Delírios Tipicamente Norte-Americanos X

O VELHO MARINHEIRO CONTINUA COMPRANDO TEMPO

Um rigoroso esquema de segurança foi imposto pelo Senador Lee para a realização do encontro. Vendas nos olhos, voltas intermináveis de automóvel pelas ruas da Capital, bloqueios hipnóticos verbais durante todo o trajeto, os carabineiros berrando e imitando grunhidos de animais para disfarçar quaisquer sons de rua que denunciassem o caminho para o local da reunião. Foram escoltados, ainda vendados, através de uma escadaria que, a julgar pelos constantes giros descendentes, devia ser em caracol. Um subterrâneo, a julgar pelo frescor gélido. Crimson Joe, acostumado aos trópicos, sentiu-se subitamente carregado para o Ártico. Um frio intenso arrebatou suas sensações, criogenando sua razão em frações de segundo no tempo e no espaço. Era um mergulho na umidade cósmica, criadora e devoradora da existência. Entrava pelas narinas como éter, penetrando a essência progressivamente, esclarecendo dúvidas ancestrais do espírito. Tudo muito fugaz, entremeado de relances de comerciais de TV, mímicas de áudio e trucagens mesméricas de pesadelo. Como uma fantástica capa de informação aleatória... Mas a sensação, extremamente complexa, foi extinta com a retirada das vendas, como se junto aos panos fosse diluída toda uma atmosfera, cinérea e fria... a um simples passe de mágica.

O lugar não tinha janelas ou portas. Era um aposento curioso, decorado em estilo múltiplo. Quadros de muitas facetas impregnavam as paredes rebitadas de aço. Parecia um espaço selado, como que submarino, e as paredes rangiam às vezes. Sentado em uma poltrona de couro surrado, um senhor de rosto encovado bem escanhoado e encurvado pelo tempo gasto em milhares de orgias arteriais. Trajava óculos e terno esguio impecável, chapéu de feltro nos moldes da roupa (como um elmo seria apropriado a um cavaleiro medieval). Tomava café e lia jornal. Ao lado havia uma pilha enorme de jornais, pálida, exalando um suor morno, coleante. Ergueu a cabeça lentamente e um brilho faiscou nas lentes, cinzento como o de um lobo furtivo na estepe frígida. Fixou o grupo e seu semblante tremulou como um lençol ao vento. Um sorriso resignado brotou, oriundo de algum lugar profundamente oculto em sua fisiologia.

“Sejam bem-vindos ao meu bunker, rapazes...”, resmungou, amigável, mastigando bem as palavras, como se sugando-as antes de soltá-las.

Joe notou que o velho o observava. Seus olhos, por detrás das lentes caleidoscópicas, pareciam gemas de ovo gananciosas. “Que quererá ele?”, ensimesmou, mas então Olive atraiu a atenção do ancião:

“Como está indo da gota, Lee? Alguma melhora?”

A expressão anterior do velho se dissipou. Disse – carregando no sotaque sulista:

“As coisa tem estado bem, Richie... Nenhuma dor incomodou meu lombo nos últimos meses...”

Readquirindo a compostura, o Senador Lee reiterou:

“Mas, passando a outro tópico: quem são esses sujeitos?”

“Este é Crimson Joe, conhecido no meio como A Omoplata Beligerante Americana. Os outros são Kepler, que trabalhou como faxineiro para os Anunnaki, Frank, um esquilo, e o Tio Sam, que todos conhecem muito bem.”

O velho senador enervou-se.

“Tio Sam? Tio Sam?”

Ergueu-se da poltrona. Parecia possuído por um xamã maléfico. Dançava com a carcaça esquálida pelo cômodo, esbarrando em bugigangas e emitindo ruídos fungados. Aproximou-se de Sam. Tirou-lhe a cartola, passeando as mãos pelo crânio revolto. Uivou como um coiote e, girando maquinalmente o pescoço, sussurrou:

“Nada de Tio Sam.”

Girando a cadeira, revelou um mito.

“Senhores, apresento-lhes o Capitão América.”

