EXISTENCIALISMO Por Artur POLÓNIO em http://ocanto.esenviseu.net/apoio/existencialismo.htm
Existencialismo ou filosofia da existência? A respeito do existencialismo o consenso não é grande. Entre os historiadores da filosofia, é relativamente consensual ter sido Kierkegaard o primeiro existencialista. Já não é consensual, entre os historiadores da filosofia, que Kierkegaard tenha sido um filósofo. Kierkegaard decerto não se via a si mesmo como filósofo. Por outro lado, Sartre, Merleau-Ponty, Jaspers, Heidegger e Marcel apresentam-se como tal.
Para quem quer que se ocupe do existencialismo, as dificuldades ainda só agora começaram. Jaspers e Heidegger nunca aceitaram a designação de existencialistas — tendo ambos, inclusivamente, atacado o existencialismo como uma atitude contrária à filosofia da existência. Heidegger nem sequer aceitaria a designação de filósofo da existência: se acontece ocupar-se da existência, é apenas porque pensa que é pela existência que podemos alcançar o ser. Já Sartre e Merleau-Ponty, por sua vez, nunca recusaram o título de existencialistas — ao passo que Marcel só parece aceitá-lo em determinadas condições.
O existencialismo é um ateísmo? Quando se pensa em existencialismo, o primeiro nome que geralmente ocorre é o de Sartre — que é, manifestamente, ateu. Mas Kierkegaard considerava-se um pensador religioso — como religiosos são, também, Jaspers e Marcel. E Heidegger parece difícil de situar neste quadro.
O existencialismo é um humanismo? Enquanto Sartre declara que o existencialismo é um humanismo, Heidegger manifesta-se abertamente contra a ideia de humanismo. Jaspers e Marcel não recusariam a ideia de humanismo — mas talvez não lhe dessem o mesmo sentido. E Kierkegaard não é, manifestamente, um humanista.
Afinal, o que é o existencialismo? O termo existencialismo não refere propriamente uma teoria, nem mesmo um conjunto de doutrinas a que poderíamos dar o nome comum de filosofia da existência.
O existencialismo é sobretudo, na expressão de Jean Wahl, uma «atmosfera», um «clima que é possível sentir». E o que é possível sentir, no existencialismo, é essencialmente uma inquietação perante as situações com que a vida nos confronta.
Em vez de um conjunto de teses dedutivamente relacionadas entre si, o existencialismo é percorrido por alguns temas: o indivíduo, a experiência da decisão, o desamparo, a solidão, a angústia. Na ausência de uma compreensão racional do universo, a vida humana encontra-se permanentemente no limiar do absurdo. Daí que os pensadores existencialistas adoptem uma atitude emocional perante a vida, um sentimento de consternação face ao carácter contingente da existência humana.
O EXISTENCIALISMO DE SARTRE. É consensual que foi a perspectiva sartriana que mais influenciou Vergílio Ferreira. Desse ponto de vista, do existencialismo de Sartre é possível destacar destacar algumas teses e conceitos fundamentais:
1. Deus não existe. A tese da morte de Deus foi o principal legado de Nietzsche ao existencialismo de Sartre: os homens criaram Deus à sua imagem e semelhança — mas trata-se de uma ficção que deve ceder perante a afirmação dos impulsos vitais. Se Deus não existe, então tudo é permitido. Significa isto que a vida não tem um sentido dado à partida: compete-nos a nós — a cada um de nós — criá-lo. A vida não é o plano de uma mente transcendente, que cada um de nós seria suposto cumprir: a vida é o que fizermos dela.
2. «No homem, a existência precede a essência». Se não há um deus que possa ter concebido a essência do Homem, então não há nada a que possamos chamar natureza humana. Se não há Deus, não há um plano prévio que estejamos destinados a cumprir.
Porque fazemos as coisas a partir de conceitos, dizemos que as coisas têm primeiro uma essência — o conceito, o plano — e só depois a existência. Por isso somos conduzidos à ilusão de um deus criador, um deus à nossa imagem e semelhança — um deus demasiado humano, na perspectiva de Nietzsche. O homem começa por existir, e só à medida que vai existindo é que se vai fazendo a si mesmo. Primeiro é-se, e depois é que se é isto ou aquilo. A essência, no homem, só aparece no fim. Deste modo, enquanto as coisas físicas são «em si», o homem é um «para si».
Enquanto existente, tenho um conjunto de possibilidades que me obrigam a escolher — e, ao escolher, é a mim que me escolho. Não está determinado à partida que vou ser isto ou aquilo: vou ser o que as minhas decisões me fizerem. Isto exige do existencialismo uma defesa cerrada do livre-arbítrio.
