Sopa de Letrinhas
Imaginem a seguinte situação: é inverno, dia muito frio. Ideal para um prato quente. Você então, gentilmente, convida um amigo para jantar uma sopa em sua casa. Ele aceita.
Antes que ele chegue, você abre o armário e procura uma massa interessante. Hummm, penny? Parafuso? Cabelo de anjo? Entre as embalagens encontra uma de letrinhas da qual não se lembrava. Boa idéia. Confere a validade. Tudo ok. Então você prepara os ingredientes com carinho. Lava bem e descasca as batatas, as cenouras, as vagens e as mandioquinhas. Corta-os todos em pedaços bem pequenos. Pica a cebola e o alho e os frita no azeite. Coloca também sal e um tempero especial, receita da sua mãe. Põe os legumes na panela juntamente com a cebola e o alho picados e fritos. Despeja a água, o suficiente para cobrir todos os ingredientes. Ao começar a cozinhar, você finalmente coloca o macarrão de letrinhas. Prova o tempero diversas vezes com a colher de pau quase queimando a palma da mão. Enfim, a sopa ficou perfeita.
A campainha toca. Seu amigo chegou.
A mesa está preparada: um belíssimo forro tecido por sua avó e um jogo de pratos que, de tão belos, poderiam estar dependurados na parede. Os talheres são aqueles que você só utiliza para ver Deus, como diz minha tia. No centro da mesa, um enfeite de flores naturais, que você escolheu minuciosamente, de manhã, no mercado central.
Depois de uma conversa sobre o frio, se alguém pega um resfriado com frequência ou não, a sua última viagem a Gramado (ou ao Alasca)... finalmente o jantar será saboreado. Seu amigo então enche o prato fundo com aquela cheirosa sopa de letrinhas. Você fica na expectativa: será que ele vai gostar? Será que você acertou no tempero? Será que lhe fará bem? Será que a sopa lhe acalentará o sono e quem sabe até os sonhos?
O convidado, então, pega o prato com as duas mãos, pelas bordas. Você acha estranho, mas tudo bem. Talvez ele vá ajeitá-lo. Mas não! Para a sua surpresa, ele leva o prato à boca e o vira todo, num gesto só, engolindo quase toda a receita em uma talagada, o jantar repleto de carinho que você preparou. Ele nem chega a tentar encontrar uma palavra formada fortuitamente flutuando no caldo aromático e nem tenta criar seu nome no canto da porcelana, enquanto a sopa esfria. Ele não procura sentir as nuanças de sabor do alho, da cebola, da pimenta do reino nem chega a fazer os movimentos musculares com o maxilar para verificar a consistência das verduras e advinhar na ponta da língua o formato do alfabeto. Ele simplesmente enfia tudo goela abaixo, deixando que um monte de letras e legumes saborosos se percam pelas extremidades da boca. E, como se não bastasse, ele solta um sonoro arroto, concluindo o festim bárbaro com frase: "Nossa, ficou uma delícia".
O leitor talvez pergunte: aonde você quer chegar? Fiquem tranquilos, eu antecipo: não vou traçar o caminho natural que essa engolida mal educada percorrerá até chegar à privada da vida privada dele. Quero examinar aqui um outro tipo de merda: aquele comportamento, lógico, exemplificado pela minha analogia um pouco forçada que seu convidado apresenta diante do seu banquete, simples, mas repleto de significados.