Havia, em lugar do farrapo anterior, um homem musculoso, extremamente provido fisicamente e alto feito um jogador de basquete. Trajava um uniforme colante que cobria-lhe quase todo o corpo (excetuando-se parte do rosto), decorado com as cores nacionais, e uma estrela estufava-lhe o peito. Tinha pequenas asas presas nas laterais da cabeça e, para completar, uma letra A na testa, cujas pernas partiam dos olhos num ângulo perfeito. Surgira ali do nada, como uma alucinação conjunta que esfrega os olhos e tosse e acorda para a realidade.

“Onde estou?”

“Quando está?”, o senador rebateu. O homem olhou para todos. Seu olhar taciturno e gélido exprimia uma vitalidade sombria. Bailava uma experiência além do normal naqueles olhos azuis, uma chama congelada crepitava com estalos de gelo se quebrando, avalanches, vendavais de neve.

“E meu escudo?”

Lee, solícito, arrastou-se até um móvel baixo e retirou um embrulho grande, circular, envolto em trapos.

“Está aqui, Capitão. Guardei-o para uma eventualidade qualquer.”

O Capitão desembrulhou o pacote, revelando um escudo enfeitado com círculos concêntricos, vermelhos e azuis, trazendo ao centro, pintada, uma estrela branca de cinco pontas.

“Fez muito bem, velho. E então: em que pé estamos?”

O Senador Lee produziu um semblante de amargo desgosto. Joe, Olive, Kepler, Frank... ninguém entendia coisa alguma. Tudo aparentava surrealismo: as paredes fremindo, os ruídos submersos, o senador esquálido, todo o aposento de aço como um container suspenso no espaço pelos cabos do absurdo... Aquele herói de fantasia, com o escudo redondo a cintilar... Tudo tão insólito... E no entanto não havia a mácula do devaneio naquilo; tudo, absolutamente, acontecia.

“Pergunte a Olive...”, disse timidamente o ancião. Sua voz escapou algo palpável e o olhar frio do Capitão a acompanhou, indo pousar no coronel.

“Coronel!”, bradou o Capitão, rodopiando com o escudo e batendo garbosa continência. Olive respondeu ao cumprimento da forma usual.

“Desejo informações sobre os atuais acontecimentos, senhor! Relatórios e dados sobre tecnologias da época, atritos, política externa, petróleo, ações, ninfetas e entretenimento em geral, senhor!”

O coronel ainda não vira um espécime daqueles. Tão forte, tão alto, tão decidido! Que homem! Mas não podia se trair, quebrar o regulamento. Devia seguir uma conduta séria, mesmo que temporariamente. Depois arrastaria o cervo para seu território de caça, e o perseguiria à vontade...

“Soldado! Onde esteve? Em alguma orgia, alguma farra espaço-temporal? E onde estão seus papéis?”

O Capitão recuou, intimidado.

“Eu... perdi-os... senhor.”

“Quando foi?”

O Capitão coçou o queixo, pensativamente.

“Houve guerras... celestiais, eu acho... mas não consigo recordar com exatidão...”

Os músculos do Capitão murcharam um pouco.

“Havia, também, seres... poderosos, muito poderosos... eram inimigos e amigos... uma confusão, não sei ao certo...”

Calou-se. Todos os presentes foram afetados por uma onda de melancolia que inundou toda a sala. Olive forçou-o:

“Não sabe o que, soldado?”

O Capitão soergueu a face pálida, olhos alucinados por um soberbo desespero:

“Não posso, não consigo mesmo saber... não posso acessar na cabeça qual era, qual era o...”

“O que? O que?”

Abatido pelo peso da própria ignorância, o Capitão encolhia. Suas faces mirravam, o uniforme tremulava e os ossos ganhavam evidência sob o tecido. Voltava a ser o Tio Sam, evidentemente. A dúvida o consumia.

“Não sei... não... não sei...”

O coronel amparou-o, dizendo:

“Fale, soldado! O que?”

O Capitão, já quase como Tio Sam, choramingou:

“Não posso dizer, senhor... não posso... não... não ouso... não consigo me lembrar... NÃO CONSIGO RECORDAR QUAL ERA EXATAMENTE O MALDITO LADO PARA O QUAL EU ESTAVA LUTANDO!!!”

O próprio olhar do Capitão América minguou, voltando-se para cima, como se para dentro, como se procurasse a solução dentro de si mesmo. Tornava-se lento, pastoso, e cada vez mais parecido com o velho Sam.

“Está com alguém dentro”, afirmou Lee. “Vamos precisar exorcizá-lo. Vá até ali, Olive, e pegue uns apetrechos. Calaças e bastões de incenso, você sabe. Vamos trazer esse lance pra fora.”

