O poeta está vivo.
O poeta está vivo. Foi ao inferno e voltou. (Frejat)
Tudo começou com Amália. Que linda ela era. As pernas roliças roçando uma na outra, e depois nas coxas do poeta. Momentos mágicos ficaram guardados para sempre na memória. Amália o amou como a mais ninguém, como ninguém mais. Suas palavras ainda ressoam nos ouvidos: tenho câncer, vou morrer. Parecia bobagem, mas Amália falava a verdade. Morreu três anos depois, descansou de tanto sofrer. No começo não parecia grave, era como uma cirurgia plástica. Vou tirar os nódulos do peito e enxertar com carne da minha bunda. Tiro de onde sobra pra botar onde falta, aproveito pr'ajustar estes peitos mamados demais. Tens certa culpa nisso, tu e meus filhos. O poeta não gostou que Amália não lhe mostrou. Estou sem mamilo, o doutor falou que é complicado, farei uma cirurgia só pra isso quando desinchar. Mas não desinchou, a segunda cirurgia foi para cortar um peito fora. Não me podes ver, sinto vergonha de ti. E Amália foi sendo cortada como um cordeiro sacrificado, secando até que se foi. Seus dias chegaram ao fim, mas os do poeta não. Bem que Deus podia ter levado os dois, pois o poeta secou ao ver a mulher definhar até a morte. Não deveriam tirar as musas dos poetas, alguns não resistem. O poeta não teve essa graça. Não me deixe, Amália, pedia. Não é meu desejo deixar-te, é o criador que me chama. Não me tire Amália, pedia em orações sem resposta. Leve-me com ela, Nada de resposta. Leve-me no lugar dela. Nada. Nenhum sinal de Deus. O poeta se revoltou, disse que Deus queria sua musa para si, tão bela que era. Blasfemou contra o destino, bebeu metade da caninha da cidade. Não raro era carregado para casa. Outras vezes dormia na sarjeta. O que será de Tristão sem Isolda? Perguntava aos brados, acordando a vizinhança. Cale-se, gritava alguém de uma janela. Que será de mim sem Amália? Perguntava mais alto. Deixe-me dormir, gritava outra voz. Deus não é justo, bradava. Vou chamar a polícia, seu bêbado. Que será de mim sem Amália? De Tristão sem Isolda? E dormia ali. com esses pensamentos, chorando feito criança.
Quando as lágrimas secaram e o pequeno patrimônio virara pó, resolveu reagir. Deve ter sido no dia em que Eulália, a filha mais velha, disse que não havia mais o que comer. Venda alguma coisa, resmungou. Não temos mais nada pra vender. Compre fiado na bodega da dona Francisca. Não vende mais, a conta tá enorme. Do seu Lauro. Nem deixa a gente entrar enquanto não pagar. E nenhum nome mais vingou, todos haviam fechado as burras. Então o poeta olhou para os filhos, tão pequenos e sem mãe, órfãos de pai vivo. Sofriam mais que ele, que egoísta havia sido. Tomou um banho frio porque a luz estava cortada. Pôs um arremedo de roupa limpa e procurou dona Francisca. Senhora, sois mãe, haveis de me ajudar. Lavo vosso chão, carrego vossos caixotes, faço o que mandardes, mas vos imploro que adianteis um farnel pr'alimentar minhas crianças. Faço por Amália, não por ti, contestou a comerciante. És um vagabundo, sei que vou me arrepender. Leva esta comida para teus filhos e volta logo que vou te dar o que fazer. Mas se botares uma gota d'álcool na boca estarás fora, vais humilhar-te em outra freguesia. Obrigado, dona Francisca, eu sabia que podia contar convosco. Tendes um coração de ouro. Olha lá que estou de olho em ti, ó sujeito. Vou e volto numa risca, pois nenhum homem sensato se arrisca a desobedecer ordem de dona Francisca. Pare de fazer trocadilhos, porque teu espírito de poeta só te levou à bancarrota.
Foram dias duros aqueles, os de adaptação e desintoxicação. Mais que o corpo, o poeta precisava recuperar a alma, voltar ao mundo dos mortais. Doía-lhe o corpo desde os dedos dos pés até os fios de cabelo, dona Francisca não lhe dava um instante de folga. Era poeta daqui, poeta de lá, se parasse por um instante, ainda que fosse para respirar, logo vinha o grito, olha que estou de olho em ti, ó sujeito. Mas a dor que demorava a cicatrizar era a da alma. Amália estava em cada canto, sempre a espreitar com sua lembrança que tomava os pensamentos do poeta. Porém agora voltava com ar de cobrança para que o marido não deixasse sucumbir os filhos, não permitisse que ruísse o lar que construíram a custa de tanto trabalho. Guarda meus filhos, meu poeta, todos teus esforços valerão a pena se conseguires manter tua família. Conseguia ver a mulher no semblante de cada uma das crianças. Eulália já era uma mocinha, doze anos e cuidava da casa como aprendera como a mãe. Por vezes viu seu vulto se aproximar e teve a impressão de que era a musa que voltara. Ascânio tinha o olhar e os cabelos da mãe. Foi o que mais demorou para parar de chorar. Por vezes acordava gritando, mãe, como a implorar que tudo não passasse de um sonho ruim. Na verdade o poeta também nutria a esperança de ouvir a voz de Amália dizendo dorme, filho, foi só um pesadelo. Mas era verdade, bem sabia, teriam que viver sem ela. Astrid se adaptou mais rápido que os irmãos. Em pouco tempo já chamava Eulália de mãe, pois a irmã lhe dedicava os mesmos cuidados, consolando-a como se também ela não precisasse ser consolada. Logo o trabalho do poeta foi compensado e a luz religada, na mesa não faltava mais o que comer. Restava conter o coração e zelar para que os filhos voltassem a sorrir. A lembrança de Amália, contudo, jamais sairia de seus sonhos e de seu coração. Estava curado o corpo, mas a alma seguiria vagando, furtiva, pelos caminhos tortuosos da poesia, pelos escritos inconfessáveis que guardava longe dos olhos de todos.