Exageros á parte: não e assim que a maioria dos leitores hoje se comportam diante de muitos textos literários: contos, crônicas e poemas (e quem sabe, talvez até diante deste ensaio?) Ora, você fica um tempo pensando, abre sua despensa interior, vasculha o fundo do armário à procura do ingrediente certo, a palavra, a frase ou verso, o parágrafo, o narrador ou eu-lírico que fará com que seu texto fique o mais delicioso possível. E naquele frio de arte que se enfrenta hoje, em que música clássica é considerada coisa ultrapassada e funk uma moda que contamina como a gripe, vem uma pessoa, lê seu texto, num gole só e diz: “legal”. E olha que isso não acontece somente com os iniciantes inexperientes como eu, que não sou digno de ser comparado nem com o arroz queimado de Clarice Lispector, mas com os grandes chefes de cozinha como Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade. Parece que a grande maioria lê um poema, conto, crônica ou seja lá que cardápio for, de uma só vez, e depois emite um vazio gasoso "gostei”!Perdem-se as nuanças de temperos, cores, temperaturas, texturas e aromas do texto: por que o autor escolheu aquele nome para a personagem? O título diz alguma coisa? Há algum recado que ele queira transmitir? Não. Não se degusta nada. Engole-se de uma vezada seguido de um elogio, como se escritor estivesse somente atrás de mimos superficiais: a boa crítica pode muito bem aprimorar a receita. Parece que estamos vivendo um momento em que as foods tem que ser fast, preparadas e consumidas rapidamente, se não, não servem. Bons são os cardápios twitterianos de 140 caracteres insossos e sem temperos ou então os chavões facebookianos que não abrem porta para nenhum lugar, aliás, abrem sim, para o lugar-comum. A maior rede social virou um emaranhado de erros de autoria, afirmações arbitrárias sobre questões complexas, como se o mundo fosse monocromático, sem matizes e questões para serem provadas e experimentadas. Quantas pessoas leram um livro do autor cuja frase postaram? Quantos agem de acordo com as frases de autoajuda que postam? Quantos estão preocupados em estudar um assunto profundamente antes de emitir sua opinião?
Enfim, depois dessa sopa apimentada de letrinhas faço uma ressalva: eu não tenho nada contra o minimalismo: um prato pequeno pode ter uma imensidão de prazeres gastronômicos assim como um texto curto pode causar orgasmos literários, desde que seja bem feito e saboreado.
As sopas de letrinhas não estão sendo mais preparadas nem consumidas. Agora é vez do macarrão instantâneo que fica pronto em três minutos mas causa anorexia poética.
Antes que ele chegue, você abre o armário e procura uma massa interessante. Hummm, penny? Parafuso? Cabelo de anjo? Entre as embalagens encontra uma de letrinhas da qual não se lembrava. Boa idéia. Confere a validade. Tudo ok. Então você prepara os ingredientes com carinho. Lava bem e descasca as batatas, as cenouras, as vagens e as mandioquinhas. Corta-os todos em pedaços bem pequenos. Pica a cebola e o alho e os frita no azeite. Coloca também sal e um tempero especial, receita da sua mãe. Põe os legumes na panela juntamente com a cebola e o alho picados e fritos. Despeja a água, o suficiente para cobrir todos os ingredientes. Ao começar a cozinhar, você finalmente coloca o macarrão de letrinhas. Prova o tempero diversas vezes com a colher de pau quase queimando a palma da mão. Enfim, a sopa ficou perfeita.
A campainha toca. Seu amigo chegou.
A mesa está preparada: um belíssimo forro tecido por sua avó e um jogo de pratos que, de tão belos, poderiam estar dependurados na parede. Os talheres são aqueles que você só utiliza para ver Deus, como diz minha tia. No centro da mesa, um enfeite de flores naturais, que você escolheu minuciosamente, de manhã, no mercado central.
Depois de uma conversa sobre o frio, se alguém pega um resfriado com frequência ou não, a sua última viagem a Gramado (ou ao Alasca)... finalmente o jantar será saboreado. Seu amigo então enche o prato fundo com aquela cheirosa sopa de letrinhas. Você fica na expectativa: será que ele vai gostar? Será que você acertou no tempero? Será que lhe fará bem? Será que a sopa lhe acalentará o sono e quem sabe até os sonhos?