3. «O homem está condenado a ser livre». Se a vida não tem, à partida, um sentido determinado — já que não há um deus que lho dê —, então nós não podemos evitar criar o sentido da nossa própria vida. Por isso, estamos condenados à liberdade.
A vida obriga-nos a escolher entre vários possíveis. Podemos criar jardins ou campos de morte. Nada nos obriga, à partida, a escolher uma coisa ou outra. Mas ser livre significa que somos nós, e só nós, os responsáveis pelas escolhas que fazemos.
Refugiarmo-nos numa suposta ordem divina mostra apenas a incapacidade para arcar com a responsabilidade das nossas próprias decisões. Não há álibis. Mas a incapacidade de lidarmos com as consequências da nossa absoluta liberdade e da nossa responsabilidade absoluta está na origem da má-fé.
4. A má-fé. O conceito de má-fé surge na obra de Sartre O Ser e o Nada(1) e ganha uma relevância especial no contexto de uma filosofia que defende o livre-arbítrio.
A má-fé é um tipo de auto-ilusão. Mas é um tipo especial de auto-ilusão, porque não se trata de um erro — no sentido em que posso estar enganado acerca das minhas crenças, — mas de uma mentira — no sentido em que quero ocultar de mim mesmo uma crença particular acerca da minha liberdade. Incorrer em má-fé é agir «como se». É fingir. O empregado de café que representa o seu papel age «como se» estivesse a ser determinadopela sua função; «como se» não pudesse agir de outro modo. Mas Sartre afirma que, ao agir «como se», o empregado de café «coisifica-se», objectiva-se. Ora, por muito que se esforce para se tornar no papel que representa, um empregado de café não pode ser um empregado de café no mesmo sentido em que uma mesa é uma mesa, porque um ser-para-si não pode tornar-se um ser-em-si, a não ser pondo fim à sua própria existência.
Ao agir «como se», o empregado de café procura persuadir os outros de que é apenas um empregado de café — um objecto, um ser-em-si. «Um merceeiro que sonha, diz Sartre, é ofensivo para o comprador, porque já não é totalmente um merceeiro». Mas o empregado de café que age «como se» fosse o papel que procura representar pretende ocultar a si mesmo que é livre, que de facto podia ter escolhido agir de outra maneira, ainda que tal significasse ser despedido. Podia tê-lo feito, porque era realmente livre de o fazer. «Recusar escolher, diz ainda Sartre, é escolher não escolher». Agindo «como se» não pudesse escolher agir de outra maneira, o empregado de café incorre em má-fé.
A má-fé é uma maneira de fugir à liberdade e, consequentemente, à responsabilidade. Nesse sentido, é possível dizer-se que a má-fé é censurável; que há algo de moralmente errado em existir nessa condição. Ainda nesse sentido, seria possível dizer-se que a autenticidade, enquanto oposto da má-fé, é uma virtude. Mas O Ser e o Nada ocupa-se de fenomenologia da existência e não de ética, logo não procura responder à questão acerca de como se deve viver, mas antes descrever a maneira como se vive.
5. A angústia. Somos inteiramente livres, logo inteiramente responsáveis. Livres e duplamente responsáveis, porque, se não há uma natureza humana, ao fazer-me estou a fazer o próprio homem: o que eu fizer torna-se (o) humano. Mas sermos livres significa estarmos sós perante a indiferença do universo. É este sentimento de solidão que está na origem do desamparo e da angústia.
6. «O inferno são os outros». A minha liberdade inevitável confronta-se, todavia, com o olhar do outro. Os outros tendem a olhar-me como se eu fosse uma natureza permanente: um indivíduo com estas ou aquelas características. Desse modo, objectivam-me, reduzem-me a uma coisa. A minha irredutível subjectividade é dificilmente compatível com a maneira como os outros me vêem.
7. O absurdo da vida. O sentimento do absurdo da vida surge quando despertamos da nossa existência quotidiana e nos confrontamos com a ideia damorte inevitável. Afinal, que sentido pode ter tudo isto se estamos condenados ao nada? A existência torna-se autêntica perante a ideia de que o homem é um «ser-para-a-morte».
É nessa tensão que o sentido da existência pode surgir como projecto singular a empreender.
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[1] Ver Sartre, J-P., L’Être et le Néant, Paris, Gallimard, 1943. Sobre o conceito de má-fé ver também Warburton, N., Grandes Livros de Filosofia, Lisboa, Edições 70, 2001, pp. 212-215. Para a compreensão do conceito de má-fé ver também as noções de facticidade e transcendência.
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