O resto do grupo apenas observava, atarantado, sem dizer palavra, enquanto o próprio solo parecia ondear, açoitado pela rapidez dos pés movendo-se, de um lado a outro, no espaço daquela espécie de invólucro no Tempo.

“Quando você hospeda um Homem Dentro”, dizia Lee, “desenvolve um olhar característico, denominado sanpaku. Está obsedado por um velho espírito. Um homem assim não tem qualquer fé. Deve encontrar o Mal Interno, lutar contra ele, e destruí-lo. Do contrário nunca fará coisa alguma. Estará sempre em dúvida, compreende?”

Dirigia-se a ninguém em particular, mas falava metodicamente, ritualisticamente, como a querer plasmar a idéia na cabeça dos ouvintes. Sua voz era velha e cansada, e parecia provir das próprias origens do universo. O Tio Sam voltara, mas os lábios secos haviam esfarelado, e um sorriso de múmia decorava o rosto apergaminhado do Símbolo Americano. Um fio de voz saía por ali, voz de interrogativo tom, de busca por respostas. Uma voz clamando por verdade.

“Ele vai dissolver em breve”, acudiu Olive, “onde estão os mantras?”

Lee consultou o bolso interno do paletó e tirou um papel escurecido, que entregou a Olive usando as duas mãos.

“São mantras únicos”, confidenciou, “adquiridos por Madame Blavatski de forma metafísica nos porões do Vaticano. Aquela velha era a espiã perfeita, o agente dos sonhos de qualquer governo. Se não fosse por ela, a Idade das Trevas teria se prolongado indefinidamente. São reza brava. Você nunca sabe quando vai precisar deles; trago-os sempre comigo, junto ao peito.”

Olive, magnetizador e ventríloquo, iniciou a réplica dos mantras, canalizando o som sobre a testa de Sam. Consistia em dois versos apenas, monótonos e pausados, vibrantes, vibrantes como cordas. O Tio Sam, antes inquieto, recobrou ao poucos a rigidez. Lentamente, transformou-se em estaca, e parecia um ídolo jocosamente trajado. Olive insistia nos mantras, alteando a vibração até um nível insuportável.

Então, algo realmente aterrador ocorreu. Da boca carcomida de Sam, aos batalhões, foram saindo. Vermes, larvas, empuzas e uma série de outras anormalidades físicas e espirituais. Dividiam-se em categorias e entravam dentro das calaças correspondentes. Os mantras prosseguiam, porém mais brandos.

“Estes são só os superficiais”, disse Lee. “Agora precisamos extrair o Solitário-mor.”

Sam continuava duro, e nada mais jorrava de seus lábios. Os bichos lotaram as calaças, e Lee as recolheu, uma a uma, colocando-as nas prateleiras de um armário embutido. Várias outras já estavam lá.

“São como troféus de caça”, murmurou, “mas também podem ser considerados grandes ovos de albatroz.”

Trancou o armário, e em seguida agarrou um ídolo refulgente de ferro, que estivera sempre ali sem que alguém desse por ele. Tinha feições animalescas. Misto de cão e crocodilo, gato e sátiro e harpia depenada. Horrível, e ainda assim cintilava com reflexos cinzentos. Todos se perguntavam como não tinham reparado nele antes.

“Vai usar esse?”, interrogou Olive, completando: “Não acha demasiado pessoal?”

Lee franziu a testa, e os vincos que se formaram ao centro tinham aparência de hieróglifos, ou ainda, inscrições para animar golens. Redargüiu:

“É assim que as coisas devem ser encaradas.”

Depôs a estatueta aos pés de Sam, e consultando novamente o paletó retirou uma chapa de metal, talvez estanho, entregando-a a Olive.

“Este nem mesmo sei como consegui”, disse. “Na época, havia maninside em mim. As pessoas ficam sujeitas a aventuras das quais não se recordam, e é tudo culpa do Homem que Está Dentro. Ele toma o controle sem que percebamos, nos absorve em nós e nos deixa estagnados, como que adormecidos. É quando os olhos ficam sanpaku. Um velho espírito nos domina, uma emanação telúrica. Esta chapa gravada surgiu em meu bolso após uma noite de opiáceas orgias. Com ela exorcizei a mim mesmo, e expulsei o Mal para longe. Mas foi em vão. Eu pensava que nunca mais teria de combatê-lo... mas como me equivoquei... você entende, não é Olive? Depois que expulsa o Mal de si mesmo, precisa expulsá-lo do mundo...”