O convidado, então, pega o prato com as duas mãos, pelas bordas. Você acha estranho, mas tudo bem. Talvez ele vá ajeitá-lo. Mas não! Para a sua surpresa, ele leva o prato à boca e o vira todo, num gesto só, engolindo quase toda a receita em uma talagada, o jantar repleto de carinho que você preparou. Ele nem chega a tentar encontrar uma palavra formada fortuitamente flutuando no caldo aromático e nem tenta criar seu nome no canto da porcelana, enquanto a sopa esfria. Ele não procura sentir as nuanças de sabor do alho, da cebola, da pimenta do reino nem chega a fazer os movimentos musculares com o maxilar para verificar a consistência das verduras e advinhar na ponta da língua o formato do alfabeto. Ele simplesmente enfia tudo goela abaixo, deixando que um monte de letras e legumes saborosos se percam pelas extremidades da boca. E, como se não bastasse, ele solta um sonoro arroto, concluindo o festim bárbaro com frase: "Nossa, ficou uma delícia".
O leitor talvez pergunte: aonde você quer chegar? Fiquem tranquilos, eu antecipo: não vou traçar o caminho natural que essa engolida mal educada percorrerá até chegar à privada da vida privada dele. Quero examinar aqui um outro tipo de merda: aquele comportamento, lógico, exemplificado pela minha analogia um pouco forçada que seu convidado apresenta diante do seu banquete, simples, mas repleto de significados.
Exageros á parte: não e assim que a maioria dos leitores hoje se comportam diante de muitos textos literários: contos, crônicas e poemas (e quem sabe, talvez até diante deste ensaio?) Ora, você fica um tempo pensando, abre sua despensa interior, vasculha o fundo do armário à procura do ingrediente certo, a palavra, a frase ou verso, o parágrafo, o narrador ou eu-lírico que fará com que seu texto fique o mais delicioso possível. E naquele frio de arte que se enfrenta hoje, em que música clássica é considerada coisa ultrapassada e funk uma moda que contamina como a gripe, vem uma pessoa, lê seu texto, num gole só e diz: “legal”. E olha que isso não acontece somente com os iniciantes inexperientes como eu, que não sou digno de ser comparado nem com o arroz queimado de Clarice Lispector, mas com os grandes chefes de cozinha como Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade. Parece que a grande maioria lê um poema, conto, crônica ou seja lá que cardápio for, de uma só vez, e depois emite um vazio gasoso "gostei”!Perdem-se as nuanças de temperos, cores, temperaturas, texturas e aromas do texto: por que o autor escolheu aquele nome para a personagem? O título diz alguma coisa? Há algum recado que ele queira transmitir? Não. Não se degusta nada. Engole-se de uma vezada seguido de um elogio, como se escritor estivesse somente atrás de mimos superficiais: a boa crítica pode muito bem aprimorar a receita. Parece que estamos vivendo um momento em que as foods tem que ser fast, preparadas e consumidas rapidamente, se não, não servem. Bons são os cardápios twitterianos de 140 caracteres insossos e sem temperos ou então os chavões facebookianos que não abrem porta para nenhum lugar, aliás, abrem sim, para o lugar-comum. A maior rede social virou um emaranhado de erros de autoria, afirmações arbitrárias sobre questões complexas, como se o mundo fosse monocromático, sem matizes e questões para serem provadas e experimentadas. Quantas pessoas leram um livro do autor cuja frase postaram? Quantos agem de acordo com as frases de autoajuda que postam? Quantos estão preocupados em estudar um assunto profundamente antes de emitir sua opinião?
Enfim, depois dessa sopa apimentada de letrinhas faço uma ressalva: eu não tenho nada contra o minimalismo: um prato pequeno pode ter uma imensidão de prazeres gastronômicos assim como um texto curto pode causar orgasmos literários, desde que seja bem feito e saboreado.
As sopas de letrinhas não estão sendo mais preparadas nem consumidas. Agora é vez do macarrão instantâneo que fica pronto em três minutos mas causa anorexia poética.