Recordar e Repetir, é Elaborar
Naquela tarde do ano de 1952, o padre jesuíta convidado para pregador do retiro espiritual, estava no púlpito refletindo sobre a eternidade. A frase dita por ele e que gravei foi mais ou menos assim: “— mais um ano a cair no oceano da eternidade. Estará essa gota de tempo pura de todo pecado meu? Que coisa fiz por Deus e por minh’ alma durante este tempo?”
Refletir sobre essas abstrações era deveras complicado e difícil para uma menina, num colégio de freiras, longe de seus pais, de sua casa, de seus namoradinhos.
Subentendia que o jesuíta estava falando de pecado, de proibições, pois era corriqueiro falar sobre essas coisas naquela época de tanta ingenuidade, mas que as irmãs insistiam em pecaminar. Conhecia as palavras e sabia o era gota, o que era oceano, o que era tempo e que eternidade era uma palavra que aparecia muito no missal Goffiné, mas as metáforas não entendia! Até hoje fico realmente intimidada em lembrar-me dessa situação e, principalmente, pela explicação que o jesuíta deu depois.
No pátio interno do Colégio Nossa Senhora do Patrocínio, em Itu, naquela época, existia uma imponente mangueira (até hoje está lá!), plantada pela Irmã Angelina Achard em 1860, uma das primeiras irmãs vindas de Chambèry, na França, talvez para imortalizá-las, na eternidade, apesar da duração muito curta da existência arbórea.
Essa mangueira, majestosa, era uma árvore mágica para nós: o diâmetro de seu tronco principal era alcançado por não menos que doze garotas de mãos dadas e mais ou menos a uns quatro metros do solo, saiam onze troncos secundários e, destes, outros tantos.
Sempre brincávamos de abraçá-la, cercando-a. Seus galhos adentravam pelas salas de aula ou pelos janelões do Dormitório dos Santos Anjos, no lado oposto. Não raras vezes, as aulas de latim ou de francês eram acompanhadas pelos gorjeios dos passarinhos que se aninhavam em seus galhos. As meninas choravam muito quando era necessário podar alguns de seus galhos que não tinham vergonha de se adentrar e de se infiltrar em nossa intimidade, como se estivessem atentos, também, a nos vigiar. Nós a tratávamos como gente!
Nunca conseguimos, apesar de sempre tentarmos, subir em seus galhos porque os olhos vigilantes das irmãs sempre nos coibiam e, com certeza, entendíamos o que elas queriam dizer através deles: “— não é um ato de polidez de bom tom meninas educadas subirem em árvores!”. Pobres irmãs! Não poderiam nem imaginar o que esta proibição significaria mais tarde em nossas vidas de mulheres.
As folhas da mangueira eram incontáveis – a foto pode dar uma idéia - e cobriam com sombra quase que o pátio inteiro que tinha cerca de 30 m de largura por 70 ou 80 m de comprimento; alcançava a altura da construção do colégio: o andar térreo, o pátio que ficava a uns 20 lances de escada abaixo do térreo, o primeiro andar e o sótão.
Eu a respeitava como soberana absoluta. Mais que à Notre Mère, como chamávamos a madre superiora, e quantas vezes conversava com a velha mangueira como se fora minha mãe, que estava tão longe, certa de que me propiciava a mais fina educação formal. O meu vínculo com a árvore era de respeito e admiração e, porque não dizer, de certo medo, como se de repente ela tivesse o poder de nos controlar, pois seus galhos e folhas estavam por todos os lados e por todos os cantinhos dos corredores, por onde dávamos asas à nossa imaginação juvenil. Era onipotente, onipresente e onisciente... Era, enfim, os olhos de Deus!
Pois bem, o senhor padre jesuíta, ao refletir sobre a eternidade, numa tentativa de concretizar um conceito tão abstrato e difícil e tão longe de nossa experiência concreta, utilizou a comparação: “— meninas, vocês conhecem bem a majestosa mangueira lá do pátio e sabem que é impossível contarmos todas as suas folhas. Tentem imaginar que a cada mil anos vocês arrancassem uma folhinha dela. Imaginem que essa operação jamais acabaria, porque, ao retirar uma folha, nasceriam outras mil. Pois bem, essa é uma idéia aproximada da eternidade!”
Para mim era uma coisa incrível. Mesmo mil era abstrato, pois contava apenas os 270 dias do ano longe de casa, os 60 minutos na Igreja, ou os 30 minutos, apenas, de recreio... Mil?! só nos cálculos das aulas de matemática.
Na minha vida cotidiana de uma menina em um internato de freiras o tempo era sempre referido ao tempo mensurável, cronológico, representado por objetos comuns ao relacionamento como o relógio, ou melhor, os sinos, ou o calendário. Mais precisamente, o sino da capela indicava o horário de levantar, ir à missa ou à reza; o sininho da madre diretora, pendurado ao lado de sua sala numa das pilastras que formavam a varanda que circundava o pátio, dava a dimensão do tempo das aulas, do almoço, dos recreios, das aulas de piano ou de pintura, do jantar e do dormir. Mais longamente, a dimensão da semana era vista pelas fitas vermelhas, indicadoras do bom comportamento, que eram exibidas no locutório, aos domingos, quando das visitas familiares. A dimensão do mês era dada pelas provas e pela menstruação, cujo sinal evidente tinha que esconder muito bem escondidinho nos “quartinhos” que ficavam sob a escada, onde havia cestos forrados por sacos brancos e onde os “paninhos” eram exibidos. Os “pannhos” eram toalhinhas felpudas, retangulares, com casas de botões nas pontas, que abotoavam os botões fixos na cinta própria para usar “naqueles dias” – versão antiga dos absorventes higiênicos. Todos os paninhos tinham bordado, aliás como todos os pertences, um número próprio da aluna. O meu era 129. A dimensão do final do semestre era dada pelos exames e pelos “Deo Gratias” que ecoavam pelo colégio: duas palavras mais pronunciadas e escritas nos versos dos santinhos, ou nos nossos cadernos.