Olive gravava em sua mente a mensagem escrita em latim que estava na placa, pouca atenção dando ao discurso reminescente de Lee. Os outros observavam, aparvalhados. Apenas Crimson Joe, com seu olhar inflamado, parecia querer consumir tudo aquilo em cinzas, passeando com a cabeça por todo o aposento. As paredes por vezes crepitavam, como se estivessem vivas, e sua consistência parecia fluir em determinados intervalos. Joe estava assustado com aquilo tudo, e inconscientemente desejava dissolver tudo com seu olhar flamante. Chamas azuis partiam deles, fogos-fátuos guiados por seu rancor ao Incognocível. Mas eram apenas afagos para a cena, afagos sem compaixão.

“Estou pronto!”, informou Olive. “Podemos começar. Vamos precisar de todos aqui. Kepler, dê a volta e fique ali, à esquerda do ombro de Sam. Frank, fique à cabeceira. Joe, você fica à direita. Lee ficará junto ao pé esquerdo, e u junto ao pé direito. É uma pena Clemens não estar aqui, com toda a sua candidez, mas teremos de nos arranjar sem ele. Talvez seja até melhor.”

Concentrando-se no pentagrama gravado na chapa, Olive imaginou que aquela estrela era o grupo. Boas vibrações. Ter embutido a águia em Joe fora um bom começo. Joe principiava a mudar. Seus pensamentos eram outros, confusos, mas outros. Lutava contra si, uma guerra pessoal e silenciosa, travada em terrenos lamacentos... os terrenos pantanosos da mente.

"Gladius eorum intret en corda ipsorum et arcus eorum confricatur."

“Que sua espada”, pensava Olive fortemente, “encrave em seu próprio coração. E que seu arco seja rompido.” Sabia que Lee também pensava assim. “Mate-se em si... dissolva em si... desapareça... deixa pra lá... deixa pra lá...”

"Gladius eorum intret en corda ipsorum et arcus eorum confricatur."

Um estertor partiu dos lábios poeirentos. Sibilante, como o som de um pneu que vaza. Os espectadores próximos estavam assustados. Joe observava o vapor que saía de Sam, como um gêiser, enquanto o som se transformava em ronco, grosso, embolhado, pestilento. “Mate-me!”, pedia a aterrorizante troada.

"Gladius eorum intret en corda ipsorum et arcus eorum confricatur."

“Mantenham as posições!”, bradou Lee. Areias se erguiam da bocarra de Sam, areias escuras em rodopios escaldantes. “Estamos indo bem, rapazes, estamos indo bem!”

"Gladius eorum intret en corda ipsorum et arcus eorum confricatur."

Uma nuvem espessa formou-se sobre o grupo. Irrequieta, pairava acima deles como um guarda-sol terrível, entremeado de gemidos e membros saltitantes e odores nauseabundos. A goela de Sam estava em silêncio, e uma grande paz pousara neles, parecendo partir da múmia e se estender para o resto dos corações em torno dela. Os sábios iniciados aos pés de Sam podiam ouvir, em ondas alaranjadas, o espírito de Rama reverberar dali.

"Gladius eorum intret en corda ipsorum et arcus eorum confricatur."

“Vá”, ordenou Lee, “espírito sem luz, habite o simulacro de suas aspirações. É assim que se vê, não é mesmo? Vamos, entre ali, entre ali, espírito tolo, entre, entre ali.”

A nuvem parecia recuar, às vezes, e às vezes não, parecia ser atraída pelo ídolo. Lee prosseguia, hipnótico:

“Entre ali, entre, tolinho, entre, é tão quentinho, entre, vá, entre, vá, está morninho, entre, é ali, entre, entre ali.”

Finalmente, a nuvem se decidiu. Dirigiu-se como louca até a estatueta, desferindo raios violáceos, sendo absorvida pelo metal no momento do contato. Lee apressou-se em suspender o ídolo de ferro, levando-o até um outro armário oculto, onde haviam inúmeros outros ídolos similares, em vários níveis de conservadorismo grotesco.

