Terra de Ninguem e De Volta à Terra de Ninguem

Venho caminhando a passos lentos durante um deserto sem fim, o objetivo é traçado, mas o percurso é completamente desconhecido e cada passo dado deve ser feito com muito cuidado pois um passo em falso pode significar uma paralisia temporária ou definitiva, e nunca mais torno a caminhar novamente.

Peguei trechos bons de sol brando, trechos onde meu receio me cortou muitos passos e trechos onde havia grande tempestade de areia, apesar de querer caminhar rápido. A tempestade passou mais tarde do que imaginei e durante um tempo não acreditava nem que ela ainda estava acontecendo, mas quando passou, estava cheio de areia nos olhos.

Essa madrugada me apareceu um atalho e cheguei a uma bela casa, meu objetivo, uma casa grande de dois andares e janelas fechadas, portas pesadas dão as boas vindas aos visitantes. Juntei forças e empurrei a porta, notei a existência de uma pequena correntinha arrebentada no chão rente a porta.

Entrei em uma sala bonita e aconchegante, tudo parecia muito novo e a julgar pela arrumação, pouco parecia ter sido mexido, apesar do tamanho, a casa não me pareceu ser muito freqüentada.

Encontrei uma espécie de altar em um canto iluminado, estava vazio mas a julgar pelas marcas na pedra mármore o que quer que estivesse lá, ficou por muito tempo, porem as velas ainda estavam acesas. Achei por bem não mexer e esperar, talvez aquele que tenha tirado o que estava lá, torne a colocar. Não me cabia simplesmente mover nada ali.

Continuei explorando a casa com cuidado para não tocar em nada, me pergunto agora se deveria ter mexido algumas coisas e deixado minha marca lá, mas é tarde. Fui aos cômodos do segundo andar, eram todos quartos, a maioria com camas de solteiro onde algumas estavam desarrumadas, denunciando que alguém dormia ali, num dos quartos, o maior, a cama era de casal e a mobília era nobre, o lençol estava colocado perfeitamente e haviam travesseiros lado a lado rente a cabeceira. Dobrei o cuidado e fui ate a janela, estava apenas encostada e facilmente pode ser aberta.

Era hora de ir embora, eu havia entrado sem ser convidado e ainda por cima, através de atalho. Deixei tudo como estava, pode-se dizer que a única coisa que deixei foi a areia que sujava meus pés na entrada da sala, fechei a porta mas levei a correntinha comigo.

Voltaria pelo atalho até o ponto onde o encontrei, continuaria no caminho normal e, a menos que eu tivesse forças para meter o pé na porta e entrar, não cortaria o caminho de novo, agora conheço uma janela aberta e qualquer coisa só pular. Continuei meu caminho no deserto desconhecido rumo aquela casa sem donos.

O deserto não existe mais e suas areias deram lugar a um belo campo florido, a trilha mal marcada tornou-se um perfeito caminho de pedras esculpidas, o calor desapareceu e o vento fresco tomou conta do cenário, a caminhada difícil agora são relaxantes passos descalços. Tudo mudou menos aquela casa de dois andares.

A porta ainda era a mesma, grande e pesada. A correntinha ainda amarrada ao meu pulso. Preparei-me para fazer força na tentativa de empurrar aquela grande porta, mas ela se abriu inteira ao mero toque dos meus dedos. Entrei sem medo, como da ultima vez.

Na grande sala pouco havia mudado, mas as coisas pareciam mais em ordem, a mobilha ainda era a mesma mas a arrumação era outra, dessa vez sentei-me em uma poltrona e me recostei, senti o material, era tudo muito bom. Ficaria horas ali deitado mas ainda havia muito da casa pra ver novamente.

Fui ver uma das coisas mais curiosas que avistei na minha ultima visita, o estranho altar, mas não encontrei nada lá alem da pedra mármore perfeitamente branca, imaculada, não haviam mais marcas ou velas, estava totalmente vazio.

Quando terminei de subir a escada para o segundo andar, todas as portas se abriram, os antigos quartos que abrigavam camas de solteiro agora se tornaram cômodos diversos, mas nenhum deles continuava quarto, uns pareciam salas de estudo, outros salas intimas, havia um quarto com decoração infantil, um berço e brinquedos de criança.

Entrei no quarto maior, este sim ainda era um quarto e lá estava a grande cama de casal, a arrumação também havia mudado, as cores eram vermelhas, coincidentemente minha cor favorita. O lençol e a colcha não estavam perfeitamente postos, era nítido que alguém havia se deitado sobre elas a pouco tempo. Me sentia estranhamente a vontade naquela casa desta vez, tomei a liberdade de puxar a colcha, fiquei surpreso ao ver roupas minhas ali dobradas.

As janelas se abriram ao me aproximar, o vento fresco alisou meu rosto. Sentei na cama e depois deitei, me cobri com a colcha confortável e então comecei a entender tudo.

A casa me dava passagem e vestígios de outras pessoas haviam desaparecido, a sensação de estar em casa e minhas roupas dobradas na cama, sinais de que eu deveria ficar ali, cuidar daquele lugar, morar lá, sinais de que eu havia passado a ser o dono daquela casa.

Olhei a correntinha no pulso, uma lembrança que peguei na minha ultima visita, a única coisa que ousei mover. Agora estava ali, deitado confortável numa cama que era minha, podendo mexer onde quisesse. Aí percebi que nunca havia deixado aquela casa, nunca havia retornado ao caminho no deserto, sempre estive lá, de um jeito ou de outro, morador daquela casa, zelador daquelas paredes.

Havia chamado aquele grande casa de terra de ninguém, talvez um dia havia sido, mas agora já não servia mais este nome, a terra tinha quem cuidasse, a terra tinha dono, a terra era minha.