Mas eu, garota da primeira série ginasial de um internato de freiras, até então nunca me havia dado conta dessa dimensão do tempo que, no dizer de Heidegger, não é “encontrado em parte alguma do relógio, nem no mostrador, nem no mecanismo, tampouco nos cronômetros da técnica moderna (...) e quanto mais exatos no efeito da medição, tanto menor a oportunidade que temos de meditar sobre o que é próprio do tempo.”
A configuração do tempo reduzido a uma noção fundamentalmente espacial estabelece o conceito de espaço de tempo, entendido como a distância entre dois pontos, e resulta do cálculo do tempo, linear, mensurável e unidimensional. Mas, independente e antes da efetuação de qualquer cálculo que vise mensurar o tempo, é no alcançar-se recíproco do futuro, passado e presente que repousa o elemento próprio do espaço-de-tempo do tempo autêntico.
Se o repetir é entendido como o trazer de volta, de novo, presentificar, não o “mesmo” como nos rituais obsessivos, mas o repetir diferencial, talvez seja essa a razão pela qual uma experiência passada se possibilita à abertura, à presentificação e, então, não é sem sentido que estou com o episódio do colégio revivido atualmente, de modo tão intenso (aqui estou eu tentando buscar o elo, o elemento articulador, ocultado em algum lugar do passado).
Aquela mangueira, para mim, era uma obra de arte, perecível enquanto realidade e de um instante fugaz de duração, mas representava a eternidade, não da forma como o jesuíta falou naquela época, mas no sentido de que me embriagava dionisiacamente e elevava acima da fria apreciação racional, apolínea, isto é, acima do meu entendimento. Atraía-me e eu me deixava envolver e encantar por ela, vivenciando momentos de intensa e imensa paz e integração, nos quais não estava mais consciente de mim mesma, onde existia plenamente, unida a ela, integrada ao mundo, fazendo parte do universo de modo harmonioso.
Ora, só existe um momento onde isso é possível: o encontro primeiro com a mãe, nossa experiência primária de satisfação plena. A mangueira a representava tão vivamente para mim?
Essas associações remetem-me a essa problemática do tempo, principalmente porque este tem sido um tema abordado explicitamente em algumas discussões e por eu estar vivenciando um processo cheio de ambigüidades e de riscos, cuja imprevisibilidade me impede de ter segurança ao agir: a perda de um ente querido e a separação de meu filho.
Essa insegurança permanece mesmo que eu procure me apoiar no passado, agindo em termos do que já conheço ou mesmo revivendo episódios de minha infância e dessa forma um autêntico passado. Mas, embora o presente seja também abertura para o futuro, este é sempre imprevisível, sempre terá suas peculiaridades que vão além daquilo que conheço agora.
A perda e a separação desencadearam em mim a antiga experiência de separação de minha mãe, quando fui internada no colégio?
Mas naquela época eu deixei de ser insegura e angustiada, superando as situações concretas do meu existir, na relação com a velha mangueira. E agora? Somente estou encontrando e enfrentando o nada, o desconhecido, o que aflige.
Terminarei minhas reflexões com uma citação de Binswanger (1973), que me parece muito sábia e que talvez possa inserir-se aqui adequadamente, bem como ajudar a superar essa vivência de angústia e alcançar o máximo de minhas possibilidades:
“... ao amar, o existente transcende o espaço e o tempo -- o próximo e o distante; o antes, o agora e o depois fundem-se momentaneamente, propiciando-lhe, por instantes, vivenciar a integração completa. (...) Na forma dual de existir, o ser humano vivencia a si próprio e ao outro como unidos, integrados, livres de desejos e de todas as particularidades. Ela constitui a verdadeira unidade, o nós originário, primordial, que é anterior ao sexo, à idade, à raça e a todas as particularidades. Nela o homem deixa, por instantes, de ser-no-mundo para ser-além-do-mundo, na eternidade...”
Referências
BINSWANGER, LUDWIG. Articulos y conferencias escogidas. Madri. Gedos. 1973
FREUD, SIGMUND. Recordar, Repetir e Elaborar (19l4) In: Obras Completas. Vol. XII. Rio de Janeiro. Imago: 1969.
GARCIA-ROZA, LUIZ ALFREDO. Acaso e Repetição em Psicanálise: uma introdução à teoria das pulsões. Rio de Janeiro. Jorge Zahar: 1980.
GRLIC, DANKO. Nietzsche e o Eterno Retorno do Mesmo ou o Retorno da Essência Artística na Arte. In: Colóquio de Cérigy. São Paulo. Brasiliense: 1980.
HEIDEGGER, MARTIN. O Fim da Filosofia ou a Questão do Pensamento. São Paulo. Duas Cidades: 1972.
Nota: Este ensaio foi feito como trabalho final da disciplina Psicanálise II, ministrada pelo Dr. Renato Mezan, no Curso de Pós-Graduação, Mestrado, em Psicologia Clínica, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em 1986.