“Você pegou no ídolo com as mãos nuas!?...”, alarmou-se Olive. “Está doido, homem? A carga negativa... você conhece os perigos!”

Lee olhou para os próprios pés.

“Sapatos com solado de látex”, ciciou, fungando, “uma das maiores invenções de todos os tempos. No início da moda, sapateiros eram chamados de feiticeiros... e, ademais, já estou calejado, como bem sabe... tenho albatrozes bem mais pesados... quanto ao dinheiro, deposito-o como combinado, na sexta. Pelo jeito valeu a pena: espíritos antigos... muito, muito Tempo!”

“Espere aí!”, interrompeu Joe, “Quer dizer que paga para fazer exorcismos? Quanto?”

Lee analisou-o, como uma criança analisaria um caracol.

“Filho, eu poderia te contar um montão de histórias, e dizer cifras incalculáveis, que a seus ouvidos soariam de forma hebefrênica. Mas seria como falar com os mortos, pois você ainda não acordou.”

Coçou a nuca por debaixo do chapéu, e reiterou:

“Mas digamos que eu seja um depositário de culpas... como uma latrina, sabe? Uma latrina que recebe os restolhos nojentos da sociedade e precisa dar um jeito de se livrar dele.”

Uma metamorfose ocorria com Sam. Seu corpo estorricado inflava, as roupas desbotadas desapareciam, sendo substituídas por tons acobreados de pele. A face antes desproporcional e cinzenta ganhava reflexos joviais a cada segundo, matizando-se como se estivesse em chamas, crescendo como massa fermentada. Algo furioso formava-se ali, algo da natureza do leão.

Tinham diante de si uma nova forma. Um homem gigantesco, tosco, mas ainda assim humano, mesmo que vagamente. Uma cabeleira negra encimava sua cabeça, e o peito largo e recoberto de cicatrizes arfava, buscando ar, buscando vida, buscando, enfim, algo a que se agarrar.

“Temos cá um visitante de uma distante esfera”, pronunciou reverentemente o Senador Lee. “Valeu, realmente, cada um dos meus cents!”

O homem misterioso abriu os olhos. Chamas relampejaram nesse instante, chamas azuladas e frias. Olhando ao redor, perguntou:

“Que espelunca é esta?”

Sua voz era incisiva e fria como a morte. O Coronel Olive, tartamudeando, perguntou:

“Quem sois, ó visitante?”

“Sou Conan, um cimério. Crom é meu deus, e nunca o aborreço. Ele, em contrapartida, nunca aborrece a mim. Meus contratempos partem sempre de outros deuses.”

Crimson Joe, que perto do cimério era apenas um rato, grunhiu:

“Deuses, deuses! Quem conhece um deus, conhece todos!”

Conan pôs sobre ele as adagas gélidas de seu olhar. Joe, pasmando instintivamente, recuou trêmulo.

“Onde posso conseguir uma espada, mago?”, disse, dirigindo-se a Lee. “E uma boa refeição, pois parece haver anos não devoro alguma carne.”

O senador dirigiu-se à escrivaninha e, abrindo a menor das gavetas, retirou dali uma gigantesca espada de aço e bronze. A lâmina era de um azul quase celeste, e a empunhadura de fulgor vermelho parecia fremir, sugerindo contatos íntimos com o próprio Inferno; contudo, era apenas metal polido, faiscante.

“Que espada é esta?”, inquiriu o cimério, olhando fascinado para a arma. “Lembro-me de ter visto algo semelhante em Akbitana...”

“Esta é a Espada Demolidora do Caos”, disse Lee. “Já teve muitos nomes, mas seu último epíteto foi Excalibur.”

“Excalibur, ahn?”, o bárbaro cuspiu para o lado. Recebeu a espada das mãos de Lee, que a segurava com dificuldade, com a naturalidade com que se pega um jornal lançado à porta. Brandiu-a umas três ou quatro vezes, cortando o ar com célere determinação.

“É”, concluiu. “Acho que servirá. Terá aí uma bainha?”

Quantos lances para apenas algumas horas! De símbolo nacional mumificado Sam havia se metamorfoseado em herói ridículo, novamente múmia e, agora, um selvagem de épocas remotas que falava muito bem a língua inglesa.

