isaac Newton, etc. O que eram e fizeram é uma coisa; o que dizem que eram e fizeram é outra coisa.


ECCE HOMO

Emerson disse que a História não existe, pois ela na verdade, é pura Biografia.E Napoleão, ao ler o piloto da sua própria biografia, escrita por um cronista da sua corte, teria dito: “que bom se tudo isso fosse verdade”.

Bom. Talvez não importe muito saber se os nossos heróis são mesmo figuras históricas ou simples criações literárias, urdidas apenas para dar ao povo que os cultiva um alicerce espiritual. Basta saber que se os conseguimos imaginar, então eles são reais. A mente humana não opera no vazio. Tudo que ela consegue imaginar já existiu, existe ou poderá existir um dia. Nos anos cinquenta Flash Gordon era uma ficção. Ha poucos dias atrás morreu o último dos conquistadores da lua. Isso nos mostra que não existe ficção, mas apenas imaginação antecipatória.  
Dito isso, saúdo os sábios de Israel por esse magnífico exercício de modelagem que é o Livro dos Juízes. Quer seja ele produto da iimaginação literária dos rabinos da corte do Rei Josias ou verdadeira crônica histórica, ele é o reflexo do ser humano com seus vícios e virtudes. Ecce Homo.

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(1) Israel Finkermam e Neil Asher- A Bíblia Não Tinha Razão- Ed. Girafa, 2001. 

      

 
 
 
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 31/08/2012
Reeditado em 02/09/2012
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