PURPURINA.
Engraçada essa coisa chamada de vida.
A gente eclode de um gozo, muitas vezes esperado, outras vezes já aguado, tardio, cheio de rugas e descaminhos. Mas sempre será um gozo.
A gente começa a escalar pelas rebarbas, teimando por não fazer água no meio do show, por não errar o tom, não pisar em falso.
Vamos nos levando, buscando o que não sabemos, e certamente nunca saberemos de fato.
Por vezes ficamos encalhados na nossa própria alma, num breu que parece teimar em nunca mais ir embora.
Isso dá medo, como dá.
Por outras vezes nos vaiamos com todas garras dos pulmões, torcendo para que tudo fique estátua, não é mesmo?
Lembro das tantas vezes em que me vi largando tudo atrás e nunca mais querendo sentir de novo aquele cheiro, aquele gosto, aquela dor.
Aquela cor, até.
Queria fugir de mim mesmo, como fui otário nessas horas. E como continuo teimando em continuar sendo, sabe lá até quando.
Mas a covardia vem de fábrica, quando a coisa aperta o rabo se encolhe agarrado aonde der e cabisbaixamos a nossa valentia.
Todo aquele furor que se dizia rei, se dizia aço, era pura purpurina.
Só dizia, mas não passava de pura azia, pura falácia oca e senzalada nas suas próprias aflições.
Os cabelos vão algodoando, o corpo começa a ranger suas dobradiças, o sangue que outrora corria, hoje o máximo que faz é tartarugar. Pobre sangue.Até ele já nasce coagulado e com data vencida.
A nossa vida padece de empurrão para sair do mofo, não temos forças nem pra desistir de vez. Estamos mortos. Mortos como sempre fomos de fato.
Tudo fica assim nas eternidades da indecisão, nas coxas cariadas da dúvida, nos cuspes encardidos malhados em suor bandido e seco.
Parece que tudo ficará estancado até o sempre parar de rir, pegar suas trouxe se mandar de vez.
Mas não.
Quando já não tínhamos mais nada a pedir, mais nada a negociar, mais nada a se olhar no espelho, a coisa acontece.
Sei lá de onde vem, mas aquele corpo frio e inerte, só esperando jogar terra sobre o seu próprio caixão, acorda. Acorda de vez, de uma vez só.
E sai dessa frieira maldita e recomeça o seu engatinhar de milênios atrás.
Volta a mamar, seus pelos caem e no lugar deles brota um chorinho de bebê recém-parido, louco só por um bico de peito e nada mais.
Os abutres que faziam a festa se tocam e se mandam de vez.
Aquele encardido todo se alforria, aquele gosto enferrujado na boca se despe de vez e também segue seus chocalhos de fé.
Todos eles, um a um.
Então, todo aquele asco rasgado, aqueles beijos tão implorados, aquelas maçanetas rangendo, tudo isso some, some mesmo.
Então, o mundo se encolherá numa gota multifacetada que chamamos de destino, ou qualquer coisa por aí.
E aí nós, por certo, poderemos chorar.
Porque tudo que tinha a ruir já esvaiu nos ralos desanuviados de uma linda e perfumada felicidade.
Então nascemos de novo.
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