O cimério acomodou a terrível lâmina na bainha de couro decorado com encastoamentos de prata que Lee estendera em sua direção. Pondo as mãos na cintura, cingida por um cinturão de couro tosco que segurava-lhe as coberturas baixas, feitas com a pele de algum animal extinto, gargalhou e disse:

“Agora sim, estou quase completo! Só preciso de uma ou duas canecas de vinho, e de uma ou duas vadias!”

O bárbaro afetava positivamente o local, mas apenas alguns deles podiam senti-lo. Em grau maior, Olive e Lee. Na seqüência vinham Frank, Kepler, e, por último, Joe. Este não aceitava a alegria do espírito livre do cimério. Era como uma afronta ao sistema atual, como uma cusparada nas regras, como um pulsar retroativo dentro da ordem corrente. E, lá no fundo, Joe soube que aquele selvagem seria, para sempre, o seu antípoda, seu pólo contrário.

Frank já escalava as costas poderosas de Conan, fazendo-lhe cócegas, as quais o bárbaro encarava com extremo bom humor.

“Que animal encantador!”, exclamou, quando Frank subiu-lhe à cabeça.

Virando-se para Olive, o Senador Lee perguntou:

“E então, meu velho... qual era mesmo o assunto original?”

Todos reuniram-se ao redor de Olive. Ele forjou um semblante duro, quase ascético, e fixou longamente o olhar gelado de Lee. Sua boca não se moveu.

COMENTÁRIOS NECESSÁRIOS OU DESNECESSÁRIOS #10

A MAGIA DO MATERIALISMO: COMPOSIÇÃO PARA SETE CORDAS QUEBRADAS

A possessão alienígena como forma de se desresponsabilizar por atos nefastos cometidos em momentos de alegada loucura

Nos idos da década de 1950, mais precisamente em seu início, um dos maiores escritores norte-americanos enfiou uma bala na cabeça da esposa durante uma demonstração privada de perícia com a pistola. Mas não é isso que importa. O verdadeiramente importante no caso foi o que se seguiu. Anestesiado por drogas, bêbado, insatisfeito? Não sabendo a real razão para o acidente – havia sido um acidente, disse à polícia (aconselhado por um advogado) – o escritor entrou na paranóia da possessão demoníaca em pleno século XX. Para ele não havia explicação psicológica para certas atitudes tomadas por determinados indivíduos dentro da sociedade, como matar com requintes de crueldade, estuprar crianças, bater na mãe... demônios, feito vírus – o vírus invade um organismo e transforma todas suas células em cópias de si mesmo – tomariam essas pessoas e as fariam agir como eles próprios, os demônios, agiriam. (Sete pecados, sete dias da semana, sete demônios residindo em sete planetas controlando as reações humanas. Sete anjos com sete trombetas e as sete taças do Juízo Final... um alaúde de sete cordas produzindo a melodia ao som da qual a Humanidade dança.) O escritor diz que só conseguiu escrever após o assassinato. Tendo entrado em contato com, como ele diz, “O Espírito Feio”, depois do sucedido encontrou como maneira de exorcizá-lo (ou talvez amainar sua influência) exercer a Literatura. Confissão das mais abertas, a literatura que produziu é modelo de como um ser humano pode rastejar pelos subúrbios do Inferno estando em si mesmo. Em determinado livro, mais de trinta anos depois, afirma que na realidade buscava, com sua teoria, apenas um culpado, transcendente e mau, para o crime que cometera. Querendo se isentar da culpa, inconscientemente passou a acreditar que o Malleus Maleficarum estava certo, que os demônios realmente existem e são os verdadeiros culpados por todas as falhas humanas. Nada de livre-arbítrio! Coitados dos seres humanos, presos na teia de sete demônios sanguinários, sete aranhas sugando suas parcas medulas espirituais. No entanto a magia do materialismo conseguiu, enfim, banir os demônios e livrar o homem de suas loucas superstições. Vez por outra (como no caso acima) aparece alguém querendo reviver essas antigas crendices, mas logo cai em si e percebe que não, o baile acabou, as sete cordas não vibram mais e a Humanidade não mais baila no apagado salão Universo. A morte da imaginação rompeu as sete cordas do alaúde: tudo que restou foi o silêncio que embala o sono do Espírito Humano.

Damnus Vobiscum
Enviado por Damnus Vobiscum em 23/05/2012
Reeditado em 24/05/2012
Código do texto: T3683510
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